CRÍTICA À NOÇÃO DE LIBERDADE DA VONTADE OU LIVRE ARBÍTRIO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA
“A vontade não pode ser chamada causa livre, mas unicamente necessária” [1]
A
questão da liberdade representa um tema clássico da filosofia, sendo um
conceito que coleciona muitas polêmicas, pois envolve a clássica
oposição entre necessidade e contingência. Baruch Espinosa, sendo um
filósofo racionalista e determinista absoluto, recusa uma ideia de
vontade livre, alegando que a faculdade de livre arbítrio não passa de
uma ilusão da imaginação. Sendo característica de nossa consciência
imediata, a imaginação apenas representaria um primeiro gênero de
conhecimento, constituindo, assim, fonte de falsidade. Assim, “a crença
no livre arbítrio é, aos olhos de Espinosa, o preconceito primordial,
fonte de todos os outros.” [2]
O
presente trabalho pretende explicitar a crítica à noção de liberdade da
vontade (ou livre arbítrio) na filosofia de Espinosa, tomando como base
sua obra mais importante, que é a Ética. Nela Espinosa segue uma
trajetória que vai da metafísica e da epistemologia à ética, nos
trazendo uma crítica à vontade livre, tradicionalmente segundo a qual o
sujeito teria pleno poder de escolha entre o “sim” e o “não”, e também
uma nova concepção de liberdade aos moldes de sua filosofia
determinista. Para que consigamos compreender sua argumentação, faz-se
importante, em linhas gerais, a exposição de alguns pontos, para que
assim tenhamos base para defender sua crítica e, sem contradição alguma,
poder chamá-lo de filósofo da liberdade e designar sua filosofia como
uma filosofia de (e para) homens livres.
Em
primeiro lugar, Espinosa considera que o homem é submetido às leis
necessárias que regem a Natureza, não existindo, assim, a possibilidade
de contingência, pois, seguindo-se o princípio de causalidade,
atestaríamos que para tudo há uma causa e esta, por sua vez, encontra-se
na própria Natureza, e não em um plano transcendente. A identificação
entre Deus e a Natureza é capital para a construção argumentativa que
visa criticar o livre arbítrio:
A identificação entre Deus e a Natureza, assinalada na citação do Tratado e demonstrada na primeira parte da Ética,
por si só já indica claramente que o Deus de Espinosa em nada se
confunde com o Deus transcendente, pessoal e criador da tradição
judaico-cristã. Seu Deus é imanente à Natureza, e o conhecimento de
nossa união com ele nada mais é do que o conhecimento intelectual de nós
mesmos como partes da Natureza, partes integralmente submetidas, como
todas as outras, às leis causais necessárias que regem o comportamento
das coisas naturais. Neste espaço teórico dominado pelas ideias de
imanência e necessidade, a exigência racionalista de inteligibilidade
integral do real será colocada a serviço da intuição fundamental da
unidade da Natureza e levada às últimas consequências. [3]
Uma
vez que o homem é submetido às leis da Natureza, que é a totalidade e
identifica-se com Deus – sendo a única substância e causa de si mesma -,
a vontade, que segundo Espinosa é a essência do homem, não representa
algo transcendente, mas está submetida às mesmas leis naturais as quais
todos os outros fenômenos também estão. Para Espinosa tudo é causa de
alguma coisa: com a vontade isso não poderia ser diferente. Torna-se
importante destacar o conceito de conatus, termo que significa esforço
em latim, para compreender a determinação, que necessariamente engloba a
vontade, pois “o interesse do corpo e da alma é a existência e tudo
quanto contribua para mantê-la.” [4]
Segundo Espinosa, “o esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” [5],
sendo que, a partir das afecções que a coisa sofreu, ela tende sempre a
buscar aquilo que a conserve ou aumente a sua capacidade de afetar
outros corpos. O conatus,
portanto, é uma potência natural de autoconservação, “com a
peculiaridade de que somente os humanos são conscientes de possuir o
esforço de perseveração na existência” [6].
Ao possuirmos a ilusão de que, como resultado de nossa absoluta e livre
vontade, podemos escolher entre o “sim” e o “não”, nós estamos
ignorando o fato de que tal estado de passividade e dúvida é somente a
oscilação entre duas vontades contrárias, uma limitando a outra, e que
ambas tendem a perseverar em seu ser, sem nenhuma contradição interna. É
a partir desses aspectos apresentados que podemos enxergar a crítica de
Espinosa ao livre arbítrio, pois, em última análise, ao ter a
consciência de que possuímos um apetite - constituindo, assim, o que
chamamos de desejo - não significa que somos os autores dos mesmos:
apenas seguimos uma série de determinações causais, sem conhecê-las
completamente. E, assim, acreditamos desejar livremente. Entretanto, ter
a consciência do apetite não muda em nada a sua natureza, sendo que
esse somente será superado por um apetite mais poderoso. Da mesma forma,
ter uma ideia já é afirmá-la por si só: a afirmação de sua veracidade
será abandonada em prol da afirmação de outra mais clara e distinta, mas
não devido a um suposto livre arbítrio.
Seguindo o conceito de conatus
“os propósitos e intenções que realizamos, passiva ou ativamente, não
são escolhidos por nossa vontade, mas exprimem a causalidade eficiente
de nosso apetite e de nosso desejo” [7].
Isso significa que a vontade livre é uma ilusão, uma vez que nossos
apetites e desejos são regidos pelo princípio de causalidade, assim como
qualquer outro evento natural. Outra razão para que tal ilusão ganhe
uma força descomunal é a que se refere ao fato de que nos focamos nos
efeitos e ignoramos as causas: diz Espinosa que todos nós nascemos
ignorantes das causas das coisas e que buscamos o útil, com a
consciência dessa busca. Entretanto, pela ignorância das causas que os
determinam a desejar algo, os homens se consideram livres, pensando que
buscam uma coisa por a considerarem boa; e não o contrário. Na verdade,
para Espinosa, os juízos de valor que formulamos, e, consequentemente, a
ideia confusa de que buscamos algo pela influência desses juízos,
designam o nosso conatus, ou
seja, a nossa própria essência - que é desejo e apetite -, muito mais do
que imaginamos. “Assim, um desejo cujo múltiplo condicionamento causal é
ignorado é apreendido como um desejo incondicionado, o sujeito
considerando-se como sua causa primeira e única.” [8]
Espinosa
nos traz, porém, uma nova visão de liberdade, calcada em raízes
deterministas (e não fatalistas), onde a determinação do sujeito
deriva-se a partir de sua essência, ou seja: o sujeito ativo se
autodetermina, regido pela razão e pelo intelecto, e age sem
constrangimento. Voltando à crítica de Espinosa, concluiremos nossa
breve análise com uma comparação entre a pedra e o homem:
Se
a pedra lançada tivesse consciência do seu movimento, e da sua
tendência a perseverar no movimento, julgar-se-ia livre, na medida em
que ignoraria o impulso que produziu o seu movimento, que determinou de
uma certa maneira a sua faculdade de estar em movimento ou em repouso.
Do mesmo modo, aquele que na cólera, na embriaguez ou em sonho, crê agir
livremente, é porque ignora as forças que o impelem contra a sua
vontade. [9]
BIBLIOGRAFIA:
MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982.
GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção logos).
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
[1] Ética, Livro I, proposição 32.
[2] MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 46.
[3] GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 8.
[4] CHAUÍ, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção logos). p. 63
[5] Ética, Livro III, proposição 7.
[6] CHAUÍ, Marilena de Souza. op. Cit.
[7] Ibid. p. 64
[8] GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 9.
[9] MOREAU, Joseph. op. Cit.
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