ISABEL CLEMENTE
Se um novo big brother filmasse você à mesa com seus filhos em casa ou
em restaurantes durante semanas a fio, que imagens surgiriam?
Não precisa responder agora.Pesquisadores do Boston Medical Center fizeram isso e constataram o óbvio: a interação entre pais e filhos está definitivamente prejudicada por esses aparelhos, celulares, tablets e outra variações. O estudo, divulgado recentemente, é um alerta de constrangimento geral.
Ao observar de perto - e anonimamente - a dinâmica entre 55 adultos acompanhados de uma ou mais crianças em restaurantes fast-food, eles flagraram crianças tentando desviar o olhar da mãe com as mãos no rosto dela, levando bronca de pai irritado e outras criancices típicas de quem precisa chamar a atenção dos adultos. Registraram mãe chutando filho por baixo da mesa para "deixar de ser chato". Entre o silêncio absoluto e a reação negativa, havia um invisível laço se desfazendo. A vida real tinha se transformado num lamentável reality.
Jenny Radescky, pesquisadora em comportamento e desenvolvimento pediátrico do Boston Medical Center, comenta: "O que chamou atenção nessa amostra de responsáveis ocupados com seus aparelhos quase durante toda a refeição foi o quanto uma interação com os filhos nessas circunstâncias pode ser negativa". O estudo foi publicado dia 10 de março. Sua intenção é elaborar teorias para jogar luz num tema hoje praticamente percebido de forma intuitive. E minha intuição diz que não está nada legal.
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O assunto é tão sério e está tão amplamente disseminado que a Academia Americana de Pediatria decidiu elaborar um guia sobre como usar sensatamente o celular na frente das crianças, com a colaboração de Radescky.
Chegamos ao ponto de precisar de um guia?
Celulares são aparelhos úteis, não duvido disso. Podem ser usados para o bem da família e também para o mal. Como acesso a material educativo e de lazer, busca de informação e diversão conjunta, une. Fica claro que a intenção primeira do adulto é o interesse da criança, saber o que ela gosta. Como diversão individual, enquanto uma criança está ao lado aguardando atenção, só atrapalha.
Já abordei numa coluna sobre esse pernicioso hábito das pessoas não interagirem mais quando se sentam à mesa enquanto aguardam a refeição chegar . Crianças jogam, adultos escrevem ou leem. Tudo muito civilizado, tudo muito pacífico. Aparentemente mais educado do que eu pedindo pela enésima vez para minhas filhas pararem de se jogar embaixo da mesa ou ficarem sentadas comigo e meu marido enquanto tentamos entabular um assunto de interesse comum para idades que variam de 4 a 48 anos. Mas ninguém se olha! O puxão de orelha vale também para babás, candidatas fortíssimas à distração online enquanto tomam conta dos filhos dos outros. Ficou muito fácil também ser acompanhante de idoso. Basta deixar o velho quieto dormindo ou vendo televisão enquanto se distrait com algo melhor. Óbvio que nem todo mundo age com tanta irresponsabilidade, mas, infelizmente, é uma cena cada vez mais comum.
Sob pressão, muitas vezes, cedemos. Quem nunca? Para a criança silenciar, passa o celular. É a chupeta tecnológica. Deixa ela jogar um pouco, o que que custa? Não sei dizer. Quando alguém medir a frequência dessa desculpa e quantificar o custo do vazio numa relação me diga. Só sei que ele é alto, muito alto e não me deixa à vontade. Nem um pouco.
Nada substitui o olho-no-olho, a conversa, a discussão. Eu preciso estar um pouco à toa para ser surpreendida por colocações inesperadas, perguntas difíceis. A criança não anota numa agenda mental aquilo que quer falar para sair aproveitando muito bem os 20 minutos que damos para ela de lambuja. O tempo afeta a qualidade dessa relação e se eu gastar parte dele com distrações, como a gente fica?
De todas as revoluções modernas, essa nova configuração familiar de pais-filhos-celulares merece realmente muitos estudos. Antigamente o drama era saber quanto de televisão por dia faria mal para nossos filhos, compromentendo o interesse por atividades mais lúdicas e estimulantes. E pensar que a coitada da televisão pelo menos fica em casa quando a gente sai.
O faça-o-que-eu-digo-mas-não-o-que-faço agora é reproduzido nessa esparrela de proibir o joguinho, esse "vício insuportável", enquanto se usa aplicativos urgentes a todo instante: whatsapp, messenger, twitter, facebook, email. É uma invasão tecnológica que não respeita fronteiras. Basta um aviso, um sinal, uma musiquinha, e lá estamos conectados na distração novamente. O salão me avisa que na terça-feira eu posso cortar, colorir e hidratar meus cabelos por "apenas" R$ 160. Eu só fiz a unha lá. Não precisava desta mensagem. Nem de várias outras que lentamente vão consumindo meu tempo, sorvendo meu olhar no automatismo imperceptível das ondas virtuais. Só me resta evitá-las tanto quanto possível.
Eu tento me policiar. Desativei avisos desnecessários e ainda me pergunto se os demais são realmente úteis. Não quero que minhas filhas me vejam toda hora no celular por um motivo bem simples: não quero que elas façam isso comigo nem ninguém depois. Se, por acaso, eu chegar em casa com alguma pendência, aviso: "daqui a pouco eu vou ter que checar o celular, é coisa que ficou do trabalho, mas depois eu paro".
E corro para responder ou falar como quem vai dar um trago escondido no cigarro que deveria largar.
Sou desta geração que passou a depender de celular e isso me angustia. Meu grito de liberdade vem em pequenos atos de rebeldia, deixando de olhar os apps e, sobretudo, não permitindo que interfiram no momento sagrado em que estou com minhas filhas pequenas.
É um trabalho diário, requer disciplina e, por que não, a leitura de estudos óbvios como este do Boston Medical Center para nos darmos conta do ridículo da situação.
Isabel Clemente escreve aos domingos. na Revista Época
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