Difícil tocar o adiante o tema de hoje sem esbarrar em convicções muito íntimas do que seja viver, do que seja dignidade humana, do que seja minha própria fé. Ainda mais porque não sou letrado nas teorias filosóficas, científicas ou sociológicas que negociam com mais primor a lógica que um ‘serumano’ adota na hora de ‘escolher’ viver ou morrer.
Bem, para quem não se situou ainda, na semana passada, um rapaz tetrão _daqueles que dão um trabalho danado pela falta de movimentos em braços, pernas e tronco_ em profunda angústia de tocar o barco para a frente, convenceu o irmão mais novo a simular um assalto em casa e matá-lo, aliviando, assim, o que ele considerava estar vivo: um tormento.
A história completa é cheia de requintes inacreditáveis de como a existência humana é um troço muito além em seus mistérios do que podemos elucubrar. Por exemplo, o tetrão, antes do acidente que o deixou estropiado, havia tido um filho com paraplegia _sem os movimentos das pernas. Enfim, para quem quiser ler e entender a história toda, clica na florzinha....
Um filme batuta chamado “Mar adentro” (aqui tem um clipe da parte final, super mega punk, é só clicar no bozo ) abordou exatamente o conflito profundo que uma pessoa que perde suas capacidades motoras e de tocar a cotidiano com autonomia enfrenta, o dilema de querer a morte e como promover essa morte.
O primeiro ponto que questiono sobre o caso específico é como uma pessoa ainda tão sensibilizada diante sua nova realidade pode ter sido liberada de um hospital para casa. A saúde pública não precisa prover um reequilíbrio básico para os que sofreram traumas? Não precisa resgatar minimamente a estima? Não precisa tentar controlar um aspecto global dos pacientes?
A realidade é bem dura nesses casos. Médicos costumam “consertar” o possível, dar a sentença eterna de que “sua vida será sempre assim, uma desgraceira”, e despachar o paciente a sua própria sorte. É cada um por si, é um se vira que você não é caju.
Poucos são os que orientam razoavelmente sobre novas possibilidades de vida, sobre a procura da reabilitação, sobre procedimentos básicos de qualidade de vida, sobre novas tecnologias que facilitam a condição de tetraplegia ou seja lá o que for.
Como diz o meu mais novo “consultor” para assuntos médicos, o doutor Hermes Prado Jr. “a maioria de meus colegas preocupa-se com o paciente da porta do consultório/hospital para dentro. Após o paciente ir embora (da porta para trás) pouquíssimos se preocupam ou sabem da vida do paciente. É uma relação teatral e incompleta, pois, muitas vezes, a vida do paciente para além dos olhos do médico com seus erros e acertos orientados ou espontâneos é que determina o seu estado perante seus olhos nos retornos.”
Nessas condições, cair em desespero é quase uma regra. Ser uma pessoa plenamente capaz em um dia e quase inteiramente dependente no outro é jogo para ser jogado por craques ou por pessoas que foram cercadas de informações, de exemplos, de novas possibilidades para seguir o curso.
Um “persguidor” meu do Twitter, também leitor do blog e colega de profissão, o queridão José Ismar Petrola, chamou minha atenção para a responsabilidade do governo na decisão de morte do rapaz. E ele tá com a razão.
De fato, se é obrigação constitucional do Estado prover o bem-estar de todos. O tetrão não deveria jamais ter a condição de abandono, de falta de sentido para a vida, de falta de perspectiva. Se o país fosse sério, haveria maneiras amplas de distribuição de informação, de estrutura e de apoio para casos como esse. Como não há nada disso, o que sobra para muita gente é desespero e vontade de “morrer”.
Por último, é preciso colocar em foco o “desejo” do próprio ‘malacabadão’ em terminar com o sofrimento optando pela morte. Vejo isso, e é mesmo muito personalista essa ideia, como estar agarrado com todas as forças a valores arrazoados de aproveitar a existência. Normalmente, nos é embutido na cabeça que viver bem é um amontoado de obviedades: transar com as gostosas, correr na rua, tomar banho de mar, saracotear com “liberdade” por aí.
Não nego que os valores acima sejam universais em suas gostosuras, contudo, não são únicos, não são determinantes de nada. As delícias de viver são somadas em trilhões. Se a morte fosse uma opção da natureza humana, talvez todos nós nascêssemos com um botãozinho escrito “game over”.
Para mim, errou o irmão que atirou, pois família não serve só para disputar o frango aos domingos, o personagem de “Mar Adentro” errou. E erram também os que sucumbem a querer morrer para se livrar de uma situação diante da vastidão de possibilidades que é estar vivo.
O mundo seguirá violento, as pessoas vão continuar padecendo de tetraplegia e outras fatalidades. Então, que se ampliem os espaços de reflexão, as possibilidades para as diferenças se manifestarem e atuarem em sociedade. Que se diminuam os cemitérios.
E não falo isso do alto do meu cotidiano tranquilo . Falo a bordo de minha cadeira de rodas, de minha coluna torta, de um saco enorme de enfrentamentos a um mundo que me excluí. Se cheguei em alguns momentos pensar que “não valia” a pena, construi dezenas de estradas que me garantiram segurança para chegar em festas incríveis.
O cérebro humano é de uma complexidade fascinante para buscar alternativas novas para caminhos rompidos. Apostar no alívio de “acabar com tudo” por meio da morte me parece uma loteria com chances raríssimas de garantir um resultado.
Viver me parece bem mais seguro. O sol há de nascer, bons livros serão escritos, curas serão criadas, sentimentos surgiram, novas pessoas nascerão, o Japão vai se reerguer, o Roberto Carlos vai emocionar quando falar “quando eu estou aqui...”.
Escrito por Jairo Marques
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