O tratamento cada vez mais sofisticado durante e depois do coma permite que um número maior de pacientes retome suas atividades cotidianas após a experiência
Cilene Pereira, Mariana Brugger e Mônica Tarantino*
Conheça a história do ex-atleta Marcelo Didier, que ficou 15 dias em coma após um acidente de automóvel.
Na segunda-feira 16, o mundo foi
surpreendido com uma ótima notícia. Os médicos responsáveis pelo
atendimento do ex-piloto alemão de Fórmula 1 Michael Schumacher
anunciaram que ele finalmente começou a sair do coma – estado no qual se
encontrava desde 29 de dezembro do ano passado, quando sofreu um
traumatismo craniano após bater a cabeça em uma pedra quando esquiava
nos Alpes franceses. O heptacampeão mundial já responde a estímulos
sonoros, principalmente quando ouve a voz da mulher, Corinna, dos filhos
e dos médicos. Ele reage por meio de gestos com a cabeça e,
aparentemente, é capaz de enxergar também. A evolução positiva permitiu
que Schumacher deixasse o hospital onde estava internado, em Grenoble,
na França, e fosse transferido para uma clínica de reabilitação em
Lausanne, na Suíça. Não é possível dizer ainda quais serão seus
progressos daqui para a frente, mas a torcida por “Schumi”, como ele é
carinhosamente chamado, é grande. “Fique bem logo, Schumi”, escreveu em
seu Twitter o jogador de futebol Lukas Podolski, integrante da seleção
alemã e amigo pessoal do piloto.
O caso de Schumacher é o exemplo mais
famoso e recente dos resultados de um tratamento cada vez mais eficaz
oferecido pela medicina a pacientes que entram em coma. Até pouco tempo
atrás, indivíduos nas mesmas condições que o ex-piloto tinham
prognóstico ruim. Hoje, felizmente, multiplicam-se os relatos de pessoas
que regressam à vida depois de acidentes traumáticos. E muitas delas
voltam em condições de retomar o cotidiano de forma plena, como ilustram
as histórias contadas ao longo desta reportagem.
RECUPERAÇÃO
Schumacher começa a sair do coma. Já responde a estímulos
sonoros, principalmente à voz da mulher, Corinna
Schumacher começa a sair do coma. Já responde a estímulos
sonoros, principalmente à voz da mulher, Corinna
O primeiro avanço decisivo que contribuiu
para que isso fosse possível foi o melhor entendimento do que é o coma. A
palavra vem do grego kóme, que significa sono profundo. E é exatamente
isso o que acontece. O coma se caracteriza por um rebaixamento do nível
de consciência, que varia de acordo com a causa que o originou. Há uma
escala para medir sua gravidade, chamada de Escala de Glasgow. Ela vai
de 3 a 15. Quanto menor, pior o estado do paciente.
O processo do coma consiste, na verdade, em
um mecanismo de defesa do próprio organismo para desacelerar o
metabolismo cerebral e dar uma chance ao corpo para se recuperar da
agressão. E elas são diversas. “Entre as causas do coma estão
traumatismos cranioencefálicos, tumores cerebrais, acidentes vasculares
cerebrais, uso de substâncias tóxicas, sedativos, alterações das funções
hepáticas e renal e até da glicemia”, explica a médica intensivista
Viviane Cordeiro Veiga, da UTI Neurológica do Hospital Beneficência
Portuguesa, de São Paulo.
O tratamento se dá em duas frentes. A
primeira é preservar imediatamente o cérebro – o que foi feito, por
exemplo, assim que o piloto Schumacher deu entrada no hospital francês.
“Durante a fase aguda são tomadas medidas de proteção para reduzir ainda
mais a atividade do órgão e, consequentemente, suas necessidades
metabólicas e de aporte sanguíneo”, afirma o neurocirurgião Paulo
Niemeyer Filho, diretor do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer,
no Rio de Janeiro. “Com isso, evita-se ou reduz-se o aparecimento de
lesões secundárias, decorrentes de má oxigenação e da elevação da
pressão intracraniana, entre outros fatores.”
As intervenções nesse sentido são
realizadas com o auxílio de recursos sofisticados. Um deles é a
hipotermia. Por meio de um colchão térmico, baixa-se a temperatura
corporal do paciente, o que reduz ainda mais o metabolismo, contribuindo
para a preservação das células. Ao mesmo tempo, todo o comportamento
fisiológico é acompanhado com ferramentas precisas. Cateteres monitoram a
pressão intracraniana, a temperatura e o fluxo sanguíneo cerebral e até
a eventual presença de substâncias cujos níveis podem indicar o
surgimento de lesões.
Exames de imagem, como os aplicados em
Schumacher, também são usados para que os médicos tenham informações
mais claras da evolução do quadro. “O diagnóstico feito pela ressonância
magnética nos auxilia na identificação de lesões importantes”, diz o
neurocirurgião Paulo Henrique Aguiar, presidente da Academia Brasileira
de Neurocirurgia e diretor-técnico de neurocirurgia do Hospital Santa
Paula, de São Paulo. Outro equipamento, o Doppler transcraniano, oferece
um retrato do fluxo sanguíneo.
Simultaneamente, trata-se a origem do
problema que levou ao coma. “Podemos recorrer ao uso de drogas que
dissolvem coágulos dentro de artérias cerebrais em vítimas de
determinados tipos de acidente vascular cerebral isquêmico”, explica o
médico intensivista Fábio Guimarães de Miranda, coordenador do Centro de
Terapia Intensiva do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer.
O uso de todos esses recursos impulsiona os
casos de sucesso no tratamento, como a história do jovem Marcelo
Didier, de volta à vida após um grave acidente de carro (leia mais na
pág. 82). “As ferramentas de que dispomos estão permitindo a melhora do
prognóstico de pacientes com doenças neurológicas agudas”, afirma a
médica Gisele Sampaio Silva, coordenadora-médica do Programa de
Neurologia do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. De fato, de acordo
com o neurologista Antonio Falcão, coordenador do curso de terapia
intensiva neurológica da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, os
progressos são visíveis. Em especial, no que diz respeito aos pacientes
que entraram em coma após traumatismo craniano. “Nos últimos dez anos
está havendo redução da mortalidade desses doentes”, assegura.
O regresso ao nível normal de consciência é
algo que irá acontecer dependendo do sucesso no tratamento do problema
que originou o coma, de sua profundidade e também do atendimento
prestado durante sua instalação. Há, porém, alguns indicativos que dão
pistas de quem terá melhor ou pior prognóstico. “Jovens saudáveis,
pacientes vítimas de traumatismos cerebrais e aqueles em coma secundário
a intoxicação medicamentosa têm chance maior de boa recuperação do que
idosos e portadores de outras doenças graves associadas, como
enfermidades cardíacas e pulmonares”, explica o intensivista Miranda.
Conta também o condicionamento físico do paciente. Na opinião do
neurologista brasileiro Felipe Fregni, diretor do Centro de
Neuromodulação do Hospital de Reabilitação Spaulding, da Universidade de
Harvard, nos Estados Unidos, o campeão Schumacher, por exemplo, tem seu
histórico a seu favor. “Sua recuperação certamente será auxiliada pelo
fato de ele ter sido esportista, de ter mantido uma vida ativa mesmo
depois da aposentadoria e de ainda ser relativamente novo”, afirmou.
Outro fator importante para estimar o
futuro dos pacientes é o tempo de permanência em coma. “Quanto maior o
tempo, maior a probabilidade de existirem lesões graves com repercussão
funcional após o despertar”, diz o médico Daniel da Cruz Bezerra,
coordenador da Neurologia do Hospital Pró-Cardíaco, do Rio de Janeiro.
Alguns testes são realizados para medir a capacidade do paciente de
interagir com o ambiente. Entre eles está a resposta a estímulos sonoros
ou dolorosos. E o critério para determinar que ele realmente deixou o
coma é poder dar uma resposta clara e consciente às instruções externas.
Mas ter um pouco mais de certeza de quais
pacientes apresentam, de fato, potencial para se recuperar – em especial
aqueles com danos severos – é um dos aspectos que mais inquieta os
médicos. Pesquisadores da Universidade de Liége, na Bélgica,
apresentaram recentemente uma solução promissora. Em um artigo publicado
na revista científica “The Lancet”, uma das mais respeitadas do mundo,
descreveram uma experiência na qual demonstraram que o exame de imagem
de tomografia por emissão de pósitron, o PET, prevê com 74% de eficácia a
extensão da recuperação de um paciente em coma grave ao longo do ano
seguinte. “Vimos que esse exame pode revelar um grau de evolução que não
é visível nos testes convencionais. Isso pode contribuir
substancialmente na identificação de pacientes graves com potencial para
uma recuperação de longo prazo”, afirmou o médico Steven Laureys,
coordenador do estudo. Foram analisadas as respostas de 126 pacientes
com lesões cerebrais importantes. Um terço dos 36 doentes diagnosticados
como “não responsivos” pelos testes tradicionais, na verdade,
manifestavam atividade cerebral consistente com a presença de alguma
consciência, o que os habilitava com mais força a uma evolução positiva.
Uma revolução importante no socorro aos
doentes se deu na compreensão e maior atenção justamente ao período em
que eles começam a deixar o estado de coma em direção à vida normal. “Os
pacientes começam a acordar aos poucos quando se restabelecem das
lesões. Levam dias para voltar a falar, recuperar os movimentos, a noção
do que se passou”, diz o neurologista Eduardo Mutarelli, do Hospital
Sírio-Libanês, em São Paulo. Foi dessa maneira que acordou a missionária
Bianca Heiderich, do Rio de Janeiro, que nem sequer se lembrava de seu
nome (leia mais na pág. 85).
Recentemente, tornou-se consenso que esses
pacientes se beneficiam muito do auxílio multiprofissional para que,
gradativamente, retomem funções cerebrais eventualmente perdidas ou
limitadas por causa dos traumas sofridos. A partir dessa constatação,
começaram a surgir no mundo equipes formadas com esse objetivo. Um dos
centros que contam com esse apoio é o Hospital Samaritano, em São Paulo.
Lá, um time formado por neuropsicólogos, fisioterapeutas, terapeutas
ocupacionais e fonoaudiólogos, entre outros especialistas, presta o
atendimento necessário. “Temos, inclusive, oftalmologista especialista
em trauma”, informa o médico Renato Anghinah, coordenador do Centro de
Atenção e Reabilitação em Trauma Cranioencefálico e do Núcleo de
Neurologia do hospital paulistano. Foi com esse auxílio que o jovem
Vinícius Jeronymo conseguiu retomar a vida e as aulas de dança após um
mês em coma (leia mais na pág. 86).
Um dos alvos de maior preocupação é
devolver as habilidades cognitivas aos pacientes. “O mais difícil é
recuperar os processos cerebrais, como fazer uma operação matemática ou
entender o significado de conceitos abstratos”, afirma o neurologista
Felipe Fregni, de Harvard. No entanto, ter de volta a capacidade de
memória e de raciocínio é fundamental para retornar, por exemplo, à
carreira profissional. Por isso, o investimento para melhorar essa
capacidade é grande. “Trabalhamos muito para conseguir manter a reserva
cognitiva do paciente por meio do uso de técnicas especiais”, afirma o
neurocirurgião Jorge Pagura, chefe do Departamento de Neurociência da
Faculdade de Medicina do ABC, em São Paulo, e médico do Hospital São
Luiz, de São Paulo.
De acordo com o especialista, a ciência
promete aumentar o arsenal de ferramentas. Um dos caminhos em teste é o
uso da estimulação elétrica dos neurônios. O método vem sendo aplicado
com sucesso no tratamento de algumas enfermidades cerebrais. O objetivo é
fazer com que haja o reequilíbrio do funcionamento elétrico das regiões
associadas à memória e ao raciocínio. Há outras alternativas também.
“Hoje estamos tentando usar outras técnicas para acelerar novas conexões
no cérebro. Entre elas, aparelhos de realidade virtual e de
medicamentos”, informa o médico Felipe Fregni.
Colaborou Raul Montenegro
Fotos: Pedro Dias/Ag. Istoé;
Paul Gilham/Getty Images, Adriano Machado; Eduardo Xappia/Ag. Istoé,
Gabriel Chiarastelli; Airam Asli/Ag. Istoé; Guilherme Pupo
* Cilene Pereira (cilene@istoe.com.br), Mariana Brugger (marianabrugger@istoe.com.br), Mônica Tarantino (monica@istoe.com.br)
Nenhum comentário:
Postar um comentário