Trocamos o prazer à mesa pelos cálculo de nutrientes, comprimidos e shakes milagrosos. É como substituir o orgasmo pela mera atividade reprodutiva
por Matheus Pichonelli
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Quem assistiu ao filme Paraíso, de Mariana Chenillo, sabe
o que o escritor Michael Pollan quer dizer quando analisa a diferença
entre comer comida e comer nutrientes na sociedade atual. Meio drama,
meio comédia, o filme produzido por Gael Garcia Bernal é um retrato bem
acabado das ansiedades do nosso tempo. Conta a história de um casal que
vive de fato no paraíso até resolver se mudar para a cidade grande e se
deparar com uma espécie de pecado original. Até ali, um parece
feito para o outro: são companheiros, saem para dançar, têm uma vida
sexual ativa, compartilham os mesmos hábitos e gostos e chamam um ao
outro de Gordo e Gorda.
Isso não parece ser um problema até conhecerem, em uma festa, os novos amigos da nova empresa de Alfredo (Andrés Almeida), um banco sediado na Cidade do México. No evento, Carmen (Daniela Rincón) se depara com outro tipo de etiqueta: as mulheres são magérrimas, usam sempre vestido escuro (o dela é azul), têm cabelos longos e lisos e cravam o chão com sapatos de salto agulha como se andassem sobre algodão. Ao entrar no banheiro, ela ouve a conversa entre duas colegas do marido, que juram ter sentido nojo ao ver o tamanho do casal. “Já imaginou os dois transando?”, diz uma, entre risos. A outra fulmina: eles parecem ter saído de um quadro de Fernando Botero.
Ao testemunhar o diálogo, Carmen descobre o horror. Passa a não sair mais de casa e desenvolve uma obsessão pelo próprio peso, alvo de fuxico e rejeição no novo círculo social. Mergulha assim em um mercado patrulheiro do peso, adepto de táticas motivacionais que transformam as metas de emagrecimento em uma questão moral. No mundo contemporâneo, mostra a cineasta, o peso e a relação com a comida são duas entre outas tantas métricas criadas para dividir a humanidade entre vencedores e vencidos.
Em casa, Carmen tenta implementar novos hábitos alimentares. E convence o marido a acompanha-la no sacrifício. Ele reluta, mas aceita e se empolga. Resultado: ele emagrece, ela não. E quanto menos ela emagrece, mais se culpa, mais se angustia, mais se esconde...e mais ela come.
A mudança de hábitos provoca estragos consideráveis naquela casa. Ao deixar de sentar na mesma mesa e compartilhar os mesmos alimentos, o casal passa a se distanciar. A falar outra língua. A criar áreas de atrito até então inexistentes.
O filme, de alguma maneira, mostra que o prato levado à mesa não é só um prato. É uma espécie de catalisador das dores ou das delícias ao redor. Em nosso circulo social é preciso, como na música, saber da piscina, da margarina, da carolina, da gasolina; é preciso saber inglês, o que sabemos e o que não sabemos mais. E é preciso calcular níveis de nutrientes e antioxidantes e entrar numa espiral de paranoia para ter uma vida amarrada e...saudável. Saudável? Sim, em nome desse conceito e de um peso dito ideal, tão autoritário quanto inalcançável, muitos aceitam praticar um exercício de automutilação cada vez mais comum. Tomamos comprimidos para não sentir fome, shakes emagrecedores para substituir a refeição e nos entupimos de porcariazinhas sem gosto ao longo dos dias para não chegar em casa com a tentação de subir ao paraíso pelo garfo de espaguete.
Quando isso acontece, dormimos mal – muitos só encontram alívio com o dedo indicador do refluxo gástrico. E nos deparamos cada vez mais com controles internos e eternos, que começam no programa de estúdio com cores amenas na tevê e terminam na fila do fasto food. Por isso sentamos à mesa e ouvimos dos acompanhantes: “você vai MESMO comer isso?”.
É uma condenação semelhante à enfrentada pelo ato sexual em outros séculos: só pode se for bem comportado – e, em nome disso, substituímos a experiência do prazer pela urgência da dor, da culpa, do compromisso. Pois o prazer de se sentar à mesa passa pelo mesmo processo. É como abrir mão do orgasmo para viver como meras entidades reprodutivas.
Em sua passagem ao Brasil, Michael Pollan concedeu uma série de entrevistas a respeito da nossa relação com os alimentos, tema de seu mais recente livro. Em uma delas, para a revista Vila Cultural, o escritor americano fez uma série de alertas sobre nossa “compreensão superficial” da comida, hoje relacionada a combustível, energia ou entretenimento – e sobre a qual as receitas de sucesso do momento criam relação direta com o tempo (“Cozinhe em cinco minutos”, “Perca 5kg em dois dias”, etc).
Uma aparente contradição desses tempos, defende o autor, é que as dietas da moda são incentivadas pela própria indústria alimentícia, que usa promessas de benefícios para a saúde e, no fim, nos leva a comer cada vez mais. Isso só demostra uma coisa: no meio da patrulha, ficamos simplesmente alienados em relação ao que comemos – e ao modo como comemos e ao impacto que esse modo produz nas nossas relações sociais, como mostra o filme de Mariana Chenillo.
“Hoje, quando vemos a promessa em um menu de que determinada comida tem poucos carboidratos, automaticamente pensamos que se trata de comida saudável e, assim, podemos comer maiores quantidades. As pessoas acabam comendo compulsivamente. Comem um excesso de ‘comidas saudáveis’. A obsessão com os nutrientes é uma receita para desenvolver ansiedade de comer, e ficar preocupado o tempo todo não é bom para a saúde. Comemos comida, e não nutrientes”.
As palavras do autor americano me levaram a visualizar os personagens dessa patrulha (a maioria entre sorrisos nas capas de revistas de saúde e boa forma). Desde então passei a trucida-los em meus pratos com meus garfos, minhas facas e meus carboidratos.
Ao fim da entrevista, e do filme, lembrei que, dias atrás, meu filho de um ano e um mês provocou uma avalanche de ansiedades entre adultos saudáveis ao ser flagrado com a boca suja de chocolate em uma foto no Facebook. Houve gente que chegou a questionar nossa coragem de dar a ele algo tão condenável. Só então entendi o que Fernando Pessoa escreveu na sua Tabacaria: “Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”.
Isso não parece ser um problema até conhecerem, em uma festa, os novos amigos da nova empresa de Alfredo (Andrés Almeida), um banco sediado na Cidade do México. No evento, Carmen (Daniela Rincón) se depara com outro tipo de etiqueta: as mulheres são magérrimas, usam sempre vestido escuro (o dela é azul), têm cabelos longos e lisos e cravam o chão com sapatos de salto agulha como se andassem sobre algodão. Ao entrar no banheiro, ela ouve a conversa entre duas colegas do marido, que juram ter sentido nojo ao ver o tamanho do casal. “Já imaginou os dois transando?”, diz uma, entre risos. A outra fulmina: eles parecem ter saído de um quadro de Fernando Botero.
Ao testemunhar o diálogo, Carmen descobre o horror. Passa a não sair mais de casa e desenvolve uma obsessão pelo próprio peso, alvo de fuxico e rejeição no novo círculo social. Mergulha assim em um mercado patrulheiro do peso, adepto de táticas motivacionais que transformam as metas de emagrecimento em uma questão moral. No mundo contemporâneo, mostra a cineasta, o peso e a relação com a comida são duas entre outas tantas métricas criadas para dividir a humanidade entre vencedores e vencidos.
Em casa, Carmen tenta implementar novos hábitos alimentares. E convence o marido a acompanha-la no sacrifício. Ele reluta, mas aceita e se empolga. Resultado: ele emagrece, ela não. E quanto menos ela emagrece, mais se culpa, mais se angustia, mais se esconde...e mais ela come.
A mudança de hábitos provoca estragos consideráveis naquela casa. Ao deixar de sentar na mesma mesa e compartilhar os mesmos alimentos, o casal passa a se distanciar. A falar outra língua. A criar áreas de atrito até então inexistentes.
O filme, de alguma maneira, mostra que o prato levado à mesa não é só um prato. É uma espécie de catalisador das dores ou das delícias ao redor. Em nosso circulo social é preciso, como na música, saber da piscina, da margarina, da carolina, da gasolina; é preciso saber inglês, o que sabemos e o que não sabemos mais. E é preciso calcular níveis de nutrientes e antioxidantes e entrar numa espiral de paranoia para ter uma vida amarrada e...saudável. Saudável? Sim, em nome desse conceito e de um peso dito ideal, tão autoritário quanto inalcançável, muitos aceitam praticar um exercício de automutilação cada vez mais comum. Tomamos comprimidos para não sentir fome, shakes emagrecedores para substituir a refeição e nos entupimos de porcariazinhas sem gosto ao longo dos dias para não chegar em casa com a tentação de subir ao paraíso pelo garfo de espaguete.
Quando isso acontece, dormimos mal – muitos só encontram alívio com o dedo indicador do refluxo gástrico. E nos deparamos cada vez mais com controles internos e eternos, que começam no programa de estúdio com cores amenas na tevê e terminam na fila do fasto food. Por isso sentamos à mesa e ouvimos dos acompanhantes: “você vai MESMO comer isso?”.
É uma condenação semelhante à enfrentada pelo ato sexual em outros séculos: só pode se for bem comportado – e, em nome disso, substituímos a experiência do prazer pela urgência da dor, da culpa, do compromisso. Pois o prazer de se sentar à mesa passa pelo mesmo processo. É como abrir mão do orgasmo para viver como meras entidades reprodutivas.
Em sua passagem ao Brasil, Michael Pollan concedeu uma série de entrevistas a respeito da nossa relação com os alimentos, tema de seu mais recente livro. Em uma delas, para a revista Vila Cultural, o escritor americano fez uma série de alertas sobre nossa “compreensão superficial” da comida, hoje relacionada a combustível, energia ou entretenimento – e sobre a qual as receitas de sucesso do momento criam relação direta com o tempo (“Cozinhe em cinco minutos”, “Perca 5kg em dois dias”, etc).
Uma aparente contradição desses tempos, defende o autor, é que as dietas da moda são incentivadas pela própria indústria alimentícia, que usa promessas de benefícios para a saúde e, no fim, nos leva a comer cada vez mais. Isso só demostra uma coisa: no meio da patrulha, ficamos simplesmente alienados em relação ao que comemos – e ao modo como comemos e ao impacto que esse modo produz nas nossas relações sociais, como mostra o filme de Mariana Chenillo.
“Hoje, quando vemos a promessa em um menu de que determinada comida tem poucos carboidratos, automaticamente pensamos que se trata de comida saudável e, assim, podemos comer maiores quantidades. As pessoas acabam comendo compulsivamente. Comem um excesso de ‘comidas saudáveis’. A obsessão com os nutrientes é uma receita para desenvolver ansiedade de comer, e ficar preocupado o tempo todo não é bom para a saúde. Comemos comida, e não nutrientes”.
As palavras do autor americano me levaram a visualizar os personagens dessa patrulha (a maioria entre sorrisos nas capas de revistas de saúde e boa forma). Desde então passei a trucida-los em meus pratos com meus garfos, minhas facas e meus carboidratos.
Ao fim da entrevista, e do filme, lembrei que, dias atrás, meu filho de um ano e um mês provocou uma avalanche de ansiedades entre adultos saudáveis ao ser flagrado com a boca suja de chocolate em uma foto no Facebook. Houve gente que chegou a questionar nossa coragem de dar a ele algo tão condenável. Só então entendi o que Fernando Pessoa escreveu na sua Tabacaria: “Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”.
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