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9.02.2010
Perigos dos medicamentos antipsicóticos
perigos dos medicamentos antipsicóticos
Kyle Warren, de seis anos, brinca com peças no consultório de seu pedriatra
Aos 18 meses de idade, Kyle Warren começou a tomar diariamente um medicamento antipsicótico por ordens de um pediatra que tentava conter os graves episódios de descontrole emocional da criança.
Assim teve início uma jornada conturbada para o garoto, de um médico a outro, de um diagnóstico a outro, envolvendo uma quantidade ainda maior de medicamentos. Autismo, desordem bipolar, hiperatividade, insônia, transtorno negativista desafiante. O regime diário de pílulas do garoto multiplicou-se: o antipsicótico Risperdal, o antidepressivo Prozac, dois remédios para dormir e um para distúrbio do déficit de atenção. E tudo isso quando ele tinha apenas três anos de idade.
Kyle permanecia sedado, babando constantemente e ficou obeso devido aos efeitos colaterais dos medicamentos antipsicóticos. Embora a mãe dele, Brandy Warren, não soubesse mais o que fazer quando recorreu ao tratamento à base de drogas, ela começou a se preocupar com a personalidade alterada de Kyle.
“Tudo o que eu tinha diante de mim era um garotinho drogado”, diz Brandy Warren. “Eu não tinha mais o meu filho. Era como se eu olhasse nos olhos dele e visse apenas um vazio”.
Hoje, Kyle, que tem seis anos de idade, está na quarta semana da primeira série, tendo tirado notas altas nas suas primeiras provas. Ele é barulhento e está mais magro. Tendo deixado gradualmente de tomar os medicamentos, graças a um programa da Universidade Tulane cujo objetivo é ajudar famílias de baixa renda cujos filhos têm problemas mentais, Kyle atualmente ri facilmente e faz brincadeiras com a sua família.
Brandy Warren e os novos médicos de Kyle apontam para o seu progresso notável – e para um diagnóstico de desordem do déficit de atenção com hiperatividade, que é mais comum nas crianças – como prova de que aquele tipo de medicamento não deveria jamais ter sido receitado para ele.
Atualmente Kyle toma apenas um remédio, o Vyvanse, para desordem do déficit de atenção. A mãe dele revelou os registros médicos do garoto para ajudar a documentar uma tendência que alguns especialistas em psiquiatria estão achando cada vez mais preocupante: a tendência de certos médicos a prescrever automaticamente drogas mais potentes para o tratamento de crianças muito novas, e até mesmo bebês, cujos sintomas raramente exigem tais medidas.
Mais de 500 mil crianças e adolescentes dos Estados Unidos atualmente tomam drogas antipsicóticas, segundo um relatório divulgado em setembro pela Administração de Alimentos e Remédios (FDA). O uso dessas drogas está aumentando não apenas entre adolescentes mais velhos, que estão na idade em que se acredita que a esquizofrenia se manifeste, mas também entre dezenas de milhares de crianças em idade pré-escolar. Um estudo da Universidade Columbia revelou recentemente que, entre 2000 e 2007, dobrou o índice de prescrições de drogas antipsicóticas a crianças de dois a cinco anos de idade que estão cobertas por plano particular de saúde. Somente 40% dessas crianças foram submetidas a uma avaliação de saúde mental apropriada, o que viola os padrões de prática médica estabelecidos pela Academia Norte-americana de Psiquiatria Infantil e de Adolescentes.
“Há uma quantidade enorme de crianças tomando uma quantidade excessiva dessas drogas muito prematuramente”, alerta Mark Olfson, professor de psiquiatria clínica e principal pesquisador do estudo financiado pelo governo.
Segundo alguns médicos e especialistas, tais tratamentos radicais são de fato necessários para ajudar crianças novas com problemas graves a permanecer em segurança em escolas ou creches. Em 2006, a FDA aprovou o tratamento de crianças a partir de cinco anos de idade com Risperdal caso elas apresentassem autismo e comportamento agressivo, tendências a ferirem a si próprias, crises de ira ou grandes oscilações de humor. Duas outras drogas, o Seroquel, da AstraZeneca, e o Abilify, da Bristol-Myers Squibb, podem ser usadas em crianças a partir de dez anos de idade que apresentem desordem bipolar ou depressão maníaca.
Mas muitos médicos dizem que a prescrição desses remédios a crianças cada vez mais novas representa graves riscos para o desenvolvimento tanto dos corpos quando dos cérebros em fase de rápido crescimento. Os médicos têm permissão para prescrevê-las para “off-label use” (prescrição de medicamentos para uma indicação não comprovada), incluindo a crianças em idade pré-escolar, ainda que as pesquisas não tenham demonstrado que elas sejam seguras ou efetivas para crianças. Há uma tendência bem maior de medicar os meninos do que as meninas.
O médico Ben Vitiello, chefe de tratamento e pesquisas preventivas para crianças e adolescentes do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, diz que é extremamente difícil diagnosticar apropriadamente problemas desse tipo em crianças novas devido à variabilidade emocional apresentada por estas.
“Este é um fenômeno recente, motivado em grande parte pela percepção equivocada de que esses remédios são seguros e bem tolerados”, afirma ele.
Até mesmo os médicos que mais relutam em prescrever essas drogas deparam-se com um marketing intenso que transformou os antipsicóticos nas drogas mais lucrativas do país, e cujas vendas só no ano passado foram de US$ 14,6 bilhões, com grandes promoções voltadas para o tratamento de crianças. Na sala de espera do primeiro psiquiatra infantil de Kyle, as crianças brincavam com peças de Lego que traziam estampada a palavra Risperdal, uma droga fabricada pela Johnson & Johnson. Desde então a empresa perdeu a sua patente da droga e deixou de fornecer os brinquedos.
Greg Panico, um porta-voz da companhia, diz que os Legos não eram fornecidos com a intenção de que as crianças brincassem com eles, mas sim como material de propaganda.
O psiquiatra Lawrence L. Greenhill, presidente da Academia Norte-americana de Psiquiatria Infantil e de Adolescentes, preocupado com a falta de pesquisas na área, recomendou a adoção de um registro nacional para que se possa acompanhar durante os próximos dez anos crianças em idade pré-escolar que tomam drogas antipsicóticas.
“A psicoterapia é a base fundamental para o tratamento de crianças em idade pré-escolar que apresentam desordens mentais graves, e os antipsicóticos consistem em uma terapia de apoio – e não o contrário”, afirma Greenhill.
Mas é mais fácil medicar as crianças do que pagar um terapeuta familiar, um fato que foi evidenciado por um estudo da Universidade Rutgers, do ano passado, que revelou que crianças de famílias de baixa renda, como Kyle, têm uma probabilidade quatro vezes maior de receber medicamentos antipsicóticos do que crianças cobertas por seguro de saúde particular.
Dados do Texas Medicaid obtidos pelo jornal “The New York Times” revelaram que no ano passado foi dispendido um recorde de US$ 96 milhões (R$ 167,7 milhões) com medicamentos antipsicóticos para adolescentes e crianças – incluindo três bebês não identificados aos quais se administraram os remédios antes que eles tivessem completado um ano de idade.
Além disso, ao que parece, crianças de orfanatos são medicadas com mais frequência, o que fez com que um comitê do senado norte-americano, em junho, solicitasse ao Departamento de Responsabilidade Governamental que investigasse tais práticas.
Nos últimos anos, as preocupações dos médicos fizeram com que alguns Estados, como a Flórida e a Califórnia, impusessem restrições aos médicos que desejam prescrever antipsicóticos a crianças novas, exigindo a opinião de um segundo médico, especialmente no caso daqueles que fazem parte do sistema Medicaid. Alguns Estados anunciaram que, como resultado disso, as prescrições de antipsicóticos a crianças estão em queda.
Um estudo divulgado em julho por 16 diretores médicos estaduais do Medicaid recomendou que mais Estados exijam uma segunda opinião médica em tais casos, bem como consultas independentes com outros médicos para garantir que as prescrições sejam feitas de forma apropriada. A FDA também passou a reforçar as advertências quanto ao uso de algumas dessas drogas para o tratamento de crianças.
Kyle foi resgatado da sua medicação permanente por um programa terapêutico chamado Serviço e Apoio à Primeira Infância, criado na Luisiana por psiquiatras infantis da Universidade Tulane, da Universidade do Estado da Luisiana e pelo governo daquele Estado. O programa fornece a crianças que apresentam problemas e aos seus pais serviços de apoio social e de saúde mental.
A médica Mary Margaret Gleason, a professora de pediatria e de psiquiatria infantil da Universidade Tulane que tratou de Kyle dos três aos cinco anos de idade, quando a medicação foi gradualmente reduzida, diz que não havia nenhuma razão médica válida para prescrever drogas antipsicóticas ao garoto, ou a qualquer criança de dois anos de idade.
“Fatos como esse são preocupantes”, diz ela.
Gleason afirma que a situação atual de Kyle demonstra que ele provavelmente jamais teve distúrbio bipolar, autismo ou psicose. Os médicos atualmente dizem que as crises de ira de Kyle eram provocadas por problemas familiares e atraso na fala, e que nada disso justificava o uso de antipsicóticos.
“Eu jamais deixarei os meus filhos tomarem essas drogas de novo”, afirma Warren, 28, tentando controlar as lágrimas. “Eu não percebi o que estava fazendo”.
Edgardo R. Concepcion, o primeiro psiquiatra infantil a tratar de Kyle, disse que acreditava que as drogas poderiam ajudar em casos de depressão maníaca ou distúrbio bipolar em crianças novas.
“Não é fácil fazer isso e prescrever essas medicações pesadas”, disse ele em uma entrevista. “Mas quando eles me procuraram, não tive escolha. Tive que ajudar essa família, essa mãe. Eu não tive escolha”.
Warren admite que recorreu aos remédios para Kyle porque não estava preparada para ser mãe aos 22 anos de idade, vivendo em circunstâncias difíceis, e estando frequentemente distraída.
“Era complicado”, diz ela. “A situação era muito tensa”.
Kyle era um bebê fisicamente saudável, mas ele tinha medo de certas coisas. Ela passava horas enfileirando brinquedos. Quando estava contrariado, gritava, arremessava objetos, e chegava até mesmo a bater a cabeça contra a parede e o assoalho – um comportamento que não é incomum em bebês, mas que é assustador.
“Eu o levei ao médico, que me disse que eu precisava apenas discipliná-lo”, conta Warren. “Mas como é que a gente disciplina um bebê de seis meses?”.
Quando o comportamento de Kyle piorou depois que o irmão dele nasceu, Warren procurou o pediatra Martin J. DeGravelle.
“Após passar cinco minutos sentado com Kyle, ele me olhou e disse: 'O menino tem autismo, não há nenhuma dúvida quanto a isso'”, diz Warren.
Os registros da clínica de DeGravelle dizem que Kyle era hiperativo, predisposto a crises de ira, que ele falava apenas três palavras e “não interagia bem com desconhecidos”.
DeGravelle receitou Risperdal. Naquela época, o Risperdal havia sido aprovado pela FDA apenas para adultos com esquizofrenia ou episódios maníacos agudos. No ano seguinte a medicação foi aprovada para certas crianças, a partir de cinco anos de idade, que sofressem de autismo ou apresentassem comportamento agressivo extremo. O remédio jamais foi aprovado pela FDA para uso em crianças com menos de cinco anos de idade, embora os médicos possam receitá-lo para “off-label use”.
“Naquela época Kyle estava muito agressivo e ficava agitado com facilidade, de forma que tentamos encontrar uma medicação capaz de controlá-lo mais facilmente, já que não é possível argumentar com uma criança de 18 meses de idade”, disse DeGravelle em uma entrevista por telefone.
Mas Kyle não era autista – segundo várias avaliações, incluindo uma que DeGravelle recomendou que fosse feita por um neurologista. “Kyle não possui aquele déficit de interação social que é característico de crianças autistas”, diz Gleason. “O que ele queria era uma atenção mais positiva da mãe”.
“Ele tinha problemas para se comunicar”, explica Gleason. “Kyle não contava com pessoas para ouví-lo”.
Após a consulta com o neurologista, o diagnóstico mudou para “transtorno negativista desafiante” e ele continuou tomando Risperdal.
“Sim, eu pedi que o remédio fosse receitado”, admite Warren. “Mas eu já estava no limite, sem saber mais o que fazer”.
DeGravelle sugeriu que ela marcasse uma consulta para o menino com Concepcion, que diagnosticou Kyle como sendo portador de distúrbio bipolar.
“Os pais de muitas crianças que eu examino encontram-se realmente frustrados”, disse Concepcion em uma entrevista por telefone. “Especialmente as mães costumam chegar apavoradas e desesperadas para conseguir ajuda. Os seus filhos agem de fato como psicóticos”.
Concepcion conversou também com o médico Charles H. Zeanah, um professor da Universidade Tulane que que desaprovou tanto o diagnóstico quanto o tratamento prescrito.
“Eu nunca vi uma criança em idade pré-escolar com distúrbio bipolar nos meus 30 anos como psiquiatra infantil especializado em saúde mental da primeira infância”, afirma Zeanah.
“Esse diagnóstico foi polêmico, eu reconheço isso”, disse Concepcion. “Mas se a gente se propõe a receitar tais remédios a essas crianças, é necessário contar com um diagnóstico que embase o nosso plano de tratamento. Não se pode deixar de fornecer um diagnóstico e prescrever a eles o antipsicótico atípico”.
Ele receitou mais quatro remédio para Kyle.
A foto da festa do aniversário de três anos de Kyle mostra um garoto de faces rosadas que engordou, atingindo um peso de 22,2 quilogramas. Crianças que tomam medicações antipsicóticas correm o risco de ficarem obesas e de sofrerem de diabetes. Na foto, Kyle sorri. Ele estava sedado.
“A casca dele estava lá, mas o espírito não”, diz Warren. “E eu não gostava nada disso”.
Concepcion indicou Kyle para o programa de apoio à primeira infância, que desde 2002 ajudou cerca de 3.000 crianças em idade pré-escolar de famílias de baixa renda que corriam risco de padecer de doença mental.
A fala de Kyle melhorou. Ele passou a manifestar menos crises de ira.
“Eles começaram a trabalhar conosco como família”, conta Warren, que também recebeu aconselhamento para pais. “Isso ajudou”.
O tratamento de Kyle foi dirigido por Gleason, uma médica formada pela Universidade Columbia que liderava uma equipe responsável pela redação de diretrizes práticas para o tratamento psicofarmacológico de crianças muito novas.
“As famílias às vezes precisam de uma solução rápida”, explica Gleason. “E esta rota frequentemente leva à prescrição de medicamentos. Mas eu temo que quando uma criança seja tratada por alguém que receite remédios mas não ofereça terapia, isso possa fechar a porta para um caminho capaz de provocar mudanças duradouras”.
Sem tomar mais a maioria dos remédios, Kyle passou a perder peso e o seu comportamento melhorou. A vida de Warren também melhorou. Ela conheceu um homem, e eles mudaram-se para uma casa própria perto de Opelousas, uma pequena cidade de 25 mil habitantes. No último sábado, os dois se casaram.
Na nova casa, Kyle e o irmão, Jade, correm e brincam enquanto a babá os observa. As roupas deles estão cuidadosamente dobradas no quarto que dividem. Eles respondem com frequência: “Sim senhora”, ou “Sim senhor”.
“Eles são muito respeitosos, mas são crianças hiperativas”, diz Warren. “Assim que deixou de tomar a medicação, ele voltou a ser Kyle. Ele é uma pessoa inteligente, barulhenta, engraçada, inteligente e ativa. Quero dizer, não temos jamais momentos de tédio. Kyle ainda apresenta alguns problemas de comportamento. Mas ele é como qualquer outra criança de seis anos de idade”.
Kyle faz uma pausa para ler um boletim do final do seu ano do jardim de infância, com uma nota “A”.
“Excelente trabalho, Kyle!”, escreveu a sua professora do jardim de infância.
Duff Wilson Opelousas, Luisiana (Estados Unidos)
New York Times
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