Massacre em Paris expõe o fracasso das superpotências no combate ao terror, obriga França e seus aliados a suprimir liberdades individuais e mostra que esta será uma guerra difícil de ser vencida
Amauri Segalla e Helena Borges
Poucas horas
depois dos atentados que mataram 129 pessoas em Paris, uma mulher parou
diante da boate Bataclan, um dos palcos das atrocidades, retirou um
bloco de anotações da bolsa e leu em voz alta um poema do inglês John
Donne: “Quando um homem morre eu sou atingido, porque pertenço à
humanidade. Jamais me pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por
ti”. Seria difícil encontrar versos mais apropriados. O massacre
perpetrado por terroristas do Estado Islâmico não atingiu apenas o
coração da França. Ele lacerou toda a civilização. Por mais que a
capital francesa tenha se tornado o alvo preferencial de um crescente
número de extremistas, é a humanidade que se quer atingir. Os
terroristas alvejaram quem não está em combate, aniquilaram os que não
se envolveram com guerra alguma. Ao atirar a esmo, abatendo qualquer um,
o EI acabou ferindo o mundo inteiro. A França não é uma escolha
aleatória. Apesar de todas as suas imperfeições, ela encarna, em
diversos aspectos, o que há de melhor nas sociedades desenvolvidas. Os
franceses valorizam as liberdades civis, prezam a diversidade de
religiões, respeitam o confronto de ideias. Com sua cólera sanguinária, o
Estado Islâmico pretende destruir os preceitos que, desde o Iluminismo,
subjugaram as trevas da era medieval. São essas trevas que os
terroristas pretendem agora reavivar.
BAR CARRILON
Uma rosa no vidro do local onde morreram 14 pessoas
A sociedade livre enfrentará, daqui por
diante, uma longa, difícil e perigosa jornada. Na quinta-feira 19, os
deputados franceses aprovaram, a pedido do presidente François Hollande,
a ampliação do estado de emergência no país pelo prazo de três meses. A
medida ainda precisa passar pelo Senado. Na prática, isso pode implicar
em uma série de reduções de liberdades individuais, com o fechamento de
pontos turísticos, a imposição de toques de recolher e a restrição à
circulação de veículos por determinadas áreas. O estado de emergência
não é previsto na Constituição francesa, mas foi criado por uma lei
aprovada em 1955, durante a luta dos argelinos pela independência. O
ponto mais polêmico é que ela permite a realização de prisões
administrativas e buscas sem mandado judicial. Até a quarta-feira, ao
menos 130 operações desse tipo haviam sido feitas.
CENTRO DE PARIS
Homem segura crianças em momento de pânico, que se espalhou pela cidade
Ao mesmo tempo, Hollande propõe mudanças na
Constituição para “combater melhor o terrorismo”, incluindo medidas
como o banimento de cidadãos franceses que retornam ao país, caso
representem algum tipo de risco, e a inclusão do estado de emergência no
texto. A imprensa francesa também especula que Hollande poderia alterar
os artigos que tratam da cessão de “poderes excepcionais” ao presidente
e do “estado de sítio”, em que parte das atribuições da polícia é
transferida aos militares. O cenário lembra muito os eventos que se
seguiram aos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos,
quando o Congresso americano aprovou, a pedido do ex-presidente George
W. Bush, leis que permitiram a espionagem de cidadãos a fim de combater
potenciais ameaças terroristas. Essas medidas culminariam, mais de uma
década depois, no escândalo de grampos da Agência Nacional de Segurança
(NSA), denunciados pelo analista Edward Snowden, hoje asilado na Rússia.
LYON
Franceses de mãos dadas em minuto de silêncio
Enquanto as consequências políticas e
sociais do terror ainda eram avaliadas, as polícias e as Forças Armadas
europeias realizavam operações para tentar capturar suspeitos de
ligações com os atentados de Paris. Na terça-feira 17, na Alemanha, a
polícia chegou a prender sete pessoas. Os detidos, seis homens e uma
mulher, estavam em Alsdorf, uma pequena localidade perto da cidade de
Aachen, próxima às fronteiras com a Holanda e a Bélgica. Todos acabaram
liberados horas depois. Na quarta-feira, uma operação da polícia
francesa com mais de 100 agentes atravessou a madrugada em
Seine-Saint-Denis, subúrbio de Paris. Ao invadirem o prédio onde se
escondia o belga Abdelhamid Abaaoud, de 28 anos, apontado como mentor
dos ataques, os policiais foram surpreendidos por uma mulher-bomba que
detonou os explosivos amarrados ao corpo. No tiroteio que se seguiu,
Abaaoud foi morto. A identificação ocorreu apenas no dia seguinte, após
análises de impressões digitais. Outras sete pessoas, acabaram detidas.
CAÇADA
Atirador se posicina atrás de igreja na busca por terroristas
Ao mesmo tempo, a França intensificou suas
ações contra bases do Estado Islâmico na Síria, bombardeando, com ajuda
dos caças Rafale, mais de 30 alvos apenas na noite de terça-feira. No
dia seguinte, o porta-aviões nuclear Charles de Gaulle partiu em direção
ao Mediterrâneo Oriental para dar apoio às operações na Síria. Com
outros 20 caças Rafale a bordo, ele triplicará a capacidade de ação
francesa na região.
PÓS BIN LADEN
Para entender o real significado do desafio
que se coloca diante do mundo civilizado é preciso conhecer o inimigo
que se quer derrotar. O Estado Islâmico é o oponente mais temerário que
França, Estados Unidos e outras potências ocidentais jamais enfrentaram.
O Isis nasceu em 1999 (leia artigo à página 54) e, desde então,
nutriu-se das guerras no Iraque e na Síria. A instabilidade política
nesses dois países, estimulada pelas investidas dos Estados Unidos,
serviu de combustível para o avanço dos novos terroristas. “A invasão
americana do Iraque desorganizou toda a região e permitiu a ascensão do
Estado Islâmico”, afirmou na semana passada o senador democrata Bernie
Sanders, pré-candidato à presidência dos Estados Unidos. “O Isis se
beneficiou da fadiga da guerra na Síria, do desespero dos combatentes e
dos vácuos de poder especialmente no norte do país”, disse à ISTOÉ
Christa Salamanda, especialista em assuntos da Síria da Universidade de
Nova York.
Quando os Estados Unidos mataram Osama Bin
Laden, em 2011, o presidente americano promoveu um espetáculo midiático.
Ele foi a público anunciar o fim da caçada ao líder da Al-Qaeda. “Daqui
por diante, o mundo será um lugar mais seguro”, disse um jubiloso
Obama. A declaração revelou-se uma farsa. “Em termos práticos, a morte
de Bin Laden teve pequeno impacto sobre os grupos jihadistas do tipo
Al-Qaeda, cuja maior expansão ocorreu depois”, escreveu o correspondente
de guerra Patrick Cockburn, no livro “A Origem do Estado Islâmico”. O
fim do terrorista que orquestrou os atentados de 11 de setembro de 2001
não só não teve qualquer efeito no combate ao terror como abriu espaço
para a ascensão do Isis. Após a morte de Bin Laden, o presidente
cometeria outro erro estratégico, ao afrouxar o cerco aos extremistas e
demonstrar certo desinteresse pela facção que ganhava corpo. “Os Estados
Unidos baixaram as armas e, desde então, não demonstraram qualquer
esforço para destruir o Estado Islâmico”, afirma William Harris,
professor de política na Universidade de Princeton e da Universidade do
Oriente Médio, em Ankara, na Turquia.
TROPAS
Poder militar francês: país vai intensificar ataques
CONEXÃO DIGITAL
O Estado Islâmico expandiu-se também porque
é filho da era digital. Os terroristas se apoiaram nas redes sociais
para divulgar crueldades como decapitações e afogamentos e passaram a
recrutar fanáticos por meio de páginas como o Facebook. Daí surge a
dificuldade em combater um inimigo que pode estar hoje em qualquer lugar
– na periferia de Paris, num café em Nova York, num trem em Madri. “O
Estado Islâmico representa um novo paradigma do terrorismo
internacional, principalmente pelo uso sistemático e estratégico do
cyberpower”, diz Sidney Leite, especialista em terrorismo da
Universidade de Leiden, na Alemanha. “Basta uma pessoa e um smartphone
carregado para fazer a guerra”, diz José Luiz Niemeyer, coordenador do
curso de Relações Internacionais do Ibmec-RJ. “ Um terrorista pode
organizar um atentado sem sair de um quarto de hotel.”
Para formar seu batalhão, os membros do
Isis adotam estratégias eficazes de sedução. No primeiro estágio são
localizados os alvos, jovens que demonstrem publicamente descrença na
democracia ou que adotem um discurso de que a sociedade caminha para a
perda dos valores. Na segunda etapa, em páginas e sites populares, os
membros iniciam conversas de forma aberta com esses alvos, sem revelar a
verdadeira intenção ou sequer que pertencem ao Estado Islâmico. A
abordagem se dá em questões voltadas para os conceitos de liberdade,
democracia e justiça. Aos poucos, o contato migra para áreas mais
particulares do mundo virtual: uma conversa restrita via Facebook ou
mensagens diretas no twitter. Quando se estabelece uma relação de
confiança, a comunicação se dá via whatsapp ou snapchat, aplicativos
preferidos pelos adolescentes. A partir daí começa o trabalho de
doutrinamento. O Estado Islâmico se apresenta como o caminho para
reencontrar a identidade perdida e descobrir os verdadeiros valores
espirituais. Como combater um inimigo tão atento à angústia dos jovens?
Como nenhum outro grupo terrorista – e como
a Al Qaeda jamais sonhou realizar – o Estado Islâmico levou a
espetacularização de suas ações ao grau máximo de eficiência. A produção
de vídeos macabros envolve aparelhos modernos, inúmeras câmeras, edição
e qualidade de imagem que se assemelham à estrutura de trabalho das
grandes empresas televisivas. Enquanto os pronunciamentos do saudita
Bin Laden eram feitos via webcam e transmitidos de uma caverna por um
surrado laptop, os membros do Isis usam os mais avançados aplicativos de
divulgação. “Os vídeos do Estado Islâmico se tornaram poderosas armas
de publicidade”, diz o professor Niemeyer, que aponta outra referência
histórica para efeitos de comparação. “As estratégias narrativas de
vídeo remontam aos anos 30 do século passado, em especial à famosa
cineasta nazista Leni Riefenstahl e ao próprio Joseph Goebbels, ministro
da propaganda de Hitler.”
XENOFOBIA
Os atentados em Paris mostraram que o mundo
poderá mergulhar em um período de sombras. A intolerância é o mal que
ameaça as conquistas que surgiram principalmente depois da integração
europeia. Todos os oito terroristas identificados eram cidadãos
europeus. Sabe-se que o passaporte sírio achado junto ao cadáver de um
nono extremista chegou a Paris traçando a rota dos refugiados, mas
autoridades suspeitam que o documento seja falso. Mesmo assim, Polônia e
Letônia começaram a impor barreiras para refugiados, enquanto o
primeiro-ministro eslovaco declarou que a imigração traz enormes riscos à
segurança. Mesmo Bélgica, França e Itália estão limitando o acesso de
estrangeiros, e no Reino Unido mais de 400 mil pessoas assinaram uma
petição pedindo o fechamento de fronteiras. “Provavelmente não será
permitido que imigrantes entrem na União Europeia da forma caótica como
vem ocorrendo”, afirma Demetrios Papademetriou, presidente do Instituto
de Políticas de Imigração no continente. “As conversas agora são todas
sobre o endurecimento dos controles de entradas.”
Se a crise dos refugiados está no foco das
atenções, os ataques podem ter consequências maiores para a comunidade
árabe que vive na Europa. Ela está mais exposta à falta crônica de
trabalho, à criminalidade e à radicalização religiosa. “O maior desafio é
que as agências de segurança consigam atuar de uma forma seletiva e
regrada, em vez de arbitrária”, diz o cientista político Stathis
Kalyvas, professor da Universidade de Yale. “Caso contrário, o problema
poderá ser multiplicado pela violência e discriminação.” O Estado
Islâmico não vai destruir a Europa, como anseiam os fanáticos, mas a
França e seus aliados precisam ser firmes no combate ao mais perverso
inimigo que o Ocidente jamais enfrentou.
Com reportagem de Camila Brandalise, Ludmilla Amaral, Raul Montenegro
Fotos: Iian Langsdon/EFE/EPA, Peter Dejong/AP Photo, Laurent Cipriani/AP Photo, Peter Dejong/AP Photo; Michel Spingler/AP Photo, DANIEL PSENNY/LE MONDE/AFP PHOTO; Thibault Camus/AP Photo; Christophe Ena/AP Photo; Thibault Camus/AP Photo, David Ramos/Getty Images; Pool/Reuters; KENZO TRIBOUILLARD/AFP PHOTO
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