Tribunal de Contas da União de maneira preconceituosa critica os programas assistenciais do Planalto
O Tribunal de Contas da União aumenta as críticas ao
governo federal, que reclama do viés político da instituição
por André Barrocal
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Arte: CartaCapital
Ignorância”, “faniquito”, “posições
simplistas e preconceituosas”, “maneira incivil, indelicada e
desrespeitosa”, “estupefação”, “repúdio”. Não surpreende tal vocabulário
ser usado numa conversa sobre futebol em mesa de bar ou em uma
discussão no Facebook sobre política. Estranho é vê-lo em um tiroteio
entre autoridades. Pois o governo e o Tribunal de Contas da União acabam
de trocar tais gentilezas por causa de um relatório sobre assistência
social. A desavença escancarou uma exasperação acumulada do Palácio do
Planalto com o TCU e serve para compreender certa tensão interna na
Corte.
Xodós do governo, os programas de
assistência foram dissecados pelos auditores do tribunal, com conclusões
críticas. Os técnicos apontaram uma ausência geral de medição da
qualidade das ações. Seria o caso dos milhares de centros de assistência
espalhados pelo País, considerados pouco eficientes, e do repasse de
verba do Fundo Nacional de Assistência Social. O benefício financeiro a
idosos e deficientes ignoraria gente merecedora do pagamento. Faltariam
índices sobre o processo de desligamento de inscritos no Bolsa Família.
Os critérios de pobreza estariam defasados e inchariam as estatísticas
sobre redução da miséria. Aprovado pelo TCU em 10 de setembro, o
relatório gerou ampla repercussão. O assunto foi parar até no YouTube,
com um vídeo produzido de antemão pelo tribunal.
Firme, a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza
Campello, revoltou-se e autorizou uma resposta dura, de imediato. Em
nota, sua pasta dizia que o relatório “parte de premissas erradas, para
chegar a conclusões equivocadas”, por culpa da “ignorância dos
técnicos”. Queixava-se de “posições simplistas e preconceituosas” com o
Bolsa Família. E sugeria motivações eleitorais do TCU, ao questionar o
momento da divulgação do documento e ao constatar, com “estupefação”,
que uma versão prévia citava dois projetos do senador Aécio Neves,
presidenciável do PSDB. Formado por representantes do governo e da
sociedade, o Conselho Nacional de Assistência Social saiu em defesa do
ministério e chiou por não ter sido ouvido pelo TCU.
Diante da contundência da reação, a
revolta mudou de lado. O presidente do TCU, Augusto Nardes, e os demais
ministros foram pressionados pelos técnicos a defender a casa.
Silenciar, segundo uma troca interna de mensagens, desmoralizaria o
tribunal. E mais: a tréplica deveria ter um tom à altura. No dia 17, a
Corte tomou uma decisão nada corriqueira. Em sessão plenária, aprovou
uma nota de desagravo, de “inconformismo e repúdio” contra “injustas e
indevidas críticas”. Responsável final pelo relatório pivô da crise, o
relator, ministro Augusto Sherman, disse durante a sessão que a pasta do
Desenvolvimento Social agira “de maneira incivil, indelicada e
desrespeitosa”.
Na véspera,
Campello reunira-se com Nardes no TCU e testemunhara a indignação dos
auditores. Representantes do tribunal presentes à conversa dariam ainda
outra fustigada na ministra, ao dizer a jornalistas posteriormente que
ela tivera um “faniquito”. Campello está aborrecida com o que considera
machismo e não será surpresa se tomar providências após a eleição.
O episódio é o mais visível de uma escalada de embates do
governo com o Tribunal de Contas. A tensão é tal que em agosto o TCU
registrou um fato inédito. Um advogado-geral da União foi à Corte
defender, no plenário, um alto servidor federal. A presidenta da
Petrobras, Graça Foster, estava na mira de um pedido de bloqueio de
bens, em investigação sobre a contestada compra da refinaria em
Pasadena, nos Estados Unidos. Para o advogado-geral Luís Inácio Adams, o
bloqueio seria fatal para Foster. Ela não teria mais como ficar no
cargo. O TCU desistiu da ideia.
O Planalto está convencido do viés
eleitoral por trás da atuação do relator do processo, José Jorge. E a
biografia dele dá asas à imaginação. Jorge foi senador pelo DEM,
ministro no governo Fernando Henrique e candidato a vice na chapa
presidencial do tucano Geraldo Alckmin em 2006. A convicção levou Dilma a
adotar uma postura inusual para presidentes. Nos últimos tempos, quando
se vê obrigada a falar em entrevistas sobre fraudes na Petrobras, cobra
a apuração de um negócio fechado pela estatal com a Repsol no fim da
era FHC. Na época, Jorge era ministro de Minas e Energia e dirigia o
conselho de administração da estatal. Por isso, foi parar em uma ação
movida por petroleiros contra o negócio. O caso está inconcluso no
Superior Tribunal de Justiça.
O setor portuário também alimenta o conflito “governo versus
TCU”. Em maio de 2013, Dilma venceu uma de suas mais ferrenhas brigas
no Congresso e arrancou uma nova Lei de Portos. Ela queria liberar a
construção de terminais particulares. E relicitar, em condições mais
favoráveis aos exportadores, portos públicos arrendados a empresas, como
alguns em Santos e Belém do Pará sob domínio do banqueiro Daniel
Dantas. Até aqui, só o primeiro plano vingou. O outro aguarda aval do
TCU aos termos da pretendida relicitação. É improvável uma decisão neste
ano. Nardes foi recentemente a Santos e prometeu realizar antes uma
audiência pública, como quer o município. O prefeito Paulo Alexandre
Barbosa, do PSDB, diz ser preciso repensar a localização do terminal de
grãos, por razões ambientais.
Em gabinetes federais, reclama-se de demora eleitoreira.
No TCU, o processo tem a relatoria da ministra Ana Arraes, ex-deputada
pelo PSB e mãe do falecido presidenciável Eduardo Campos. Durante a
votação da Lei de Portos, Campos construía seu sonho presidencial e
aproveitara para afastar-se ainda mais do Planalto. A proposta, dizia,
atrapalharia a administração do Porto de Suape pelo governo de
Pernambuco.
Para uma autoridade com visão
privilegiada do TCU, a tensão com o governo é inegável e alcançou níveis
inéditos. Os embates avolumaram-se a partir das obras do PAC,
merecedoras de um olhar atento dos técnicos da Corte. Agora, o tribunal
parece viver o auge de sua afirmação pós-ditadura. Seus auditores
sentem-se “empoderados”, estão organizados e às vezes arriscam-se a
críticas que extrapolam o exame de contas para opinar sobre políticas
públicas. Além disso, possuem uma agenda própria, motivo de tensões
internas no tribunal. Órgão auxiliar do Legislativo, o TCU tem muitos
ministros políticos, ex-parlamentares. Em uma Corte comum, o juiz é
senhor de seu gabinete, pela autoridade de magistrado. No TCU, é quase
um refém dos auditores.
A categoria tenta
eliminar ou ao menos frear a nomeação de ministros políticos. Em um
congresso no início de setembro, a União dos Auditores Federais de
Controle Externo aprovou um documento no qual cobra mudanças no critério
de escolha. A atual legislação, com cotas para indicações feitas pelo
presidente da República, o Senado e a Câmara, seria “retrógrada”. O
correto seria indicar só auditores. A Associação Nacional dos Auditores
de Controle Externo dos Tribunais de Contas (ANTC) defende ao menos
aumentar a proporção de ministros concursados.
Para a presidenta da ANTC, Lucieni
Pereira da Silva, o problema mais grave não são as cotas de indicados,
mas a falta de um padrão nacional a exigir idoneidade, reputação ilibada
e comprovação da qualificação técnica para os magistrados dos 34
tribunais de contas. Na última vez que o Congresso escolheu um ministro
do TCU, no primeiro semestre, os auditores conseguiram barrar o nome do
senador Gim Argello, do PTB, alvo de inquéritos judiciais. A próxima
batalha já tem data. José Jorge se aposentará por idade em novembro.
Caso seja reeleita, Dilma tem sua candidata, a ministra Ideli Salvatti,
dos Direitos Humanos. Seu plano B é o ministro do Esporte, Aldo Rebelo.
*Reportagem publicada originalmente na edição 819 de CartaCapital, com o título "Canhões a postos"
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