C.M. tinha apenas 4 anos quando começou a cozinhar para os seis
irmãos. Precisava subir em um caixote para mexer no fogão à lenha que
dividia o espaço do pequeno cômodo com uma cama e um berço. Toda a
tarefa da casa era feita com o máximo de cuidado: qualquer ruído poderia
interromper o sono do pai, que trabalhava de madrugada e descansava
durante o dia. “Eu morria de medo. Se ele acordasse, vinha atrás de
mim”, afirma ela, hoje com 45 anos. C.M. sofreu uma década de abusos
quase diários e guardou as duras memórias desse período até o ano
passado, quando decidiu revelar sua história à família. Uma de suas
filhas também foi vítima de um estupro por parte de um primo, aos 15
anos. “Parece que a coisa continua, como em um ciclo”, diz. Ela não está
errada. Em uma mensagem de suporte aos protestos contra a violência de
gênero que aconteceram no dia 14 de fevereiro em mais de 200 países –
uma campanha que ficou conhecida como “1 Bilhão Que Se Ergue” –, o
secretário-geral das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, qualificou o
problema como uma “pandemia”. Segundo a ONU, sete em cada dez mulheres
no mundo passarão por algum tipo de violência física ou sexual ao longo
da vida. Na segunda-feira 4, a organização se reúne em sua sede em Nova
York numa conferência de dez dias sobre o tema. Essa situação alarmante e
vergonhosa mostra como é difícil mudar as relações de poder que há
séculos organizam as sociedades ao redor do mundo.
“A violência contra a mulher deriva da ideologia patriarcal”, afirma
Maria Amélia Teles, fundadora da União de Mulheres de São Paulo.
“Aprendemos que os homens têm direito sobre a vida e a morte. Esse é um
dos pilares mais cruciais da sociedade e dá origem a todas as outras
violências.” Parece uma afirmação antiquada, diante das nem tão recentes
conquistas da mulher, mas que revela uma desconcertante
contemporaneidade, como a declaração da procuradora aposentada do
Ministério Público de São Paulo, Luiza Eluf: “Isso faz parte de um
sistema de dominação violentíssimo. É o tipo de escravidão mais perverso
que já existiu na humanidade.” Por estar tão arraigado e disseminado,
irrestrito a fronteiras, raças ou classes sociais, governos e
organizações têm encontrado dificuldade para lidar com o problema. “Nós
estamos tentando reverter essa tendência, mas é muito difícil porque não
se trata apenas de leis, mas de práticas, do funcionamento das
famílias”, afirma Rebecca Tavares, representante da ONU Mulheres no
Brasil. Sem sucumbir ao pessimismo, ela lembra que os países
escandinavos conseguiram melhorar seus índices de violência apostando na
inclusão das mulheres nas instâncias de poder, na participação dos
homens nas tarefas domésticas e na garantia da independência financeira
feminina.
Isso mostra que, apesar de todas as conquistas ao longo do século XX,
ainda faz muito sentido sair às ruas e empunhar as velhas bandeiras dos
movimentos feministas – e é o que muitas mulheres têm feito. Em
dezembro de 2012, multidões tomaram cidades da Índia para protestar
contra o estupro coletivo que resultou na morte de uma jovem estudante e
reivindicar penas mais duras para os agressores. Protestos da mesma
ordem se repetiram na África do Sul depois do estupro coletivo de Anene
Booysen, de 17 anos. Lá, há três semanas, manifestações em frente ao
Tribunal de Pretória marcaram as primeiras audiências do processo a que o
atleta Oscar Pistorius responde por assassinato premeditado de sua
namorada. Aqui no Brasil, no começo de fevereiro, organizações como a
Marcha Mundial das Mulheres se postaram diante do Fórum Edgar Mendes
Quintela, na cidade de Ruy Barbosa, na Bahia, para pedir justiça a duas
meninas de 16 anos que acusam de estupro nove membros da banda de pagode
New Hit (as audiências de instrução foram suspensas até o início de
setembro). Para Melissa de Miranda, uma das organizadoras da campanha “1
Bilhão Que Se Ergue” no Brasil, essas manifestações espontâneas mostram
que “há uma demanda por movimentos mais abertos” de defesa dos direitos
das mulheres – as redes virtuais são um exemplo.
Além das mobilizações coletivas, mulheres vítimas de violência estão
abrindo, sozinhas, novas frentes de debate a partir de suas
experiências. É o caso da gaúcha Paula Berlowitz, 34 anos, que idealizou
o blog Marchadasvadias.org e o site Cromossomo X, com notícias
relacionadas aos direitos das mulheres. Ela foi vítima de violência
doméstica por 12 anos. “É irônico porque eu sempre fui muito consciente,
achava que nunca aconteceria comigo”, diz. O estalo que fez Paula
buscar ajuda veio depois de muitas agressões físicas e sexuais do então
marido. Ela saiu de casa com os três filhos e denunciou o ex, que foi
preso em flagrante, mas pagou fiança e foi liberado no dia seguinte, em
mais um caso que mostra a dificuldade em punir o agressor e proteger a
vítima.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de dezembro de
2011, mais de 26 mil prisões em flagrante e quatro mil prisões
preventivas já foram feitas a partir da execução da Lei Maria da Penha,
que é referência no mundo no combate à violência contra a mulher (leia
mais na pág. 51). Apesar de expressivos, os números não refletem a
percepção de muitas mulheres de que a Justiça é um dos principais
gargalos para o fim da violência. “Em alguns lugares do País, a
Defensoria não funciona e o Ministério Público não tem versão atualizada
da legislação e dá prioridade à conciliação, não à denúncia. Em outros,
as delegacias não funcionam e não possuem pessoal qualificado”, afirma a
senadora Ana Rita (PT-ES), relatora da CPMI da Violência Contra as
Mulheres. Ela tenta entender por que o Brasil, apesar da legislação
avançada, ainda tem índices tão altos de violência. O relatório da
comissão será publicado daqui a duas semanas, pouco depois do
lançamento, em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, do pacote de
medidas para as mulheres da presidenta Dilma Rousseff.
Outra falha na aplicação da Lei Maria da Penha foi identificada pelo
Tribunal de Justiça do Espírito Santo, Estado que lidera o ranking de
homicídios femininos. Percebendo o aumento no número de agressores que
violavam as medidas protetivas, o tribunal criou um dispositivo que
funciona como um “botão do pânico” para as mulheres que se sentirem
ameaçadas. O projeto-piloto, inédito no mundo, começa agora. Um aparelho
assim teria sido de grande utilidade para a vendedora Deise Brito
Cornélio, 33 anos, que chegou a fazer oito boletins de ocorrência
denunciando as agressões, os estupros, o cárcere privado e as ameaças
que sofria do ex-marido, com quem viveu por seis anos. Apesar da
gravidade das acusações, ela só conseguiu a prisão do agressor depois de
ludibriá-lo e convencê-lo a ir com ela até o Fórum de Justiça, onde
provou seu desrespeito às medidas protetivas.
Hoje, apesar de seguir escondida do ex-marido (ele deixou a prisão há
quatro semanas), Deise tenta reconstruir a vida. Ela permaneceu quatro
meses no abrigo Bianca Consoli, de endereço sigiloso, mantido pela
recém-criada Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres (SEPPM),
da Prefeitura de São Paulo. Na casa, que tem espaço para cinco mulheres
com seus filhos, ela recebeu atendimento psicológico, orientação
jurídica e foi incluída nos programas assistenciais do governo. Segundo a
secretária Denise Motta Dau, da SEPPM, a cidade já tem dois centros de
referência além da casa, mas a demanda exige que mais um abrigo seja
construído. Ela entende, no entanto, que, se os demais recursos e
programas forem aplicados corretamente, a institucionalização da mulher
vítima de violência só acontecerá em último caso. “Ajuda bastante se
tivermos uma política de Estado”, afirma, ressaltando a importância de
integrar os serviços de assistência social, justiça e saúde.
A opinião é compartilhada por Branca Paperetti, que coordena o centro
de referência Eliane de Grammont, na capital paulista. “Não é uma
resposta única que vai devolver à mulher as pontes que ela tinha com o
mundo. Por isso é necessário que haja um processo, não uma ação
isolada.” A assistência, no entanto, ainda está longe de grande parte
das vítimas, em especial daquelas que passaram por violência sexual na
infância e só depois de muitos anos conseguiram buscar ajuda. Foi o que
aconteceu com Bya Albuquerque, 45 anos, fundadora do grupo “Filhas do
Silêncio” em Ribeirão Preto, São Paulo. Ela foi violentada pelo pai
entre os 2 e os 26 anos e hoje sofre de insônia, crises de depressão e
distúrbio alimentar. “Todas nós que sofremos violência na infância
estamos agora enfrentando uma violência emocional sem encontrar nenhum
tipo de ajuda”, diz. “As mulheres que estavam ameaçadas no momento das
agressões e não revelaram o problema antes – e poucas coisas são tão
difíceis de revelar como o abuso sexual – precisam ter a oportunidade de
falar agora”, afirma Jefferson Drezett, coordenador do projeto “Bem Me
Quer” do hospital Pérola Byington, em São Paulo, criado em 1996 para
atender mulheres e crianças vítimas de violência sexual e garantir o
direito de aborto previsto na Constituição. “É obrigação do País
oferecer políticas públicas para essas mulheres que falhamos em
proteger.” Entre 2000 e 2012, o número de pacientes atendidas pelo
projeto cresceu 137%, chegando a 2.875.
“Todo mundo me pergunta por que eu não falei nada”, diz a escritora
cearense Helena Damasceno, 39 anos, que foi abusada pelo tio dos 5 aos
20 anos. “Eu passava uma semana inteira sem tomar banho, sem trocar de
roupa. Essa era minha forma de gritar para a minha família, de conectar o
que estava dentro e o que estava fora. Eu falava com o corpo, mas
ninguém entendia.” Hoje, depois de transformar sua história no livro
“Pele de Cristal”, Helena ministra cursos e palestras sobre o assunto
por todo o Nordeste. A professora Márcia Longo, 45 anos, que vive na
cidade paulista de Araras, passou por situação semelhante. Ela foi
abusada pelo pai entre os 4 e os 11 anos e também pelo irmão mais velho
entre os 10 e os 11. Depois de assumir a história de abuso, Márcia
transformou o sofrimento em ação: como educadora, verificou a
necessidade de informar professores, diretores, pais e alunos sobre como
lidar com a violência sexual e criou o projeto “Nem Com Uma Flor”, que
visa a promover debates sobre o assunto na rede municipal de ensino. O
trabalho começará a ser implantado em março. “A criança precisa saber
que a culpa não é dela. Se aos meus 10 anos tivesse ouvido isso, minha
vida teria sido totalmente diferente”, diz.
Iniciativas como essas, que tentam derrubar a ideia de que a vítima é
responsável pela agressão, têm sido fundamentais para romper o ciclo de
violência e dominação. Para Sônia Coelho, da organização feminista
Sempre Viva, o preconceito faz com que a vida, o corpo e o modo de
pensar das mulheres sejam controlados o tempo todo. “Estamos
condicionadas a pensar na roupa que vestimos, por onde caminhamos, se o
ônibus vai estar cheio. Isso sustenta nossa subordinação.” Foi
justamente para tornar esse problema visível que a britânica Laura Bates
criou o projeto “Every Day Sexism” (o sexismo de todos os dias), em que
estimula as vítimas a denunciar através da internet os assédios que
sofrem na rua, em casa e no trabalho. “Estamos acostumadas a achar que o
assédio é intrínseco à condição de mulher”, diz. Em apenas dez meses,
mais de 20 mil pessoas usaram o site para contar suas histórias no Reino
Unido (o projeto será ampliado para outros países dentro de algumas
semanas).
SOLIDÁRIO
Cauã Reymond posa para uma campanha do Banco Mundial que
desfaz a ideia de que a Lei Maria da Penha é contra os homens
Esse aumento expressivo no número de vítimas que denunciam seus
agressores tem sido fundamental para identificar a extensão da epidemia
e, consequentemente, criar políticas adequadas para combatê-la. Aqui no
Brasil não é diferente: entre 2011 e 2012 houve um crescimento de 13%
nas ligações ao Disque 180 da Secretaria de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República, que repassou mais de R$ 40 milhões para os
Estados e municípios no ano passado. “A Lei Maria da Penha mostra para
as mulheres que o Estado as acolhe, que elas podem denunciar. Assim,
essa lamentável violência passa a ser visível”, afirma a ministra
Eleonora Menecucci.
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