O vício, à semelhança da virtude, é um hábito. Só que, ao contrário da virtude, caracteriza
uma disposição estável para a prática de algum “mal”. Assim, por exemplo, fumar é um vício,
caracterizado pelo hábito de fumar, considerado prejudicial à saúde.
Ambos, virtude e vício, são em parte inatos e adquiridos. Inatos, enquanto encontram em nós
uma predisposição, às vezes até genética ou hereditária, seja para a prática do bem seja para a
prática do mal. Adquiridos, uma vez que se desenvolvem, a virtude, em decorrência de muito
esforço; o vício, que também cria raízes profundas e até dependência física, por concessões
nossas e influências externas ou do ambiente.
Uma vez instalado e disseminado o vício, em geral se tenta combatê-lo. Assim também, por
exemplo, com relação ao cigarro, há hoje em dia inúmeras campanhas antitabagistas, de caráter
paliativo, pois, sem dúvida, é sempre melhor nem contrair vícios. Prevenir ainda é o melhor
remédio: “difficulter reciduntur vitia, quae nobiscum creverunt” (Sêneca, De ira, II, 18).
Dificilmente desaparecerão os vícios que cresceram conosco...
O que interessa aqui é a pedagogia no combate ao vício, ou, de modo geral, ao erro, seja sob
a conotação de crime (“serial killer”, pistoleiro profissional, capangas, ambiente de corrupção,
etc.), dependência ou pecado. Trata-se de apelar, coerente e persuasivamente, para a capacidade
de lidar com sentimentos de ira, ansiedade, depressão, como o fazem, há décadas, os Alcoólicos
Anônimos e outros grupos de recuperação. De modo geral, parece que a pedagogia não tem
inspirado renovações metodológicas significativas de combate ao vício. Um programa de
televisão, por sinal muito bem feito, de combate à violência, foi seguido, na programação,
justamente de um filme de extrema violência. Daqueles em que mocinhos e bandidos dão tiros
com metralhadoras que estraçalham as pessoas e fazem jorrar sangue para todo lado. Ao mesmo
tempo que o Ministério da Saúde adverte sobre os riscos do fumar, os cofres públicos se
locupletam em impostos provenientes da Souza Cruz e outras, e os meios de comunicação
faturam com propagandas do maravilhoso mundo de Marlboro: “Come to Marlboro Country!”. O
jogo do bicho, clandestino (mas nem tanto), é proibido. Outros jogos, similares, fazem a festa da
arrecadação. Nos Estados Unidos, fabricantes de cigarros se previnem contra processos de
indenização. Mas, pensando bem, muitos outros produtos, propagandas, anúncios e cenas de
televisão seriam passíveis também de indenização. Se cada um de nós tivesse que indenizar pelos
maus exemplos, então...
No dia 31 de maio de 1997, no Hospital Português do Recife, aos 98 anos faleceu o frade
Damiano de Bozzano, o Frei Damião, que viveu no nordeste brasileiro de 1931 até sua morte.
Para muitos nordestinos, principalmente, Frei Damião é um santo e faz milagres.
Segundo Frei Damião, o pecado seria castigado com o fogo do inferno. Em outras palavras,
se você pecar, ou continuar pecando, “vai para o inferno de cabeça para baixo”. Sem dúvida, um
tom ameaçador e apocalíptico, tanto que alguns segmentos, pelo menos, da própria Igreja
Católica lhe faziam restrições. Apesar disso, Frei Damião era usado por alguns políticos como
figura emblemática de campanha. Seu aspecto tradicional de santo, ou seu aspecto de santo
tradicional, impressionava.
Aspectos religiosos à parte, muita coisa de fato mudou, evoluiu. Mas, no fundo, a pedagogia,
nem tanto.
Há um conhecido apresentador de telejornal, antitabagista ferrenho, que combate assim os
fumantes: – Continue fumando, fume, fume, até morrer de fumar!
Fumar seria o pecado e ser acometido de males causados pelo fumo seria o inferno.
Sinceramente, não sei se esse tipo de advertência funciona.
Uma personagem de Clarice Lispector indaga: “Você sabe que a pessoa pode encalhar numa
palavra e perder anos de vida?” Pode ser “fumar”, “beber”, “emagrecer”, palavras, de certa
forma, paralisantes, que só fazem encalhar o nosso barco da vida, quando “navegar é preciso”.
Para começo de conversa, da mesma maneira como não se deve identificar traficante com
dependente, parece-me que existem dois tipos de viciados: o assumido e o “enrustido”.
Para o primeiro, quanto mais se fala, mais ele se consolida no vício. Para o segundo, esse tipo
de advertência soa como um libelo à sua condição de viciado e vencido, da qual deseja se livrar,
tenta, mas não consegue, e carrega dentro de si um sentimento de culpa. Uma propaganda dos
cigarros Free diz com propriedade: “Me ame ou me odeie. Mais ou menos é que incomoda.” É
que o vício, no viciado enrustido (aquele que ainda quer, ou já quer, se livrar do vício e não
consegue), padece do paradoxo de um ser indesejável mas sempre desejado. Mais ou menos
como ideologia e poder, quando alguém sente que conquistou o poder graças a uma ideologia
renovadora e, uma vez no poder, apega-se ao espaço com unhas e dentes, mas sua consciência,
ainda não cauterizada, diz que ele está indo longe demais, virando ditador, isto é, já dita-dor aos
outros. A consciência ainda diz que não ou que basta, mas o poder, sempre gostoso, aliciante,
sedutor, diz que sim. A ideologia ainda diz que não, a vitaliciedade, pelo mecanismo psicológico
de autodefesa, justifica: – Afinal, sou insubstituível e, se eu abrir mão, eu não, meu partido
(quando não partido único) vai para o beleléu. Tenho, pois, que continuar “para o bem de todos”,
e, se preciso, farei uso do argumento baculino (em latim até é bonito: “ad baculum”, mas na
verdade será mesmo na porrada, na repressão). Para o viciado no poder, ideologia já era. Lições
acadêmicas do passado devem ser esquecidas. Cessa tudo que a antiga musa cantava... No Brasil,
então, esse procedimento é tradicional, desde o início, passando pelo Estado Novo de Getúlio
Vargas e pela trajetória de Prestes. O nazismo de Getúlio entregou Olga, o comunismo de Prestes
assassinou esposas que poderiam deter informações que comprometessem o avanço da
militância. Hitler promoveu o holocausto; Stalin, os goulags. Mas, voltando à comparação: o
vício seria como o poder instalado; a vontade de parar, na realidade frágil e débil, seria a
ideologia, que então fica em segundo plano toda vez que, operacionalmente, ameace o poder já
conquistado.
Por Antonio Oliveira
uma disposição estável para a prática de algum “mal”. Assim, por exemplo, fumar é um vício,
caracterizado pelo hábito de fumar, considerado prejudicial à saúde.
Ambos, virtude e vício, são em parte inatos e adquiridos. Inatos, enquanto encontram em nós
uma predisposição, às vezes até genética ou hereditária, seja para a prática do bem seja para a
prática do mal. Adquiridos, uma vez que se desenvolvem, a virtude, em decorrência de muito
esforço; o vício, que também cria raízes profundas e até dependência física, por concessões
nossas e influências externas ou do ambiente.
Uma vez instalado e disseminado o vício, em geral se tenta combatê-lo. Assim também, por
exemplo, com relação ao cigarro, há hoje em dia inúmeras campanhas antitabagistas, de caráter
paliativo, pois, sem dúvida, é sempre melhor nem contrair vícios. Prevenir ainda é o melhor
remédio: “difficulter reciduntur vitia, quae nobiscum creverunt” (Sêneca, De ira, II, 18).
Dificilmente desaparecerão os vícios que cresceram conosco...
O que interessa aqui é a pedagogia no combate ao vício, ou, de modo geral, ao erro, seja sob
a conotação de crime (“serial killer”, pistoleiro profissional, capangas, ambiente de corrupção,
etc.), dependência ou pecado. Trata-se de apelar, coerente e persuasivamente, para a capacidade
de lidar com sentimentos de ira, ansiedade, depressão, como o fazem, há décadas, os Alcoólicos
Anônimos e outros grupos de recuperação. De modo geral, parece que a pedagogia não tem
inspirado renovações metodológicas significativas de combate ao vício. Um programa de
televisão, por sinal muito bem feito, de combate à violência, foi seguido, na programação,
justamente de um filme de extrema violência. Daqueles em que mocinhos e bandidos dão tiros
com metralhadoras que estraçalham as pessoas e fazem jorrar sangue para todo lado. Ao mesmo
tempo que o Ministério da Saúde adverte sobre os riscos do fumar, os cofres públicos se
locupletam em impostos provenientes da Souza Cruz e outras, e os meios de comunicação
faturam com propagandas do maravilhoso mundo de Marlboro: “Come to Marlboro Country!”. O
jogo do bicho, clandestino (mas nem tanto), é proibido. Outros jogos, similares, fazem a festa da
arrecadação. Nos Estados Unidos, fabricantes de cigarros se previnem contra processos de
indenização. Mas, pensando bem, muitos outros produtos, propagandas, anúncios e cenas de
televisão seriam passíveis também de indenização. Se cada um de nós tivesse que indenizar pelos
maus exemplos, então...
No dia 31 de maio de 1997, no Hospital Português do Recife, aos 98 anos faleceu o frade
Damiano de Bozzano, o Frei Damião, que viveu no nordeste brasileiro de 1931 até sua morte.
Para muitos nordestinos, principalmente, Frei Damião é um santo e faz milagres.
Segundo Frei Damião, o pecado seria castigado com o fogo do inferno. Em outras palavras,
se você pecar, ou continuar pecando, “vai para o inferno de cabeça para baixo”. Sem dúvida, um
tom ameaçador e apocalíptico, tanto que alguns segmentos, pelo menos, da própria Igreja
Católica lhe faziam restrições. Apesar disso, Frei Damião era usado por alguns políticos como
figura emblemática de campanha. Seu aspecto tradicional de santo, ou seu aspecto de santo
tradicional, impressionava.
Aspectos religiosos à parte, muita coisa de fato mudou, evoluiu. Mas, no fundo, a pedagogia,
nem tanto.
Há um conhecido apresentador de telejornal, antitabagista ferrenho, que combate assim os
fumantes: – Continue fumando, fume, fume, até morrer de fumar!
Fumar seria o pecado e ser acometido de males causados pelo fumo seria o inferno.
Sinceramente, não sei se esse tipo de advertência funciona.
Uma personagem de Clarice Lispector indaga: “Você sabe que a pessoa pode encalhar numa
palavra e perder anos de vida?” Pode ser “fumar”, “beber”, “emagrecer”, palavras, de certa
forma, paralisantes, que só fazem encalhar o nosso barco da vida, quando “navegar é preciso”.
Para começo de conversa, da mesma maneira como não se deve identificar traficante com
dependente, parece-me que existem dois tipos de viciados: o assumido e o “enrustido”.
Para o primeiro, quanto mais se fala, mais ele se consolida no vício. Para o segundo, esse tipo
de advertência soa como um libelo à sua condição de viciado e vencido, da qual deseja se livrar,
tenta, mas não consegue, e carrega dentro de si um sentimento de culpa. Uma propaganda dos
cigarros Free diz com propriedade: “Me ame ou me odeie. Mais ou menos é que incomoda.” É
que o vício, no viciado enrustido (aquele que ainda quer, ou já quer, se livrar do vício e não
consegue), padece do paradoxo de um ser indesejável mas sempre desejado. Mais ou menos
como ideologia e poder, quando alguém sente que conquistou o poder graças a uma ideologia
renovadora e, uma vez no poder, apega-se ao espaço com unhas e dentes, mas sua consciência,
ainda não cauterizada, diz que ele está indo longe demais, virando ditador, isto é, já dita-dor aos
outros. A consciência ainda diz que não ou que basta, mas o poder, sempre gostoso, aliciante,
sedutor, diz que sim. A ideologia ainda diz que não, a vitaliciedade, pelo mecanismo psicológico
de autodefesa, justifica: – Afinal, sou insubstituível e, se eu abrir mão, eu não, meu partido
(quando não partido único) vai para o beleléu. Tenho, pois, que continuar “para o bem de todos”,
e, se preciso, farei uso do argumento baculino (em latim até é bonito: “ad baculum”, mas na
verdade será mesmo na porrada, na repressão). Para o viciado no poder, ideologia já era. Lições
acadêmicas do passado devem ser esquecidas. Cessa tudo que a antiga musa cantava... No Brasil,
então, esse procedimento é tradicional, desde o início, passando pelo Estado Novo de Getúlio
Vargas e pela trajetória de Prestes. O nazismo de Getúlio entregou Olga, o comunismo de Prestes
assassinou esposas que poderiam deter informações que comprometessem o avanço da
militância. Hitler promoveu o holocausto; Stalin, os goulags. Mas, voltando à comparação: o
vício seria como o poder instalado; a vontade de parar, na realidade frágil e débil, seria a
ideologia, que então fica em segundo plano toda vez que, operacionalmente, ameace o poder já
conquistado.
Por Antonio Oliveira
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