Equipe busca veado-campeiro em SP temendo que animal já esteja extinto
'O. bezoarticus' foi avistado pela última vez em 1998 na região de Bauru.Cadela farejadora tentar localizar fezes do bicho em área de 2.712 hectares.
Igor Zolnerkevic Da ‘Unesp Ciência’
Abaixo reportagem da 10ª edição da revista “Unesp Ciência”. C
Cervo do campo - Um macho de Ozotoceros bezoarticus observado em fazenda no Mato Grosso do Sul. O único veado brasileiro diurno e de áreas abertas habita o Pantanal e o Cerrado. A espécie não é avistada em SP desde 1998 (Foto: Cristiano Burmester / Unesp Ciência)
“Fetch, Granada! Procura, menina!” Ao simples comando do estudante de biologia Pedro Peres, a cadela Granada dá início a sua busca. O alvo são pequenas e escuras bolotas de fezes, o único indicativo de que talvez naquela região estejam os últimos exemplares de veados-campeiros (Ozotoceros bezoarticus) do Estado de São Paulo. Estamos na Estação Ecológica Santa Bárbara, região de Bauru, local onde o animal foi avistado pela última vez por um pesquisador, em 1998. O campo de trabalho da cachorra de cinco anos não é desprezível: 2.712 hectares, a área da estação.
Quer a bolinha? Então, fetch! - Pedro Peres atiça Granada, mostrando a bola de tênis que a cadelavai ganhar no caso de conseguir encontrar fezes deveado (Foto: Cristiano Burmester / Unesp Ciência)
A investigação de Peres, estudante do quarto ano de biologia da Unesp de Jaboticabal, é parte de sua pesquisa de iniciação científica, mas envolve uma rede de cientistas graúdos em busca do veado perdido. A demanda partiu do biólogo Márcio Port Carvalho, do Instituto Florestal (IF) – instituição que administra a estação. No ano passado, quando ele colaborava na criação de um novo plano de manejo para a área, deu-se conta de que somente ali poderia ainda haver algum campeiro remanescente de São Paulo. Ele então procurou um dos maiores especialistas em veados do país, José Maurício Barbanti Duarte, biólogo e veterinário da Unesp em Jaboticabal, que, por sua vez, incumbiu Peres da tarefa de confirmar a existência do animal por meio da análise de DNA isolado de fezes.
Nossa reportagem acompanhou nos dias 30 de abril e 1º de maio a segunda tentativa de encontrar o material. Na primeira, em fevereiro deste ano, Peres e Granada, auxiliados por Carvalho e o funcionário do IF conhecido como Zé Magrelo, obtiveram dez amostras de fezes. No laboratório, Peres conseguiu extrair DNA de apenas duas das amostras. Mas ambas eram da outra espécie de veado que habita a estação – o catingueiro (Mazama gouazoubira), a mais comum e maleável das oito espécies de cervídeos que existem no Brasil.
Quando chegamos, logo após o almoço, a equipe estava animada. No dia anterior e naquela manhã, Peres já havia saído com Zé Magrelo e Granada e conseguido coletar três amostras. Eles também chegaram a avistar um veado, porém longe demais para identificar se era catingueiro ou o tão procurado campeiro.
Enquanto calçamos nossas botas e perneiras de couro – proteções contra picadas de cobra –, Peres veste Granada com um colete preto estampando o logotipo do Nupecce (Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos) da Unesp. O uniforme é para evitar que a cadela treinada seja confundida com um cão qualquer. Animais domésticos são proibidos por lei de entrar em unidades de conservação, e o uso de cães farejadores em pesquisas ainda causa controvérsia entre biólogos. Granada acompanha Peres para todo lado, olhando-o com ansiedade e abanando o rabo. Mas em nenhum momento late ou avança.
Estação Ecológica Santa Bárbara, região de Bauru, tem 2.712 hectares (Foto: Cristiano Burmester / Unesp Ciência)
Granada é uma mistura de pastor holandês com pastor malinois, comprada do canil Caraibas em Goiânia (GO), onde foi pré-treinada. Do local já saíram outros cães farejadores de fezes de animais silvestres. Foi escolhida pelo soldado Ricardo Casarotti, da Polícia Militar de Ribeirão Preto, que completou seu treinamento, condicionando Granada ao cheiro das fezes de veado. “Ela está com a gente há dois anos. Este é o quarto trabalho dela”, diz Peres.
O campeiro não consegue entrar em mata muito fechada. O macho ficaria com sua galhada ramificada enroscada nas árvores. Se esses veados ainda estão em Santa Bárbara, creio que não devam ser mais que dez"
José Maurício Barbanti Duarte, biólogo e veterinário da Unesp em Jaboticabal
Ele abre a porta traseira da caminhonete branca 4x4 do IF e convida: “E aí menina, vamos?”. Muito comportada, a cadela deita-se sobre um pano branco no banco traseiro e dorme, como se soubesse que precisa guardar suas forças para o exercício extenuante que a aguarda. Seguimos pelas estradas de terra que cortam a estação até chegar ao trecho de vegetação que seria o ambiente natural do veado-campeiro, um dos três maiores remanescentes de campo de cerrado do Estado de São Paulo.
“Aqui era tudo assim no passado”, diz Carvalho, quando chegamos ao campo. Não dá para acreditar até ver fotos do mesmo local em 1975. Da vegetação que antes ocupava toda a região, sobrou apenas um trecho quase retangular de aproximadamente 200 hectares.
O campo é comprimido de um lado por uma floresta de eucalipto, plantada antes de a área ser transformada em unidade de conservação, em 1984. Do lado adjacente, o campo termina contíguo à fronteira da estação com as silenciosas florestas de pinheiros da Estação Experimental de Águas de Santa Bárbara, também administrada pelo IF. Ali, empresas licenciadas pelo governo exploram a resina e a madeira de Pinus elliottii. Nos outros dois lados, o campo faz fronteira com uma mata de cerrado mais fechada, que “engoliu” ao longo de décadas o campo natural e hoje é a vegetação predominante na estação.
No mato com cachorroUma sessão de farejamento sempre começa com Peres colocando uma coleira em Granada. “É o liga-desliga dela”, explica. Granada agora sabe que está na hora de trabalhar. Ele a atiça mostrando uma bola de tênis profissional, mas sem deixar que ela a pegue. “Ela é maluca pela bolinha”, conta. Pegá-la será a recompensa da cadela por achar as fezes. “Você quer? [mostra a bolinha], você quer?”
“Au!”, responde Granada. Peres finge que lança a bola, e a cadela sai correndo. “Ela não é boba, sabe que guardo a bolinha no meu bolso, mas também sabe que quando faço isso está valendo a brincadeira”, diz.
“Fetch, garota! Procura, menina! Vamos, vamos! Cadê o cocô?”, Peres vai gritando enquanto a segue pelo campo. “Fetch” é um dos comandos, em inglês mesmo, que Granada foi condicionada a obedecer. Significa “procurar”. Segundo o pesquisador, é importante incentivar o animal, “fazer festa para ela”, mas sem exagerar. Em princípio, Granada deve latir apenas quando encontra realmente as fezes, mas se pressionada pode dar alarmes falsos. “Conforme vamos andando, ela vai circulando a gente e cobrindo uma área muito maior que a da nossa trilha”, explica Peres.
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Depois de dez minutos no sol forte do campo aberto, onde o capim batendo em seu peito é um obstáculo constante, Granada está exausta, ofegante. Seu olfato fica prejudicado e ela não acha mais nada. Por isso é importante fazer uma pausa para ela descansar e beber água.
Voltamos para a caminhonete e vamos ao lugar onde Peres e Zé Magrelo avistaram um veado pela manhã. Há rastros do animal no solo arenoso da estrada. “Choveu anteontem e esses bichos andaram aqui entre ontem e hoje”, diz Carvalho, mas permanece a dúvida sobre de qual veado se trata. “O campeiro é maior que o catingueiro, então em princípio teria tanto pegadas quanto fezes maiores”, explica Peres. “Mas o Maurício [Barbanti] doutrina a gente a não confiar nisso para determinar a espécie. O único que dá para determinar assim é o cervo-do-pantanal, que tem um patão e um cocozão enorme.”
Barbanti e seus alunos já realizaram medições de muitas amostras de fezes e fizeram espécies diferentes em cativeiro pisarem em um mesmo tipo de solo para analisarem suas pegadas. Concluíram que não dá para distingui-las apenas observando esses vestígios.
Peres decide buscar fezes na mata de arbustos de cerrado no lado direito da estrada. Ele propõe a mim outro jeito de atiçar a Granada. “Pega!”, grita Peres, lançando a bolinha para mim. Granada corre atrás de mim, mas antes de me alcançar, sem que ela perceba, coloco a bolinha sob meu chapéu na cabeça. Mostro as mãos vazias e Granada sai em busca das fezes. Cinco minutos depois, ela para embaixo de um dos arbustos e late. Achou as primeiras amostras da tarde e imediatamente recebe a recompensa e carinhos de Peres. Granada abocanha a bolinha de tênis e se deita para mordê-la feliz da vida.
Coletadas com gravetos para não haver contaminação, as cíbalas (excrementos) são condicionadas em tubos de vidro e levadas ao laboratório para checar se são de campeiro (Foto: Cristiano Burmester / Unesp Ciência)
As fezes de veado são sempre compostas de várias pequenas cíbalas, arredondadas, mas compridas, como caroços de azeitona preta. Peres tem o cuidado de nunca se encostar nas cíbalas, para não contaminá-las com seu próprio DNA. Usa gravetos que encontra no meio da folhagem para colocá-las dentro de um tubo de vidro, onde há sílica para absorver a umidade. Os tubos são acondicionados em um resfriador com gelo e depois, na volta do campo, serão guardados em geladeira. É importante resfriar as amostras para paralisar a atividade de fungos e bactérias que degradam o material genético contido nas fezes. Peres também marca em seu GPS as coordenadas de onde encontra as amostras.
As cíbalas recém-encontradas fazem barulho quando caem dentro dos tubos de vidro – sinal de que estão secas e velhas, e o DNA nelas pode estar comprometido. “Quanto mais frescas, melhor, pois dá para extrair um DNA pouco degradado para trabalhar no laboratório”, explica Peres.
O cercado do dr. CoryFazemos ainda mais uma busca pela área. Depois de 20 minutos sem encontrar nada, Peres e Carvalho resolvem voltar à estrada. Os rastros sugerem que o veado visto naquela manhã correu pela estrada rente a uma cerca de tela de arame que segue paralela. Trata-se do “cercado do dr. Cory” – ruínas de experimentos conduzidos pelo biólogo Cory Teixeira de Carvalho entre 1974 e 1990, que estudou no período a fauna local.
Hoje com 82 anos, e professor aposentado da Unicamp, Cory contou que, sem radiocolares ou qualquer outro equipamento sofisticado que os zoólogos de hoje têm a sua disposição, ele teve de improvisar para observar e estudar os animais. O jeito que ele encontrou foi construir um cercado de duzentos hectares no meio do que na época era campo de cerrado. Ali ele mantinha os animais em semicativeiro e chegou a reunir 12 campeiros de uma só vez. O método do pesquisador até funcionou por um tempo, mas os cervos encurralados começaram a atrair cães caçadores das fazendas próximas que andavam soltos pela região. “O cachorro entrava no cercado, matava o veado e esperava seu dono, que obviamente não vinha; tive que enterrar muitos veados mortos assim.”
Sem conseguir evitar os ataques, Cory acabou desistindo dos veados-campeiros de Águas de Santa Bárbara, em 1980, e passou a estudar o lobo-guará. Seu cercado, porém, continua de pé, hoje coberto pelos arbustos de cerrado. O novo plano de manejo prevê a retirada dele, pois atrapalha a fuga de veados como o que Peres e Zé Magrelo avistaram de longe.
As pegadas sugerem que aquele animal correu pela estrada sempre na direção do cercado, como se buscasse sua entrada. Peres e Carvalho acreditam que ele pode ter conseguido entrar e resolvem fazer a última busca do dia lá dentro. Granada de fato encontra mais duas amostras, mas ambas estão tão velhas quanto a primeira da tarde. Todas foram encontradas embaixo de árvores ou de arbustos, algo muito estranho para um veado-campeiro, que, como diz o nome, prefere o campo aberto.
“Naturalmente, o veado-campeiro não entraria na sombra do cerrado nem para descansar”, explica Peres. “Mas há registros de que com a pressão de caça e a falta de habitat, o bicho pode mudar de comportamento.” Na verdade, os pesquisadores estão contando com essa possibilidade na esperança de encontrar ainda exemplares remanescentes.
Isso porque, em condições habituais, se o campeiro habita uma região, ele normalmente é fácil de ser avistado, ao contrário de outros veados brasileiros, que são em geral “bichos fantasmas”, como conta Peres. Diferentemente dos outros, ele se sente seguro onde tem uma visão ampla de tudo ao seu redor e bastante espaço para correr. “O campeiro vê a floresta como uma parede”, explica Barbanti. Ele sabe que é na mata fechada que vive seu predador, a onça. Se ele desaparece da vista, é um forte indício de que tenha mesmo desaparecido da estação, afirma.
A equipe insiste na busca porque outras pesquisas em áreas de conservação afetadas por caça ilegal e visitação intensa de pessoas mostraram que mamíferos tendem a se tornar mais furtivos, locomovendo-se à noite e em mata fechada. Um estudo no Parque Nacional de Brasília registrou campeiros vivendo dessa forma. “Mas mesmo essa mudança de comportamento tem limite”, explica Barbanti. “O campeiro não consegue entrar em mata muito fechada. O macho ficaria com sua galhada ramificada enroscada nas árvores. Se esses veados ainda estão em Santa Bárbara, creio que não devam ser mais que dez.”
Para piorar a situação, na capoeira da estação ecológica espreitam onças pardas em uma quantidade acima do normal. Ao contrário de sua prima mais especializada, a onça-pintada, a parda é uma generalista que se adapta bem a ambientes diferentes. Com a ocupação humana na região, muitas migraram para a estação. Esse desequilíbrio entre presa e predador pode ter sido fatal para o campeiro.
Peres e companhia sentiram um sopro de esperança na manhã seguinte, quando retornamos ao interior do cercado. Após treze minutos de busca, Granada latiu. “Márcio, vem cá ver isso! É de hoje!”, gritou Peres apontando para um monte considerável de cíbalas embaixo de um pinheiro invasor no meio do cerrado. A amostra ainda cheirava e quando colocada no tubo de vidro chegou a embaçá-lo por estar quente. “É fresca, cheia de muco intestinal, onde está o DNA. Essa eu garanto 100% no laboratório e pelo tamanho dela… Se esse cocô não for do bicho…”
O resultado, que só sairia dali a duas semanas, desapontou o jovem pesquisador. Era de veado-catingueiro. Mas ele não se deu por vencido. “Zé Magrelo, que chegou a trabalhar com o dr. Cory e com os bichos no cercado, sabe descrever perfeitamente o campeiro e diz ter visto alguns recentemente”, conta Peres.
A ponderação fica por conta do mestre. “Identificar uma espécie por contato visual é complicado”, observa Barbanti. “Se for um macho até fica fácil distinguir um catingueiro de um campeiro, que tem a galhada ramificada. Já as fêmeas são parecidas de longe. A comprovação só vai vir com um perfil de DNA compatível com a espécie ou uma foto.”
Carvalho tem armadilhas fotográficas funcionando na estação ecológica, mas elas flagraram apenas catingueiros, por enquanto. Barbanti pretende instalar mais algumas. Além disso, se conseguir os recursos necessários, pretende sobrevoar a área de helicóptero. “Visto de cima, o modo como o campeiro corre e mexe a cauda é flagrante”, diz. “Mas, por enquanto, tudo nos leva à extinção do bicho.”
Copyright: Unesp Ciência
OBS: Inacreditável, mais este viado está extinto em São Paulo....
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