ISTOÉ teve acesso ao prontuário de
Horácio Cartes, o qual havia sido apagado dos registros da Justiça
paraguaia. Documentos revelam prisão por evasão de divisas e processos
por falsidade ideológica, falsificação de documentos e estelionato
Sérgio Pardellas e Mariana Queiroz Barboza
No domingo 21, o milionário Horácio Cartes
foi eleito o novo presidente do Paraguai com 46% dos votos, mas debaixo
de uma enxurrada de acusações. Aos 56 anos, Cartes é um nome novo na
política paraguaia – só se filiou a um partido, o Colorado, em 2009 –,
mas velho conhecido das páginas policiais. Durante a campanha eleitoral,
seus adversários enfileiraram pesadas denúncias. Entre as mais graves
delas constavam o contrabando de cigarros, lavagem de dinheiro, por
operações supostamente ilegais mantidas pelo Banco Amambay, de sua
propriedade, e evasão de divisas. Nada do que lhe é imputado, porém,
aparece nos registros da Justiça do Paraguai. Para o Judiciário
paraguaio, Cartes é um homem limpo e sem antecedentes criminais. “Podem
ir à Justiça e checar. Não há uma única denúncia contra mim”, repetiu
como um mantra o candidato do Partido Colorado durante as eleições.
Conservada em absoluto sigilo há quase dez anos na residência de uma
autoridade da Justiça daquele país, a ficha criminal do novo presidente
do Paraguai, obtida por ISTOÉ, revela outra realidade. Além de mostrarem
que sua biografia é um verdadeiro prontuário policial, os documentos
derrubam a versão apresentada durante a campanha de que ele teria sido
processado e preso quando o Paraguai esteve submetido a um regime
ditatorial e de exceção, durante o governo do general Alfredo Stroessner
(1954-1989).
FOLHA CORRIDA
Documento obtido por ISTOÉ traz descrição de
Horácio Cartes, fotos e digitais colhidas quando ele foi preso, em 1989
O prontuário de Horácio Cartes é composto por três folhas. Numa
delas, sob o registro 614006 e o timbre da Polícia Nacional paraguaia,
estão contidas as referências de Horácio Cartes – como filiação, data de
nascimento, número da identidade –, sua foto e digitais colhidas no dia
em que ele deu entrada no presídio nacional de Tacumbú, situado na
periferia de Assunção, capital paraguaia. Segundo a folha corrida do
novo presidente do Paraguai, ele esteve preso, depois de condenado por
evasão de divisas, durante seis meses, entre 27 de abril de 1989,
portanto durante o período de redemocratização paraguaia (governo do
general Andrés Rodrigues), e 8 de outubro do mesmo ano. A ficha policial
que expõe os segredos de Horácio Cartes teria sido apagada dos
registros judiciais do Paraguai durante o governo do jornalista Nicanor
Duarte (2003-2008). O pedido de eliminação do prontuário teria partido
do próprio Cartes, segundo fontes do Judiciário local, um dos principais
financiadores da vitoriosa campanha de Nicanor. Uma juíza, no entanto,
resolveu guardar uma cópia da documentação, que agora vem à tona, em sua
residência em Assunção. A julgar pelo teor da papelada, até agora
secreta, o presidente do Paraguai tinha mesmo motivos de sobra para
temer a exposição de suas passagens pela Justiça. Em 1996, segundo o
documento obtido por ISTOÉ, Cartes respondeu a processo por falsificação
de instrumentos públicos, falsidade ideológica por operações de
importação e estelionato. Em 8 de setembro de 2000, foi acusado de
homicídio culposo, por envolvimento num acidente de trânsito. Horácio
Cartes ainda respondeu a processo por violação de correspondências em
2002, sete anos antes de ingressar oficialmente na política com a
filiação ao Partido Colorado. “Horácio Cartes tem todo o perfil do que
não deve ser um presidente”, diz Chiqui Ávalos, que publicou parte da
ficha corrida do presidente do Paraguai em seu livro “La Otra Cara de
HC”. A publicação ainda não foi lançada no Brasil, mas circulou no
Paraguai durante a campanha eleitoral.
A entrada de Cartes na política colocou sua vida particular e
empresarial sob os holofotes. As dúvidas vieram não só de seus rivais,
mas também de correligionários do próprio partido. A presidente da
legenda, Lilian Samaniego, chegou a sugerir que Cartes teria vínculos
com grupos do narcotráfico. Não por acaso. Em 2000, um avião monomotor
registrado no Brasil foi encontrado em suas terras, carregado de cocaína
e maconha. A desculpa usada, então, foi a de que a aeronave havia feito
um pouso de emergência e não tinha qualquer relação com o dono do
terreno. Nenhuma investigação foi ordenada pela Justiça.
Outro episódio trazido à baila durante o processo eleitoral o
envolveu com o contrabando de cigarros para o Brasil. O novo presidente
do Paraguai dirige o Grupo Cartes, um conglomerado de empresas que
produzem bebidas, cigarros e charutos. A tabacaria leva o nome de
Tabesa. Em junho do ano passado, a Souza Cruz denunciou à chancelaria
paraguaia que a participação dos produtos da Tabesa, do Grupo Cartes,
corresponde a 41,9% do mercado total de contrabando brasileiro. “Todos
os dias, incontáveis caixas de cigarro cruzam as fronteiras, sendo
provenientes, em sua maior parte, do Paraguai, sem pagar impostos,
abastecendo um próspero mercado paralelo”, diz o documento divulgado
pelo jornal paraguaio “Última Hora”. A conclusão da Souza Cruz é de que a
Tabesa pratica “concorrência desleal”, já que seus cigarros são
vendidos a um preço médio de R$ 1,41, enquanto o produto mais barato da
Souza Cruz custa R$ 3. Procurada por ISTOÉ, a Souza Cruz disse que, “por
se tratar de uma ação judicial em curso, não fará qualquer comentário
sobre o caso”. Estima-se que as empresas de Horácio Cartes produzam três
vezes a quantidade de cigarros consumida no Paraguai. Sem atentar para
este fato, Cartes recorre a evasivas: “Tudo o que eu produzo, eu vendo e
pago imposto.” A organização de controle do tabaco Framework Convention
Alliance calcula que o Paraguai deixa de arrecadar US$ 130 milhões por
ano por causa da produção ilícita, grande parte oriunda das empresas do
presidente.
Outro negócio muito rentável ao Grupo Cartes é a produção do
refrigerante Pulp, que compete com a Coca-Cola no mercado paraguaio.
Durante a eleição, era comum observar garrafas de Pulp acomodadas sobre
as mesas de votação. Para a oposição, tratou-se de uma referência
indevida à imagem do então candidato, que também ganhou popularidade no
país por sua ligação com outra paixão paraguaia: o futebol. Desde 2001,
ele é presidente do Libertad. O clube foi campeão nacional no ano
passado, participou das últimas dez edições da Copa Libertadores da
América e se tornou uma febre entre os jovens paraguaios. Cartes também é
membro do comitê executivo da Associação Paraguaia de Futebol, a CBF do
país vizinho. Para tentar neutralizar o efeito pró-Cartes entre os
aficionados por futebol, a oposição passou a associá-lo à imagem do
enrolado ex-premiê italiano Silvio Berlusconi, presidente do Milan. A
estratégia não foi suficiente para reverter os votos necessários para a
eleição do adversário Efraín Alegre, do Partido Liberal Radical
Autêntico (PLRA). Mas parte expressiva da população já desconfia do que
pode estar por vir durante a nova gestão do líder colorado.
Eleito com um discurso de “renovação” num partido tão calejado por um
histórico de ditadura e corrupção – o Partido Colorado sustentou a
ditadura de Stroessner por 30 anos –, Cartes entregou a chefia de sua
campanha a Francisco Javier Cuadra, ex-ministro e porta-voz do ditador
chileno Augusto Pinochet. Cuadra é investigado pelo assassinato de
quatro militantes pela central de espionagem do regime de Pinochet.
Segundo o jornal paraguaio “E’a”, Cuadra chegou a Assunção pouco antes
do juízo político que resultou no impeachment de Lugo, há dez meses, e
foi visto muito ativamente assessorando Cartes no período. Desde então, o
Paraguai esteve suspenso do Mercosul pela “ruptura da ordem
democrática”. Agora, o novo presidente diz que retomar as relações com o
bloco comercial é uma prioridade.
Foto: Jorge Saenz/ap
Foto: santi carneri/efe
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