Contrarevoluções
No Egito e na Tunísia, a repressão às manifestações é o símbolo do retrocesso.
por Gianni Carta
—
AFP
Os opositores egípcios são sistematicamente mortos pelo regime militar golpista As insurreições no
Egito e na Tunísia têm no seu âmago o mesmo sentido: legendas
secularistas e islamitas moderadas no início da chamada Primavera Árabe.
Nos primórdios de 2011 apresentavam-se como moderadas, mas agora
revelam suas secretas agendas de reislamização. Esse aspecto não somente
revela os cenários no Egito e na Tunísia, mas em vários outros países
do Norte da África e do Oriente Médio. No entanto, a situação no Egito,
onde centenas de opositores do regime militar são sistematicamente
mortos, é muito mais grave do que na Tunísia, onde um compromisso podia
ser consolidado no momento em que esta edição era impressa, na
quinta-feira 1º de agosto.
A baronesa britânica Ashton,
chefe da diplomacia da União Europeia, esteve nesta semana com o deposto
presidente egípcio Mohamed Morsi, em detenção após o golpe no dia 3 de
julho com centenas de aliados da Irmandade Muçulmana. A baronesa
garante: “Ele está com boa saúde, com bom senso de humor”. Mais: “Lê
jornais e quer voltar ao poder”. Por sua vez, Laurent Fabius, o ministro
francês do Exterior, pede que Morsi e seus aliados sejam libertados.
Seria uma questão de democracia. O problema é o seguinte: o general
Abdul Fatah al-Sisi, nomeado por Morsi porque muçulmano praticante,
busca um compromisso? Ele acredita em democracia? Não parece. Pede pela
participação de opositores de Morsi nas manifestações de rua. Assim cria
conflitos mais sangrentos. Vai além: nos últimos dias mandou matar
centenas de integrantes da Irmandade Muçulmana, a primeira agremiação
eleita pelo sufrágio universal na história do Egito.
Nomeado por Morsi, o general Al-Sisi,
gestor da situação e muçulmano praticante, cuja mulher trafega pela
capital egípcia a envergar uma burka, parece mais fiel à sua farda. E
aos Estados Unidos, onde estudou. O exército egípcio recebe 1,5 bilhão
de dólares de Washington desde 1979, quando assinou um acordo à sombra
dos tratados de Camp David, com Israel.
O golpe contra Morsi teria sido apoiado
pelos EUA? Tudo leva a crer que sim. Morsi, apesar de seu discurso,
quis negociar com Al-Sisi e, por tabela, com os americanos. Sem sucesso.
Foi deposto. A Arábia Saudita, o Kuwait e os Emirados Árabes Unidos,
entregues a reacionárias monarquias do Golfo Pérsico, apoiaram o golpe
com a contribuição de nada menos que 12 bilhões de dólares. Os motivos?
Pelo menos três. Querem um regime que se oponha ao Irã e seja partidário
dos EUA. Em segundo lugar, a Irmandade Muçulmana não é suficientemente
radical para os parâmetros sunitas sauditas. E, finalmente, os sauditas
detestam o Catar, outra nebulosa monarquia do Golfo, a festejar
jogadores de futebol e Morsi através da rede de tevê com sede em Doha, a
Al-Jazira.
O Ocidente, com
a conspícua participação de Washington no cenário internacional, e um
presidente, Barack Obama, que prefere se manter em uma aparente
retaguarda de movimentos no mundo árabe, é uma decepção. No seu segundo
mandato, Obama, sem objetivos para reeleição, filho de africano e com
raízes islâmicas, é um fiasco em termos de política internacional. E sem
uma estratégia clara para o mundo árabe, como diz a CartaCapital
o professor de ciências políticas Vali Nasr, reitor do Departamento de
Relações Internacionais da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, e
ex-colaborador do falecido diplomata Richard Holbrooke, do Departamento
de Estado, a respeito de Obama. Nasr acentua: “Não tem uma estratégia
para o mundo árabe”.
A lição: não se deve esperar dos EUA,
tampouco de um presidente negro com origens islâmicas. Em um programa
televisivo da France 24 News nesta semana, o acima assinado teve de
ouvir de um colega norte-americano: “É claro que Obama não tem uma
agenda. Para quem ele liga no Egito? Todos se odeiam”.
Não foi sempre assim. No fim do ano
passado, Obama elogiou Morsi quando este colocou um fim na guerra de
oito dias entre Israel e o Hamas, o movimento palestino de Gaza. Agora,
no entanto, o presidente americano negocia, ao que tudo indica, com os
militares egípcios abastecidos pelo dinheiro de Washington, como Hosni
Mubarak, o ditador deposto no início de 2011 e, mesmo assim, apoiado por
Washington até o fim. A razão? Como Ben Ali, o ditador tunisiano,
Mubarak continha os radicais fundamentalistas nas suas tocaias.
Enquanto isso, Benjamin Netanyahu, o
premier israelense, faz o que quer: mais e mais colonizações de
Jerusalém Oriental, que, em tese, pertence aos árabes, e mais as
inúmeras colonizações da Cisjordânia. John Kerry, secretário de Estado
dos EUA, negocia uma enésima e suposta paz entre os dois territórios. Em
vão: como incluir a Autoridade Palestina em conversas com uma coalizão
israelense já dividida sem envolver o Hamas, eleito em 2006, para
governar Gaza, também território palestino?
Mas o Hamas, como
o Hezbollah, partido político com braço armado no Líbano, é considerado
grupo terrorista pelos EUA e pela UE. Como conseguir a paz sem negociar
com um movimento com braço armado, como foi feito com o Sinn Féin, a
legenda política do IRA (Exército Republicano Irlandês) na Irlanda do
Norte?
O Egito encontra-se na ribalta do
debate porque o exército daquele país mais populoso do mundo árabe, com
85 milhões de habitantes, depôs o primeiro presidente eleito por
sufrágio universal. Importante frisar: o primeiro islamita, da Irmandade
Muçulmana. Por sua vez, a Tunísia, berço da Primavera Árabe, alcunha
oriunda das mentes burocráticas e diplomáticas, e até intelectuais tanto
dos EUA quanto da União Europeia, crentes com a costumeira ingenuidade
propiciada pelo movimento globalizante, de que aquelas revoluções
varreriam os déspotas.
O resultado, pelo menos para
mentes ingênuas? Um mundo onde os democratas liberais recém-eleitos,
mesmo se de legendas islamitas moderadas, dariam prioridade ao
neoliberalismo e, por tabela, o mercado livre prevaleceria. O Oriente
Médio, em suma, seria uma espécie de Revolução de Veludo, aquela na
Europa do Leste pós-queda do Muro de Berlim, em 1989. Em miúdos, o Egito
seria uma espécie de Polônia, país conservador, no sentido ideológico e
econômico, que abraçou a democracia com eleições democráticas e um
tangível apego ao neoliberalismo. Ademais, o Cairo, como Varsóvia, pelo
menos no plano militar, teria, em tese, um apego claro às metas de Tio
Sam.
A história não aconteceu como
Washington gostaria. Para os americanos, o mundo é demasiado simples. Ou
pelo menos é bom simplificar tudo para os cidadãos americanos
entenderem o cenário mundial. Washington quer levar alguma vantagem
nessas contendas.
No entanto,
Wassim Jabeur, ativista tunisiano na direção de um empresa de
informática de 28 anos, que acredita na democracia e foi espancado pelas
forças de segurança nos atuais conflitos, diz, ao telefone a CartaCapital:
“Agora queremos uma verdadeira transição democrática”. E ainda: “Agora
é para valer. Queremos a demissão do atual governo e eleições já”.
Talvez Jabeur se precipite. O
Ennahda, a legenda islâmica no poder na Tunísia, faz coalizão, ao
contrário da Irmandade Muçulmana, mais antiga agremiação organizada no
Islã, com dois partidos laicos de esquerda, o Ettakatol e o Congresso
por uma República, partido político do presidente Moncef Marzouki. Os
assassinatos de Mohammed Brami, no dia 25, e de Chokri Belaid, em
fevereiro, ambos críticos do partido islamita dominante, aceleraram
reformas.
Há, não resta dúvida, instabilidade
política e econômica na Tunísia. Os dois oposicionistas, dizem
observadores, foram mortos por aliados salafistas (leia
fundamentalistas) do governo. Mas eleições legislativas e presidenciais
estão previstas para o fim de 2013. Enquanto isso, o Egito continua à
beira de uma guerra civil.
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A opinião é de exclusiva competência do autor do artigo publicado na Revista Carta Capital.
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