Em busca do equilíbrio
Eficácia das vitaminas gera polêmicas, mas o consumo aumenta entre os brasileiros
Febre, espirro e dores no corpo? O senso comum prega que se for gripe ou resfriado, só há um tratamento eficiente: vitamina C e cama. Uma única pílula diária dessa vitamina, conhecida também como ácido ascórbico, seria capaz ainda de retardar o envelhecimento, reforçar o sistema imunológico, ajudar no combate às doenças cardiovasculares e até contribuir para o tratamento e a prevenção do câncer. Embora muita gente não saiba, existe uma infinidade de trabalhos científicos sobre o tema. Em apenas um site de informações médicas na internet pode-se ter acesso a pelo menos quatro mil pesquisas que buscam desvendar a relação entre a vitamina C e os tumores. Há tempos ela é considerada uma espécie de panacéia para todos os males. Na semana passada, a publicação de um estudo numa das principais revistas científicas do mundo, a americana Science, abalou essa crença. A vitamina C é um doce golpeador. Ao mesmo tempo que ajuda o organismo a “desarmar” os radicais livres – inimigos químicos que oxidam ou enferrujam as células – ela indiretamente induz a produção de compostos que podem provocar alterações genéticas nas células humanas. O trabalho feito na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, alimenta a polêmica que há anos ronda as vitaminas.
Afinal, qual é o precioso valor das vitaminas, consumidas por gente que quer manter a pele viçosa, sentir-se bem ou simplesmente se livrar de um resfriado? Há poucas certezas. Médicos contrários à prescrição dos suplementos vitamínicos criticam a falta de estudos conclusivos sobre as maravilhas das cápsulas. Alguns dizem claramente, outros apenas insinuam, que o consumo exagerado de vitaminas é mais uma questão de interesse econômico do que de saúde pública. A discussão vai e volta há mais de uma década. Enquanto isso, a indústria farmacêutica brasileira fatura anualmente cerca de US$ 150 milhões com a venda de cápsulas, comprimidos efervescentes, pastilhas e até vitamina em pó.
Apesar de colocar mais lenha na fogueira, o estudo americano não condena de forma taxativa a ingestão de vitamina C. “O importante é ressaltar que a vitamina C não causa câncer, mas em testes feitos em laboratório ela provocou alterações químicas que podem levar a lesões genéticas nas células”, reforça um dos coordenadores da pesquisa, o americano Ian Blair. “Isso sugere que o uso de um único antioxidante, como a vitamina C, não basta para tratar e prevenir tumores. O segredo está na administração de uma alimentação balanceada”, completa. É esse o caminho apontado por dez entre dez médicos: a associação entre dieta equilibrada, atividade física regular e manutenção de hábitos saudáveis, como evitar o cigarro e o exagero nas bebidas alcóolicas. Blair e sua equipe combinaram em laboratório uma dose de ácido ascórbico com soluções de um tipo de radical livre conhecido como hidroperóxido. Essa substância é uma molécula de gordura (lipídio) localizada na membrana das células que, ao sofrer oxidação, pode transformar-se em toxina. O composto tóxico, por sua vez, pode se ligar a moléculas de DNA, provocando mutações genéticas que poderiam levar ao câncer. O estudo demonstrou que a vitamina C estimulou a produção de mais hidroperóxidos. No mínimo, a vitamina C morde e assopra. Ou seja, ao mesmo tempo ela elimina e estimula a produção de radicais livres. Por trás do mito da vitamina C está o químico americano Linus Pauling, duas vezes Prêmio Nobel. Empolgadíssimo com os supostos poderes da substância, ele propalava efeitos milagrosos. Em 1994, quatro meses antes de morrer de câncer, aos 93 anos, Pauling chegou a defender o consumo diário de uma dose cavalar de seis a 18 gramas diárias de ácido ascórbico. Entre os benefícios que alardeava, estavam a melhoria do sistema imunológico, o fortalecimento dos vasos sanguíneos e a produção da proteína colágeno, que dá firmeza à pele.
Incerteza – A principal crítica que se faz ao estudo americano publicado pela revista Science é o fato de ser uma experiência in vitro, restrita aos limites do tubo de ensaio. Ainda restam dúvidas se o resultado será igual quando a experiência for transportada para o corpo humano, já que dezenas de outros componentes entrariam em ação. “Acredito que os danos genéticos provados no estudo laboratorial serão os mesmos em cobaias”, defende-se o pesquisador Blair. A ciência, portanto, ainda tem muito a descobrir antes de dar qualquer veredicto. “Mesmo que a vitamina C induza o aparecimento de substâncias tóxicas, não se pode assumir que ela provocará defeito genético no organismo de todos os seres humanos, porque o próprio corpo pode se encarregar de fazer os reparos”, observa Leandro Giavarotti, bioquímico do Centro de Estudos de Envelhecimento do departamento de geriatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A falta de consenso científico alimenta o ceticismo do médico paulista Antônio Carlos Buzaid, do Hospital Sírio-Libanês. “Até hoje, ninguém conseguiu sequer provar que a vitamina C é boa para o resfriado. Então é melhor nem tomar. Suplementos não são a mesma coisa que alimentos naturais”, observa.
Confrontos desse tipo, na maioria das vezes, passam ao largo dos consumidores. A promotora de eventos Cinthia Bueno, 25 anos, de São Paulo, confessa que nunca leu nada a respeito da polêmica em torno das vitaminas. “Se você quer acreditar numa coisa, ela pode acontecer. Desde que comecei a tomar vitamina C, sinto mais disposição. Pode até ser efeito psicológico”, afirma. Há um ano, Cinthia consome diariamente 500 mg da substância. Ela mantém um estoque em casa e guarda na bolsa uma caixa com cápsulas de Redoxon. A windsurfista carioca Dora Bria, 39 anos, é outra adepta da rotina diária de pílulas. A atleta ingere vitaminas C, E e betacaroteno (substância que o organismo transforma em vitamina A). “Acho que está dando resultado”, diz a loura e linda, que engole até nove cápsulas por dia durante as competições. Tal entusiasmo ilustra como os brasileiros estão cada vez mais encantados com as promessas dos suplementos.
Sinal disso é o crescimento do mercado. Em 1999, foram comercializados 21,7 milhões de tubos de vitamina C, de acordo com dados da consultoria PMB, especializada na indústria farmacêutica. No ano passado, a vendagem ficou em 22,8 milhões de embalagens (faturamento de US$ 62,5 milhões). Fabricante do Redoxon, campeão de vendas no Brasil, o laboratório Roche prevê um aumento de 2% no consumo em 2001. Segundo a empresa, 40% dos brasileiros já usaram ou usam a substância. Os americanos preferem os polivitamínicos, suplementos ricos em minerais e ingeridos por metade da população. No Brasil, os compostos mil-e-uma-utilidades movimentam US$ 91 milhões ao ano, embora sua participação no mercado nacional não ultrapasse os 10%, conforme levantamento da consultoria PMB. “O setor está se expandindo nas classes A e B. As pessoas usam os produtos para complementar sua alimentação”, diz Olga Mellone, diretora-médica do laboratório Whitehall, que fabrica os polivitamínicos Centrum e Stresstabs.
Um de seus apreciadores é o decorador Fernando Rodrigues, 61 anos, especialista em automedicação. Ele toma cinco cápsulas diárias de vitaminas C e E, além dos compostos polivitamínicos e drágeas de ginseng. “Para mim é indispensável. Se desse problema, já tinha morrido. Vou continuar tomando”, avisa. O comportamento de Rodrigues irrita médicos como o diretor de oncologia clínica do Hospital do Câncer, Agnaldo Anelli. Para ele, só deve tomar pílulas quem tiver dificuldade para absorver vitaminas. “Quem come verduras, frutas frescas, proteína e pouca gordura não precisa tomar nada”, avisa o oncologista. Basta comer bem. A diretora científica da Sociedade Brasileira de Cancerologia e do Instituto Avanços em Medicina, Nise Yamaguchi, recomenda a mesma fórmula, mas prescreve sem culpa os suplementos vitamínicos. “Receito a complementação para quem sofre de câncer e não consegue se alimentar bem, e os pacientes costumam relatar bem-estar”, informa Nise, que incluiu duas cápsulas diárias de multivitaminas em sua dieta.
Cautela – Mas atenção: não é porque a grande maioria das vitaminas não exige receita médica que se deva encará-las sem consultar antes um especialista. A dica vale para todos, independentemente de se estar doente ou saudável. A jornalista Marília Gabriela está entre os que optaram por recorrer a um profissional. Há seis meses, ela faz tratamento geriátrico que inclui um polivitamínico, doses de vitaminas B12, C e E. O arsenal de 11 pílulas diárias serve para manter a saúde em dia e retardar o envelhecimento. “Sinto-me uma velhota de 53 anos em grande forma”, brinca Gabi. Uma dúvida recorrente entre os fãs de vitaminas é qual o limite seguro para consumo. A sugestão é acatar a recomendação diária elaborada pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. Até mesmo alguns profissionais que seguem a terapia ortomolecular, prática que se baseia no poder das vitaminas e dos sais minerais, sugerem que os pacientes tenham cautela. “A proposta é essencialmente preventiva, podemos melhorar o estado geral através da alimentação e das vitaminas, que têm de ser dosadas, senão podem trazer problemas”, frisa o médico carioca Hélion Póvoa, especialista no tema. O ideal, explica o geriatra Luiz Roberto Ramos, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é que as dosagens sejam equilibradas para que as vitaminas possam, em conjunto, interagir na batalha bioquímica que o organismo trava a cada segundo para aumentar suas defesas imunológicas.
Há três anos, o empresário paulista Joaquim Fernandes Borges, 60 anos, recorreu a um terapeuta ortomolecular, mas acabou substituindo as cápsulas de vitamina por caminhadas, natação, ginástica, bicicleta ergométrica e, claro, uma dieta rica em frutas e vegetais. Borges queria retardar o envelhecimento e se sentir mais disposto. Torrou R$ 1 mil em suplementos vitamínicos e durante três meses andou com pílulas nos bolsos, para engolir de hora em hora. “Comecei a me sentir psicologicamente doente por tomar tanto remédio e não ver resultados”, lembra.
A indústria de vitaminas não se limita aos suplementos. As substâncias são vendidas como matéria-prima para enriquecer alimentos – como bolachas, achocolatados, leite, arroz e balas –, ração animal e cosméticos (leia “Cremes enriquecidos” à pág. anterior). O apelo mercadológico é grande. Na opinião de alguns nutricionistas, os alimentos vitaminados só são benéficos se o consumidor souber exatamente o que está comendo. E nem sempre isso ocorre. O resultado pode ser o excesso de vitaminas, que traz consequências danosas. “É a dosagem que diferencia o remédio do veneno”, afirma o toxicologista Sérgio Graff, de São Paulo. A superdosagem de vitamina C, por exemplo, é um perigo. O excesso pode tornar a urina mais ácida do que o normal. “Essa mudança pode precipitar a formação de cristais de ácido úrico, levando ao surgimento de cálculos renais em pessoas com tendência ao problema”, alerta o nefrologista Fernando Almeida, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). O urologista José Antônio Longo, do Hospital Israelita Albert Einstein, orienta pacientes com histórico de cálculos renais na família a evitar doses extras do ácido ascórbico para não ter problemas nos rins.
Excesso – Outro exemplo dos danos provocados pela superdosagem é a ocorrência de distúrbios musculares e a alteração nas reservas de cálcio em crianças que receberam vitamina D em demasia. “Algumas mães erram ao achar que quanto mais vitamina, melhor”, comenta Leonardo Posternak, pediatra de São Paulo. Nem sempre o efeito colateral é visível. “Se a superdose continua por tempo prolongado, pode virar intoxicação crônica. Isso é raro, mas quando acontece provoca nervosismo, agitação, ansiedade, anorexia e pode até levar ao aumento da pressão interna do crânio”, explica o toxicologista Graff.
Quando bem administradas, no entanto, as vitaminas têm poder preventivo valioso. “O resto entra no infinito campo das especulações e depende de novas pesquisas para comprovação. Não se pode arriscar”, dispara o endocrinologista Linneu Silveira, do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. No campo das certezas, ele cita a Finlândia, país que desde a década de 90 adotou a reposição de ácido fólico (uma vitamina) como medida de saúde pública e reduziu o número de problemas neurológicos em recém-nascidos.
Alimentação – Por tudo isso, os médicos pregam que a população se esforce ao máximo para manter uma dieta balanceada (leia quadro acima). O difícil é seguir essa recomendação. Até mesmo para a renomada nutricionista Maria Luiza Ctenas é complicado. Ela tenta conciliar a vida agitada com uma alimentação correta. “Nem sempre consigo, por isso tomo polivitamínicos em dias alternados. Quando tenho certeza de que comi como manda o figurino, não tomo”, explica. Mas há situações que exigem a suplementação, como a gravidez e a deficiência de vitaminas. A nutricionista Mirtes Stancanelli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), usa critérios clínicos para identificar a falta dessas substâncias. “Manchas na pele, dificuldade de adaptação para visão noturna e sangramento nas gengivas ou dificuldade de cicatrização são indícios de que há carência. Nesse caso, ainda se pode corrigir o problema reorientando a dieta em vez de dar suplementos”, explica Mirtes.
Crítico das vitaminas sintéticas, qualquer que seja a letra do alfabeto que a represente, o cancerologista Dráuzio Varella fica insatisfeito com a moda dos suplementos. “Como não há nenhum estudo científico sério que mostre que elas fazem bem, é ridículo ver alguém tomando 20 comprimidos de uma coisa que não tem benefício. Parece religião. É como se estivessem engolindo hóstias”, argumenta. A maior bronca do médico é ver que as camadas mais populares estão embarcando nessa onda. “Trabalho há 12 anos com presidiários e nunca vi um caso de deficiência de vitaminas. Quando um preso me procura para pedir uma receita de suplementos, respondo que não estou lá para enganar ladrão”, conta. Em seu consultório, Varella pede sempre aos pacientes que deixem as vitaminas de lado, mas poucas vezes é atendido. A razão? “O homem quer ter saúde, mas não quer fazer sacrifícios. Seu sonho é tomar uma pílula mágica que resolva tudo. E isso é difícil de combater”, conclui.
Darlene Menconi, Lena Castellón, Monica Tarantino e Valeria Propato (PR)
Cremes enriquecidos |
No movimentado mercado dos produtos cosméticos, as
vitaminas mantêm a credibilidade. Os dermatologistas não duvidam dos
poderes da vitamina A ácida (ou ácido retinóico), usada para a renovação
da pele. O produto só deve ser utilizado sob orientação médica.
“Trata-se de uma conquista sólida”, confirma a dermatologista Ediléia
Bagatin, da Universidade Federal de São Paulo. A vitamina C (ou ácido ascórbico) também continua sendo muito usada nos consultórios. E faz sucesso nos produtos vendidos diretamente ao consumidor: as grandes marcas de cosméticos apostam no ingrediente e mesmo os laboratórios ajudam a desenvolver produtos que potencializam os benefícios da substância (a Roche criou recentemente a versão Stayc-50, um produto mais resistente ao processamento industrial). O ácido ascórbico ajuda a lutar contra o envelhecimento precoce, combatendo agentes que agridem a superfície da pele. Esses efeitos ainda não foram contestados por nenhum estudo, mas também não convencem todos os especialistas. Além disso, uma pesquisa americana, divulgada no ano passado, mostrou que até os cremes mais famosos continham menor concentração de ingredientes ativos, como as vitaminas A e C, do que indicava o rótulo. “Também há produtos contendo vitaminas em formas inadequadas para a pele”, acrescenta Ediléia. Nesse casos, o efeito esperado não acontece. |
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