Participação social, o novo fantasma das elites
Reação feroz dos conservadores ao decreto de Dilma
revela incapacidade de compreender sociedades atuais e interesse de
manter política como monopólio dos “representantes”. Por Ladislau Dowbor
por Ladislau Dowbor
Justin Tallis / AFP
Manifestantes protestam em Londres, em 21 de junho, contra medidas de austeridade
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O texto na nossa Constituição é claro, e se trata
nada menos do que do fundamento da democracia: “Todo poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição.” Está logo no artigo 1º, e garante
portanto a participação cidadã através de representantes ou diretamente.
Ver na aplicação deste artigo, por um presidente eleito, e que jurou
defender a Constituição, um atentado à democracia não pode ser
ignorância: é vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver
cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com
representantes.
A democracia participativa em nenhum lugar substituiu
a democracia representativa. São duas dimensões de exercício da gestão
pública. A verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes,
sempre convocaram nos seus discursos a que população participe, apoie,
critique, fiscalize, exerça os seus direitos cidadãos. Mas quando um
governo eleito gera espaços institucionais para que a população possa
participar efetivamente, de maneira organizada, os agrupamentos da
direita invertem o discurso.
É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano
passado. As multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e
qualidade em mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às
ruas justamente porque as instâncias representativas não constituíam
veículo suficiente de transmissão das necessidades da população para a
máquina pública nos seus diversos níveis. Em outros termos, faltavam
correias de transmissão entre as necessidades da população e os
processos decisórios.
Os resultados foram que se construíram viadutos e
outras infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de
massa e paralisando as cidades. Uma Sabesp vende água, o que rende
dinheiro, mas não investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o
resultado é uma cidade rica como São Paulo que vive rodeada de esgotos a
céu aberto, gerando contaminação a cada enchente. Esta dinâmica pode
ser encontrada em cada cidade do país onde são algumas empreiteiras e
especuladores imobiliários que mandam na política tradicional,
priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da
população.
Participação funciona. Nada como criar espaços para
que seja ouvida a população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor
do que um residente de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama
quando chove. As horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no
trânsito diariamente as levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às
ruas. Mas o que as pessoas necessitam é justamente ter canais de
expressão das suas prioridades, em vez de ver nos jornais e na televisão
a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui, ao gerar canais de
participação, de aproximar o uso dos recursos públicos das necessidades
reais da população. Inaugurar viaduto permite belas imagens; saneamento
básico e tratamento de esgotos muito menos.
Mas se para muitos, e em particular para a grande
mídia, trata-se de uma defesa deslavada da política de alcova, para
muitos também se trata de uma incompreensão das próprias dinâmicas mais
modernas de gestão pública.
Um ponto chave, é que o desenvolvimento que todos
queremos está cada vez mais ligado à educação, saúde, mobilidade urbana,
cultura, lazer e semelhantes. Quando as pessoas falam em crescimento da
economia, ainda pensam em comércio, automóvel e semelhantes. A grande
realidade é que o essencial dos processos produtivos se deslocou para as
chamadas políticas sociais. O maior setor econômico dos Estados Unidos,
para dar um exemplo, é a saúde, representando 18,1% do PIB. A
totalidade dos setores industriais nos EUA emprega hoje menos de 10% da
população ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte, lazer,
segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da
população, temos aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento.
Investir na população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o
que mais rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas.
A característica destes setores dinâmicos da
sociedade moderna é que são capilares, têm de chegar de maneira
diferenciada a cada cidadão, a cada criança, a cada casa, a cada bairro.
E de maneira diferenciada porque no agreste terá papel central a água;
na metrópole, a mobilidade e a segurança e assim por diante. Aqui
funciona mal a política centralizada e padronizada para todos: a
flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam são
fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode
ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se
despacha para o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são
enlatados que se despacham. São formas densas de organização da
sociedade.
Eu sou economista, e faço as contas. Entre outras
contas, fizemos na Pós-Graduação em Administração da PUC-SP um estudo da
Pastoral da Criança. É um gigante, mais de 450 mil pessoas, organizadas
em rede, de maneira participativa e descentralizada. Conseguem reduzir
radicalmente, nas regiões onde trabalham, tanto a mortalidade infantil
como as hospitalizações. O custo total por criança é de 1,70 reais por
mês. A revista Exame publica um estudo sobre esta Organização
da Sociedade Civil (OSC), porque tenta entender como se consegue tantos
resultados com tão poucos recursos. Não há provavelmente instituição
mais competitiva, mais eficiente do que a Pastoral, se comparada com as
grandes empresas, bancos ou planos privados de saúde. Cada real que
chega a organizações deste tipo se multiplica.
A explicação desta eficiência é simples: cada mãe
está interessada em que o seu filho não fique doente, e a mobilização
deste interesse torna qualquer iniciativa muito mais produtiva. Gera-se
uma parceria em que a política pública se apoia no interesse que a
sociedade tem de assegurar os resultados que lhe interessam. A
eficiência aqui não é porque se aplicou a última recomendação dos
consultores em kai-ban, kai-zen, just-in-time, lean-and-mean, TQM e
semelhantes, mas simplesmente porque se assegurou que os destinatários
finais das políticas se apropriem do processo, controlem os resultados.
As organizações da sociedade civil têm as suas raízes
nas comunidades onde residem, podem melhor dar expressão organizada às
demandas, e sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas
públicas. Nos Estados Unidos, as OSCs da área da saúde administram
grande parte dos projetos, simplesmente porque são mais eficientes. Não
seriam mais eficientes para produzir automóveis ou represas
hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no controle das políticas
ambientais, no conjunto das atividades diretamente ligadas à qualidade
do cotidiano, são simplesmente indispensáveis. O setor público tem tudo a
ganhar com este tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios
políticos e empresariais que tanto defendem as parceiras
público-privadas (PPPs), ficarem tão indignados quando aparece a
perspectiva de parcerias com as organizações sociais. O seu conceito de
privado é muito estreito.
Eu, de certa forma graças aos militares, conheci
muitas experiências pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas.
Todos os países desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida,
de sistemas descentralizados e participativos, de conselhos
comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto não só torna as
políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que tanto as
instituições públicas como as empresas privadas que executam as
políticas tenham de prestar contas. Democracia, transparência,
participação e prestação de contas fazem bem para todos. Espalhar ódio
em nome da democracia não ajuda nada.
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