A aquisição exagerada de brinquedos colaborou para que a brincadeira ficasse em segundo plano.
"NÃO BASTA ser criança para ter infância". Essa frase, pronunciada no documentário "A Invenção da Infância" (disponível na internet em www.portacurtas.com.br), não me deixa em paz.
Todo dia minha memória a torna atual: quando pais falam comigo a respeito de seus filhos, quando professores contam como organizam os trabalhos na educação infantil com seus alunos, quando vejo crianças em situações nada infantis. Com a aproximação do chamado Dia da Criança, creio que vale a pena dialogar com a frase. Desde que o conceito de infância foi inventado, nós temos uma ideia social do que é ser criança e essa ideia foi utilizada principalmente para fazer distinções entre adultos e crianças.
Pois a infância, caro leitor, vem sofrendo tantas transformações no mundo contemporâneo que, hoje, já não temos mais consenso social a respeito do que é infância e, portanto, do que é ser criança.
Por isso, fica extremamente difícil traçar alguma linha divisória entre o universo infantil e o mundo adulto.
Esse fato torna a vida de todos -crianças ou não- muito mais complexa porque, na ausência de um conceito compartilhado pela sociedade, cada um cria seu próprio conceito a respeito.
Já no início dos anos 80, um professor universitário estadunidense chamado Neil Postman publicou um livro chamado "O Desaparecimento da Infância", em que alertava a sociedade para o fato de que as crianças estavam se transformando precocemente em adultos.
Na época, a tese do autor parece não ter feito muito sentido porque o livro foi republicado apenas em 1994. O mesmo ocorreu no Brasil: a primeira edição aqui saiu em 1999, e a reedição veio apenas seis anos depois.
Isso pode significar que a sociedade está, atualmente, com o seu olhar mais voltado para a infância, quiçá com anseios de salvá-la. Vamos então fazer um breve levantamento sobre como temos feito as crianças se transformarem em adultos antes do tempo.
Comecemos, à luz da comemoração do Dia da Criança, sobre como elas têm sido sugadas pelo consumo. Nem é preciso falar muito a esse respeito, porque já sabemos que, antes mesmo de a criança saber o que é ser cidadão, ela já ocupa ativamente o papel de consumidor. Alguém tem dúvidas de que esse dia será celebrado pela sociedade, de modo geral, por meio do consumo?
A aquisição desenfreada de brinquedos colaborou muito para que o ato de brincar ficasse em segundo plano. Resultado: as crianças, na atualidade, quando querem brincar não podem e, quando podem, não querem e/ou nem sabem.
Num outro documentário chamado "Criança, a alma do negócio" (disponível em www.alana.org.br), existe uma cena chocante. Um adulto pergunta a um grupo de crianças se elas preferiam brincar ou comprar. Comprar foi a resposta quase unânime.
E o que dizer, então, do tempo da criança? Em casa ou na escola, ela quase não tem tempo para brincar já que, quando ela brinca, queremos que aprenda algo. Brincar deixou de ser uma finalidade em si para se transformar em meio para atingir alguma meta ou objetivo. Pode? Ora, desse jeito, o brincar deixa de ser lúdico para se tornar um método pedagógico!
Se quisermos verdadeiramente melhorar o futuro para os mais novos, nós precisamos deixar a criança ser criança enquanto ela está na fase da infância. Isso significa que os adultos precisam renunciar a serem, eles mesmos, tão infantilizados.
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?"
Folha de São Paulo
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