Um pote gigante de whey protein tem lugar cativo numa sala da administração de um hospital público da Ilha do Governador. É ali que a enfermeira Kirley Suenia Miranda coordena uma equipe de quase 60 pessoas das áreas de áreas de segurança, rouparia, manutenção, limpeza e engenharia clínica. Entre um atendimento e outro, a moça de 27 anos checa os e-mails, prepara relatórios e bebe a mistura de água com o suplemento alimentar à base de proteína. O uso do pó feito a partir do soro do leite faz parte da dieta rigorosíssima que Kirley segue há dois anos e que ajudou a transformar o seu corpo, estrategicamente escondido por um jaleco branco no trabalho.
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Ao contrário do que se imagina de uma fisiculturista, Kirley, que recebe acompanhamento nutricional personalizado, não tem músculos daqueles que saltam do corpo e chegam a causar espanto. Também não tem traços brutos, desproporcionais ou masculinizados, nem voz rouca, típica de quem fez uso de anabolizantes.
► VÍDEO: Veja os bastidores da sessão de fotos das fisiculturistas:
Com a popularização das garotas Wellness, o fisiculturismo feminino começa a viver uma nova fase, cercada de menos preconceito, mais campeonatos e um público crescente. Se alguns anos atrás um evento grande do gênero não reunia nem cem pessoas, hoje atrai milhares de curiosos. Os patrocinadores também começam a dar o ar da graça, mas costumam oferecer apenas uma permuta com os seus produtos (geralmente vitaminas e roupas de ginástica).
No caso das meninas, a maioria é atraída para a modalidade por duas razões: o desejo de ter o “corpo perfeito” e o sonho de ser famosa. Gastam mais do que recebem. Nem sempre, os prêmios são em dinheiro. Muitas vezes, mesmo as vencedoras voltam para casa depois dos eventos com, no máximo, uma sacola cheia de brindes.
— A dieta não é tão agressiva. O corpo deve ser torneado, mas não precisei ficar fortona como era antes — diz Amanda, de 31 anos, que também é árbitra desde 2008. — Tem que ter carisma, beleza e cabelos bem cuidados. Quando subo no palco, consigo identificar na hora quem são as minhas maiores adversárias.
A preparação exige muita disciplina e, definitivamente, não é para qualquer uma. Consumir suco verde e tapioca, sucesso entre it-girls famosas na internet como Carol Buffara, é motivo de piada entre as marombadas. A alimentação delas se resume a dúzias de claras de ovos, muita batata-doce e quilos de frango, ingeridos a cada três horas.
— É importante que um profissional da nutrição faça o acompanhamento. Se a dieta for muito restrita e seguir por um período longo, sem variedade de frutas e grãos, por exemplo, ela pode provocar deficiências vitamínicas e minerais — alerta Gabriel Alvarenga, responsável pelo setor de nutrição da Bodytech.
Para tentar variar o invariável, Aline Machado, cinco meses de carreira e seis competições no currículo, abusa da criatividade. Sem adicionar sal ou qualquer tempero ao que consome, ela prepara frango grelhado com batata amassada, frango no forno com batata cozida, torta de batata com frango.
Quando a vontade de comer doce é incontrolável, Aline, que sonha em ter sua própria marca fitness, bate uma banana congelada com whey protein e um punhadinho de aveia.
— Fica uma delícia, igualzinho a um sorvete — garante a também estudante de Nutrição, que admite correr para o rodízio de massas assim que sai das competições.
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Juliana é novata, mas tem pose e ares de campeã. Começou a treinar pesado em março depois de ver de perto a modelo fitness Bella Falconi, que ficou conhecida como a “musa do abdômen trincado”. Emagreceu nove quilos em quatro semanas fazendo muita musculação e duas séries de exercícios aeróbicos por dia. Tanto esforço rendeu os títulos de campeã estadual, brasileira e uma vaga no Mundial, que acontece em outubro no Canadá.
A moradora de São Gonçalo é uma das poucas que não têm próteses de silicone nos seios. A parte de cima de seu biquíni cheio de brilhos ganhou enchimento. Além disso, chumaços e mais chumaços de algodão ajudam a dar volume à comissão de frente.
— É como se tudo isso fosse um sonho — diz Juliana, enquanto devora pequenos pedaços de frango que leva numa marmita, no intervalo da sessão de fotos para a Revista O GLOBO. — O problema é ficar sem chocolate. Tem noite que eu sonho com aquelas barras gigantes, acredita?
Ariana Klein, 30 anos e 300ml de silicone nos seios, largou o emprego de gerente administrativa de uma joalheira em São Conrado, onde mora, para passar suas manhãs e tardes na academia. Há dois anos, participa de todos os eventos que aparecem pela frente, ainda que para isso tenha que se deslocar para outras cidades, de carro ou de avião. O marido, um empresário do ramo de imóveis, é seu grande patrocinador.
Tanto na categoria Biquíni quanto na Wellness, a roupa de trabalho é elemento importantíssimo para um bom resultado. E mais uma despesa, em meio aos altos valores que precisam ser investidos na “carreira” (veja quadro acima). Enquanto na primeira, de acordo com as regras, a peça deve cobrir dois terços do bumbum, na segunda o modelo é quase um fio dental. De olho no mercado, uma costureira de São Paulo se especializou em produzir biquínis para eventos fitness. Virou a principal fornecedora do país. Os preços podem variar entre R$ 300 e R$ 1 mil, dependendo da quantidade de pedras, lantejoulas e outros apliques que a cliente desejar.
Na competição, acessórios como pulseiras, anéis e brincos são liberados, e as moças sempre escolhem os mais brilhosos. Os sapatos têm no máximo 12 centímetros de salto e não podem ter amarrações nas pernas. Tatuagens são permitidas, desde que não dificultem a avaliação do corpo de jurados.
Corpo com aspecto bronzeado é obrigatório nas apresentações. O problema é que apenas duas tintas (e não bronzeadores) são liberadas para uso pela federação brasileira. Aplicadas com pincel ou esponja, custam entre R$ 150 e R$ 180, e demoram até três horas para secar, tempo que pode ser acelerado com um secador de cabelo. Para evitar borrões, a maioria das atletas prefere contratar um “pintor de corpos”. São mais R$ 150 por 20 minutos de serviço.
— É uma profissão cara e difícil — afirma a paulista Nathalia Melo, de 30 anos, primeira brasileira a ganhar o Olympia, espécie de Copa do Mundo dos fortões, que hoje mora na Irlanda do Norte. — Chega a ser uma jornada solitária. São muitas horas de treino, alimentação regrada, e as pessoas questionando: “Mas não pode comer um pedacinho de pizza? Nem uma taça de vinho?”
O fisiculturismo não é unanimidade nem entre as competidoras. Bicampeã mundial de bodyboard em 1996 e 1997, e mãe de dois filhos, Dani Freitas escolheu uma das categorias pesadas para sua estreia, em 2012. Os treinos foram intensos, os músculos brotaram, o cabelo dourado do sol ficou escuro, mas a carreira durou pouco.
— Parei e decidi não treinar mais nenhuma aluna para esse tipo de competição. Não gostei da minha experiência. Foram anos em que investi uma verba grande para no final me dar conta de que essa não passa de uma indústria ultrassuperficial e fake — alfineta a hoje personal trainer, que mora no Havaí, de onde dá consultoria para atletas do mundo inteiro.
— Este é um grupo de meninas que procura ter uma vida mais saudável, com boas horas de sono para recuperar os treinamentos intensos, mas também acabam sendo escravas do estereótipo de um corpo “sem defeito”. Muitas entram em estados de vigorexia, o transtorno dismórfico muscular que leva à prática exagerada de exercícios — explica o professor de educação física e fisioterapeuta Marcus Vinícius Gomes.
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Ricardo Pannain, que trabalha no ramo há mais de uma década, incluindo a sua própria mulher, a gigante bodybuilder Anne Freitas, só tem motivos para comemorar. Cerca de 90% de suas alunas atuais querem ser atletas Biquíni ou Wellness.
— É uma mulher enxuta e gostosa que tem um biotipo mais próximo da realidade. Hoje, meninas que nem começaram a competir já conseguem patrocínio. Isso é muito bom para elas e também para as outras categorias, que nunca viram eventos tão cheios e animados — avalia Ricardo.
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