Depois de polêmica envolvendo Lucélia Santos, atores, músicos, escritores e artistas plásticos falam dos prós e contras de andar de ônibus e metrô
Roberto Kaz
RIO - O Rio tem 8.800 ônibus, divididos em 700 linhas, que rodam dois
milhões de quilômetros por dia carregando três milhões de pessoas. Uma
dessas pessoas é a atriz Lucélia Santos.
Na quarta-feira retrasada, Lucélia repetiu o roteiro que, vez por outra, lhe é contumaz. Deixou a casa que divide com os cachorros Batok e Asdrúbal no Itanhangá, cruzou o Alto da Boa Vista a bordo de um ônibus da linha 345 e, uma vez na Tijuca, pegou um metrô da Praça Saens Pena para o Centro da cidade. Cumpriu afazeres, seguiu para a aula de ioga no Humaitá e, no fim da tarde — exaurida e suada —, encarou de pé um 524 na volta para casa. Foi quando acabou fotografada por uma passageira.
Em minutos, a imagem estava nos sites de notícia, incluindo os de celebridade. “Lucélia Santos é flagrada em ônibus lotado no Rio’’, escreveu um blogueiro, valendo-se de um verbo mais usado para descrever ações da polícia que trivialidades do dia a dia. “Atriz Lucélia Santos é fotografada em ônibus cheio no Rio, após sumir da TV’’: a manchete circulou na web sugerindo uma relação de causa (sumir da TV) e efeito (andar de ônibus lotado).
Dois dias depois, a atriz desabafou em sua página no Twitter: “O Brasil é o único país que conheço em que andar de ônibus é politicamente incorreto! Vai entender...” Recebeu mensagens de apoio, foi procurada pelo Rio Ônibus (o sindicato que representa as empresas de ônibus do Rio), passou a reivindicar melhorias no serviço. De repente, por obra do acaso, se viu alçada ao posto de porta-voz dos descontentes.
— Fiquei brava só porque a foto era horrível — admitiu, numa conversa com a Revista O GLOBO na última terça-feira. — O resto (o fato de ter sido retratada num ônibus) não me importou nem um pouco. Mas agora, já que eu tenho voz, quero falar com empresários e com o prefeito. É bom para a cidade.
Isaura da novela “Escrava Isaura’’ e Bonitinha do filme “Bonitinha mas ordinária’’, Lucélia Santos viveu seu apogeu como atriz nas décadas de 70 e 80. Desde então, ela, que é ex-mulher do maestro John Neschling e mãe do ator Pedro Neschling, passou a se dedicar menos às telas e mais à carreira de documentarista e aos palcos. Nos últimos dois anos, esteve em cartaz em São Paulo com “A Falecida’’, de Nelson Rodrigues. Agora, pretende interpretar a pintora Frida Khalo.
Tem 56 anos, é vegetariana. Faz trilha três vezes por semana e sobe a Pedra da Gávea uma vez ao mês. Possui carro — um Honda —, mas não sabe dirigir. Já foi dona de um Troller com tração nas quatro rodas, que sonhava usar em competições de rali (sentada na cadeira do copiloto). Um motorista chamado Zé a atende às terças e às quintas.
— Se eu estivesse sempre no Rio, talvez tivesse motorista durante toda a semana. Mas para a vida que levo, dois dias resolvem — explica. — Além disso, não gosto de ter ninguém me esperando. Às vezes me sinto na obrigação de fazer minha agenda em função do Zé.
Peça no Centro motivou a atriz
No restante dos dias, se precisa ir à Zona Sul, pega um primeiro ônibus para atravessar o Itanhangá, cruza a pé a passarela sobre a Avenida Ministro Ivan Lins e toma um segundo coletivo no ponto em frente à igrejinha da Barra.
— Não sou madame. Faço faxina, passo roupa, lavo cachorro — conta, para em seguida filosofar. — Amo o conforto, o dinheiro, o sucesso. Adoro usar Channel e viajar de primeira classe, mas tenho outros valores. Gosto de carrão, mas teria vergonha de andar num desses. Nenhum carro é ocupado à sua potencialidade.
Lucélia mergulhou de cabeça no transporte público em 2011, quando estrelou a peça “Alguém acaba de morrer lá fora’’, no Centro.
— Era longe pra caramba, eu ia de ônibus e metrô — diz. — Táxi me estressa.
Como não conhecia bem as linhas, passou a fazer anotações em seu iPhone. No dia 28 de março daquele ano, escreveu: “Ônibus para Ipanema: 2016 amarelo com ar-condicionado.’’ Em 2 de outubro, acrescentou: “Ônibus 309 passa na praia. Vai pela Praia do Flamengo / Castelo, acho que pela Olegário’’, “467 Cascadura / Itanhangá / Rio das Pedras passa pela praia também’’, “Além do 233 que agora acho que é 302!!!”, “3 opções para casa, sendo duas pelo Alto’.’ No fatídico 12 de março recente, pouco antes de ser fotografada, acabara de anotar: “Ônibus por Humaitá 524 igrejinha da Barra.’’
— Aquele dia tinha sido um inferno. Na volta, fiquei duas horas no trânsito até o Largo da Barra — diz. — Eu não me importo de ser reconhecida no ônibus. Várias vezes alguém me pergunta se eu não sou “aquela atriz, a Lucinha Lins”. Acho graça. Só não entendo por que eu não posso andar de ônibus. Acho cafona, de mau gosto, essa cultura da celebridade. O artista, quanto melhor, mais maduro, mais tem o pé no chão. Quanto menos ego para mim, melhor.
No ar na novela das seis “Joia rara’’, o ator Carmo Dalla Vecchia, de 43 anos, só aprendeu a dirigir três meses atrás. Durante cerca de dez anos — desde que ingressou na Globo até protagonizar “Cobras e lagartos’’, em 2006 — foi da Zona Sul ao Projac de ônibus, trajeto que costuma levar pelo menos duas horas em dias de pouco trânsito.
— Eu aproveitava para ler o roteiro, sempre na altura dos olhos, para não ficar enjoado — ele lembra. —Me estranha as pessoas acharem isso estranho. Mais importante que vigiar os atores é vigiar os políticos e a qualidade do serviço.
Vez por outra, ainda pega o coletivo para ir a um centro cultural budista no Méier.
— O que está agregado ao fato de andar de ônibus? — pergunta. — Falta de status? Transporte público polui menos. Deveria ser o contrário.
Autor do livro “Fé em Deus e pé na tábua”, sobre o comportamento do brasileiro no trânsito, o antropólogo Roberto DaMatta lembra que o transporte coletivo nem sempre foi visto com maus olhos.
— Na minha infância eu pegava trem na Estação Leopoldina. Cadê a Leopoldina hoje? Inconscientemente ou não, destruímos a rede ferroviária a partir dos anos 50. Fizemos uma opção óbvia pelo transporte privado quando o individualismo entrou forte na sociedade brasileira. E, por ironia, isso reapareceu no lulo-petismo, com subsídio ao combustível e imposto baixo para os carros. O Brasil de hoje tem mais carro do que rua.
Na contramão desse movimento consumista, o artista Ernesto Neto, de 49 anos, atualmente com instalação à mostra no Guggenheim Bilbao, escolheu se desfazer de seu veículo há pouco mais de uma década.
— Eu morava no meu ateliê no Centro, quase não circulava. Dei o carro para um funcionário e passei a andar de táxi — diz.
Assim foi até recentemente, quando retomou o uso do ônibus. A escolha foi movida por uma causa nobre: ensinar seu filho Lito, de 13 anos, a ir à escola sozinho.
— Quando você é criança, andar de ônibus é uma liberdade. É assim que começa a independência — teoriza Neto.
A sua liberdade, como lembra, teve início na linha 157:
— Eu morava na Lagoa. Depois da escola, pegava o ônibus com mais umas três pessoas. Já meus amigos pegavam o 574, que era mais pop, cheio de gente indo para o Leblon e o Jardim Botânico. Eu ficava com uma dor de corno.
Também guarda lembranças — essas, mais eletrizantes — do 433 e do 438, “que pareciam levantar voo pelo Aterro”. Diz que a escolha atual pelo ônibus o força a ter uma relação maior com a cidade:
— Você tem que saber onde para cada linha, tem que saltar longe de casa, caminhar. No caminho acaba encontrando alguém. E existe a solidariedade das pessoas, que se oferecem para segurar as sacolas de quem está em pé. Não ando de ônibus porque é politicamente correto. Apenas me sinto feliz.
Morador de Santa Teresa, o músico BNegão, de 40 anos, é mais pragmático. Diz que a passagem de um coletivo em seu bairro — ainda mais isolado após a aposentadoria do bonde — é tão rara que costuma ser comemorada como se fosse uma aparição.
— Tem que ter muito tempo livre para pegar ônibus aqui. Quando passa, você faz um pedido — ironiza. — Antes tinha van, que facilitava. Mas os caras proibiram, embora permitam que, por R$ 80, elas levem os turistas para o Cristo.
Não raro, desce a pé ou de táxi para o Centro da cidade. De lá mergulha no metrô e vai para Tijuca, Copacabana e Largo do Machado, onde costuma ensaiar.
— Uso o que está mais em mãos. O negócio é chegar. — explica. — Só não entendo gente que acha uma onda pegar o metrô em Nova York. É sujo, acabado, feio pra caramba. Lá é bom e aqui é demérito?
O escritor Silviano Santiago concorda:
— Viajo para o exterior com frequência. Lá fora, andar de ônibus ou metrô não te desclassifica socialmente. Aqui é malvisto aos olhos da classe média.
Aos 77 anos, Santiago, que é morador de Ipanema, ainda pega ônibus (sempre sentado na janela) para ir ao cinema em Botafogo. Tem opinião formada sobre várias das linhas que atravessam seu bairro:
— Não gosto do 474 e do 415, porque são os piores motoristas, de longe. O 154 melhorou quando ganhou ar-condicionado. O 125 foi alongado até o Horto, ficou confuso.
Mineiro, ele lembra que ao chegar no Rio, na década de 60, o transporte público ainda tinha certa dignidade:
— Não havia tanto carro particular, todo mundo tomava bonde. O Drummond só ia de ônibus para o trabalho. Isso começou a mudar com a indústria do automóvel, e piorou com a noção atual de grife. Andar de ônibus não é uma grife.
Escritor: serviço é pior que veículo
O problema, acredita, não reside na qualidade do veículo, mas do serviço:
— Uma vez detectei que o motorista de ônibus entende que quem paga o salário não é o usuário, mas o empresário. A noção de concessão e serviço público aqui é muito pobre.
É por isso que, mesmo fazendo críticas ao serviço, a atriz Letícia Isnard, de 39 anos — que interpretou a personagem Ivana na novela “Avenida Brasil” —, insiste em andar de ônibus.
— Evito horário de pico, porque vira uma lata de sardinha. Também não uso para ir ao Projac, porque levaria o dobro do tempo — explica, antes de enumerar outros problemas. — Para subir o degrau, que é alto, tem que fazer pilates. Quando ando em pé, parece que estou surfando. E o motorista fica naquele calor, ao lado do motor. É tudo muito brutalizado.
Então por que a escolha?
— São as pequenas revoluções cotidianas — responde. — Para que eu pago imposto? Assim exerço meu direito de usar um serviço que deveria funcionar. Faço uma analogia: se a classe média matriculasse os filhos em escolas públicas, o nível, por causa da fiscalização, iria melhorar. A gente é muito pouco ouvido nesse país. No ano passado as pessoas foram às ruas e continua tudo a mesma porcaria.
Mas podem mudar, se depender da vontade de Lucélia Santos. Na semana passada, a atriz enviou um texto com 11 propostas de melhoria para o Rio Ônibus. Escreveu também um longo tratado sobre o assunto, disponível, junto com a versão online desta reportagem, no site do GLOBO. Num trecho, diz:
“Decidi aproveitar essa oportunidade para discutir publicamente a situação dos transportes coletivos no Rio. Eu posso fazer isso muito bem. Dona Francisca, minha faxineira que viaja três horas de ônibus para chegar ao trabalho, meu caseiro, meus funcionários do dia a dia não podem. E os que poderiam discutir o assunto, pois têm verve e condições para fazê-lo, não o fazem porque são egoístas, estão escondidos e refugiados nos seus carrões muitas vezes blindados, com medo dos ‘pobres’.”
— Outro dia, no ônibus, uma senhora me reconheceu e passou a contar a vida dela. Era passadeira, gostava de dar presente para o neto. Essas crônicas do cotidiano me encantam — ela diz. — Todo mundo deveria fazer um pouco isso para baixar a bola. As pessoas são muito metidas.
Na quarta-feira retrasada, Lucélia repetiu o roteiro que, vez por outra, lhe é contumaz. Deixou a casa que divide com os cachorros Batok e Asdrúbal no Itanhangá, cruzou o Alto da Boa Vista a bordo de um ônibus da linha 345 e, uma vez na Tijuca, pegou um metrô da Praça Saens Pena para o Centro da cidade. Cumpriu afazeres, seguiu para a aula de ioga no Humaitá e, no fim da tarde — exaurida e suada —, encarou de pé um 524 na volta para casa. Foi quando acabou fotografada por uma passageira.
Em minutos, a imagem estava nos sites de notícia, incluindo os de celebridade. “Lucélia Santos é flagrada em ônibus lotado no Rio’’, escreveu um blogueiro, valendo-se de um verbo mais usado para descrever ações da polícia que trivialidades do dia a dia. “Atriz Lucélia Santos é fotografada em ônibus cheio no Rio, após sumir da TV’’: a manchete circulou na web sugerindo uma relação de causa (sumir da TV) e efeito (andar de ônibus lotado).
Dois dias depois, a atriz desabafou em sua página no Twitter: “O Brasil é o único país que conheço em que andar de ônibus é politicamente incorreto! Vai entender...” Recebeu mensagens de apoio, foi procurada pelo Rio Ônibus (o sindicato que representa as empresas de ônibus do Rio), passou a reivindicar melhorias no serviço. De repente, por obra do acaso, se viu alçada ao posto de porta-voz dos descontentes.
— Fiquei brava só porque a foto era horrível — admitiu, numa conversa com a Revista O GLOBO na última terça-feira. — O resto (o fato de ter sido retratada num ônibus) não me importou nem um pouco. Mas agora, já que eu tenho voz, quero falar com empresários e com o prefeito. É bom para a cidade.
Isaura da novela “Escrava Isaura’’ e Bonitinha do filme “Bonitinha mas ordinária’’, Lucélia Santos viveu seu apogeu como atriz nas décadas de 70 e 80. Desde então, ela, que é ex-mulher do maestro John Neschling e mãe do ator Pedro Neschling, passou a se dedicar menos às telas e mais à carreira de documentarista e aos palcos. Nos últimos dois anos, esteve em cartaz em São Paulo com “A Falecida’’, de Nelson Rodrigues. Agora, pretende interpretar a pintora Frida Khalo.
Tem 56 anos, é vegetariana. Faz trilha três vezes por semana e sobe a Pedra da Gávea uma vez ao mês. Possui carro — um Honda —, mas não sabe dirigir. Já foi dona de um Troller com tração nas quatro rodas, que sonhava usar em competições de rali (sentada na cadeira do copiloto). Um motorista chamado Zé a atende às terças e às quintas.
— Se eu estivesse sempre no Rio, talvez tivesse motorista durante toda a semana. Mas para a vida que levo, dois dias resolvem — explica. — Além disso, não gosto de ter ninguém me esperando. Às vezes me sinto na obrigação de fazer minha agenda em função do Zé.
Peça no Centro motivou a atriz
No restante dos dias, se precisa ir à Zona Sul, pega um primeiro ônibus para atravessar o Itanhangá, cruza a pé a passarela sobre a Avenida Ministro Ivan Lins e toma um segundo coletivo no ponto em frente à igrejinha da Barra.
— Não sou madame. Faço faxina, passo roupa, lavo cachorro — conta, para em seguida filosofar. — Amo o conforto, o dinheiro, o sucesso. Adoro usar Channel e viajar de primeira classe, mas tenho outros valores. Gosto de carrão, mas teria vergonha de andar num desses. Nenhum carro é ocupado à sua potencialidade.
Lucélia mergulhou de cabeça no transporte público em 2011, quando estrelou a peça “Alguém acaba de morrer lá fora’’, no Centro.
— Era longe pra caramba, eu ia de ônibus e metrô — diz. — Táxi me estressa.
Como não conhecia bem as linhas, passou a fazer anotações em seu iPhone. No dia 28 de março daquele ano, escreveu: “Ônibus para Ipanema: 2016 amarelo com ar-condicionado.’’ Em 2 de outubro, acrescentou: “Ônibus 309 passa na praia. Vai pela Praia do Flamengo / Castelo, acho que pela Olegário’’, “467 Cascadura / Itanhangá / Rio das Pedras passa pela praia também’’, “Além do 233 que agora acho que é 302!!!”, “3 opções para casa, sendo duas pelo Alto’.’ No fatídico 12 de março recente, pouco antes de ser fotografada, acabara de anotar: “Ônibus por Humaitá 524 igrejinha da Barra.’’
— Aquele dia tinha sido um inferno. Na volta, fiquei duas horas no trânsito até o Largo da Barra — diz. — Eu não me importo de ser reconhecida no ônibus. Várias vezes alguém me pergunta se eu não sou “aquela atriz, a Lucinha Lins”. Acho graça. Só não entendo por que eu não posso andar de ônibus. Acho cafona, de mau gosto, essa cultura da celebridade. O artista, quanto melhor, mais maduro, mais tem o pé no chão. Quanto menos ego para mim, melhor.
No ar na novela das seis “Joia rara’’, o ator Carmo Dalla Vecchia, de 43 anos, só aprendeu a dirigir três meses atrás. Durante cerca de dez anos — desde que ingressou na Globo até protagonizar “Cobras e lagartos’’, em 2006 — foi da Zona Sul ao Projac de ônibus, trajeto que costuma levar pelo menos duas horas em dias de pouco trânsito.
— Eu aproveitava para ler o roteiro, sempre na altura dos olhos, para não ficar enjoado — ele lembra. —Me estranha as pessoas acharem isso estranho. Mais importante que vigiar os atores é vigiar os políticos e a qualidade do serviço.
Vez por outra, ainda pega o coletivo para ir a um centro cultural budista no Méier.
— O que está agregado ao fato de andar de ônibus? — pergunta. — Falta de status? Transporte público polui menos. Deveria ser o contrário.
Autor do livro “Fé em Deus e pé na tábua”, sobre o comportamento do brasileiro no trânsito, o antropólogo Roberto DaMatta lembra que o transporte coletivo nem sempre foi visto com maus olhos.
— Na minha infância eu pegava trem na Estação Leopoldina. Cadê a Leopoldina hoje? Inconscientemente ou não, destruímos a rede ferroviária a partir dos anos 50. Fizemos uma opção óbvia pelo transporte privado quando o individualismo entrou forte na sociedade brasileira. E, por ironia, isso reapareceu no lulo-petismo, com subsídio ao combustível e imposto baixo para os carros. O Brasil de hoje tem mais carro do que rua.
Na contramão desse movimento consumista, o artista Ernesto Neto, de 49 anos, atualmente com instalação à mostra no Guggenheim Bilbao, escolheu se desfazer de seu veículo há pouco mais de uma década.
— Eu morava no meu ateliê no Centro, quase não circulava. Dei o carro para um funcionário e passei a andar de táxi — diz.
Assim foi até recentemente, quando retomou o uso do ônibus. A escolha foi movida por uma causa nobre: ensinar seu filho Lito, de 13 anos, a ir à escola sozinho.
— Quando você é criança, andar de ônibus é uma liberdade. É assim que começa a independência — teoriza Neto.
A sua liberdade, como lembra, teve início na linha 157:
— Eu morava na Lagoa. Depois da escola, pegava o ônibus com mais umas três pessoas. Já meus amigos pegavam o 574, que era mais pop, cheio de gente indo para o Leblon e o Jardim Botânico. Eu ficava com uma dor de corno.
Também guarda lembranças — essas, mais eletrizantes — do 433 e do 438, “que pareciam levantar voo pelo Aterro”. Diz que a escolha atual pelo ônibus o força a ter uma relação maior com a cidade:
— Você tem que saber onde para cada linha, tem que saltar longe de casa, caminhar. No caminho acaba encontrando alguém. E existe a solidariedade das pessoas, que se oferecem para segurar as sacolas de quem está em pé. Não ando de ônibus porque é politicamente correto. Apenas me sinto feliz.
Morador de Santa Teresa, o músico BNegão, de 40 anos, é mais pragmático. Diz que a passagem de um coletivo em seu bairro — ainda mais isolado após a aposentadoria do bonde — é tão rara que costuma ser comemorada como se fosse uma aparição.
— Tem que ter muito tempo livre para pegar ônibus aqui. Quando passa, você faz um pedido — ironiza. — Antes tinha van, que facilitava. Mas os caras proibiram, embora permitam que, por R$ 80, elas levem os turistas para o Cristo.
Não raro, desce a pé ou de táxi para o Centro da cidade. De lá mergulha no metrô e vai para Tijuca, Copacabana e Largo do Machado, onde costuma ensaiar.
— Uso o que está mais em mãos. O negócio é chegar. — explica. — Só não entendo gente que acha uma onda pegar o metrô em Nova York. É sujo, acabado, feio pra caramba. Lá é bom e aqui é demérito?
O escritor Silviano Santiago concorda:
— Viajo para o exterior com frequência. Lá fora, andar de ônibus ou metrô não te desclassifica socialmente. Aqui é malvisto aos olhos da classe média.
Aos 77 anos, Santiago, que é morador de Ipanema, ainda pega ônibus (sempre sentado na janela) para ir ao cinema em Botafogo. Tem opinião formada sobre várias das linhas que atravessam seu bairro:
— Não gosto do 474 e do 415, porque são os piores motoristas, de longe. O 154 melhorou quando ganhou ar-condicionado. O 125 foi alongado até o Horto, ficou confuso.
Mineiro, ele lembra que ao chegar no Rio, na década de 60, o transporte público ainda tinha certa dignidade:
— Não havia tanto carro particular, todo mundo tomava bonde. O Drummond só ia de ônibus para o trabalho. Isso começou a mudar com a indústria do automóvel, e piorou com a noção atual de grife. Andar de ônibus não é uma grife.
Escritor: serviço é pior que veículo
O problema, acredita, não reside na qualidade do veículo, mas do serviço:
— Uma vez detectei que o motorista de ônibus entende que quem paga o salário não é o usuário, mas o empresário. A noção de concessão e serviço público aqui é muito pobre.
É por isso que, mesmo fazendo críticas ao serviço, a atriz Letícia Isnard, de 39 anos — que interpretou a personagem Ivana na novela “Avenida Brasil” —, insiste em andar de ônibus.
— Evito horário de pico, porque vira uma lata de sardinha. Também não uso para ir ao Projac, porque levaria o dobro do tempo — explica, antes de enumerar outros problemas. — Para subir o degrau, que é alto, tem que fazer pilates. Quando ando em pé, parece que estou surfando. E o motorista fica naquele calor, ao lado do motor. É tudo muito brutalizado.
Então por que a escolha?
— São as pequenas revoluções cotidianas — responde. — Para que eu pago imposto? Assim exerço meu direito de usar um serviço que deveria funcionar. Faço uma analogia: se a classe média matriculasse os filhos em escolas públicas, o nível, por causa da fiscalização, iria melhorar. A gente é muito pouco ouvido nesse país. No ano passado as pessoas foram às ruas e continua tudo a mesma porcaria.
Mas podem mudar, se depender da vontade de Lucélia Santos. Na semana passada, a atriz enviou um texto com 11 propostas de melhoria para o Rio Ônibus. Escreveu também um longo tratado sobre o assunto, disponível, junto com a versão online desta reportagem, no site do GLOBO. Num trecho, diz:
“Decidi aproveitar essa oportunidade para discutir publicamente a situação dos transportes coletivos no Rio. Eu posso fazer isso muito bem. Dona Francisca, minha faxineira que viaja três horas de ônibus para chegar ao trabalho, meu caseiro, meus funcionários do dia a dia não podem. E os que poderiam discutir o assunto, pois têm verve e condições para fazê-lo, não o fazem porque são egoístas, estão escondidos e refugiados nos seus carrões muitas vezes blindados, com medo dos ‘pobres’.”
— Outro dia, no ônibus, uma senhora me reconheceu e passou a contar a vida dela. Era passadeira, gostava de dar presente para o neto. Essas crônicas do cotidiano me encantam — ela diz. — Todo mundo deveria fazer um pouco isso para baixar a bola. As pessoas são muito metidas.
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