Nossos cronistas que tentam impedir
que os condenados da Ação Penal 470 tenham direito a uma revisão
adequada de suas penas e mesmo uma segunda jurisprudência perderam um
argumento depois de ontem.
Numa postura autoritária, que confundia seus desejos com a realidade, falavam do monstro, do ronco, do demônio das ruas para justificar a prisão imediata dos condenados.
Numa postura autoritária, que confundia seus desejos com a realidade, falavam do monstro, do ronco, do demônio das ruas para justificar a prisão imediata dos condenados.
Mas tivemos protestos de participação modesta, que confirmam não só
a vergonhosa ignorância da fatia conservadora da elite de nossos meios
de comunicação quanto às preocupações reais que afligem a maioria da
população, mas também sua total falta de compromisso com a apuração e
divulgação de fatos verdadeiros e informações confiáveis.
Querem fazer propaganda, querem ideologia – e não é difícil entender a razão.
Interessados num eventual proveito político do julgamento, tentam
chantagear as instituições da democracia, sem importar-se, sequer, com
outros prejuízos de natureza cultural que o estimulo à baderna possa
produzir.
Como observou Janio de Freitas, pela primeira vez na história as
pessoas saíram à rua num 7 de setembro sem “incluir, sequer remotamente,
algo da ideia de nacionalidade, ou de soberania, de independência
mesmo.”
Diz ainda Janio: “pelo visto, não faria diferença se, em vez do
Sete de Setembro, a celebração mais próxima fosse o Natal. Ou Finados.”
Lembrando que somos uma pátria de desiguais, o Grito dos Excluídos disse a que veio. Mas só.
Os demais não disseram nada, embora fosse sobre eles que se disse tudo – especialmente, que o STF deveria se acovardar.
Há um componente maligno e manipulador nesse esforço para anunciar que um protesto será uma manifestação grandiosa.
Procura-se estimular o efeito manada naquele conjunto de cidadãos
capazes de sair à rua porque acham que “todo mundo vai estar lá”. Numa
sociedade pouco organizada como a nossa, onde os partidos políticos são o
que são e as demais organizações sociais são aquilo que se conhece,
muitas pessoas sentem-se desenraizadas e sem compromisso social maior.
Ficam impressionadas com demonstrações de força.
Tenta-se contaminar nestes indivíduos um sentimento de solidão e
isolamento caso não acompanhem os atos daqueles que se quer transformar
numa “maioria” que ninguém ouviu nem diz onde mora nem sabe o que pensa –
e muitas vezes nem pode ver o rosto, o que não é casual.
A leitura de Hanna Arendt, uma das mais fecundas estudiosas do
nascimento de movimentos totalitários que levaram às piores ditaduras do
século passado, permite interessantes comparações com aquilo que se diz
e se faz no Brasil de hoje. Não tudo, mas boa parte, pelo menos.
Hanna Arendt explicou que os movimentos contra uma democracia ainda
em gestação na Europa entre as duas Guerras precisaram de “uma grande
massa desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos, que nada
tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias
eram vãs; que, consequentemente, os mais respeitados, eloquentes e
representativos membros da comunidade eram uns néscios e que as
autoridades constituídas eram não apenas perniciosas, mas também
obscuras e desonestas.” (“Origens do totalitarismo”, página 444).
É claro que, diante do fiasco comprovado de ontem, ninguém irá
admitir que nunca houve uma relação direta nem clara entre a ação 470 e
os protestos de junho.
Havia, há dois meses, quem protestasse contra os condenados. Era
muita gente, sem dúvida. Mas havia uma raiva mais ampla e generalizada,
que envolvia o sistema político, a saúde pública e, como causa inicial,
não vamos esquecer, o transporte público.
Reconhecer isso hoje seria aceitar que se fez uma descrição
política interesseira, que pretende dar ao povo um tratamento de ralé,
estimulando, acima de tudo, a busca de um líder autoritário – para
empregar, mais uma vez, a análise de Hanna Arendt.
Para ela, povo é aquele movimento social articulado a partir de
interesses concretos e definidos, inclusive de classe social, que reage
para defender seus direitos quando são atacados – e por isso ela
identifica povo com a democracia.
Já a ralé, no sentido político, é formada por uma massa de cidadãos
de várias classes, alimentados por uma “amargura egocêntrica” que
produz uma forma de “nacional tribal” e também o “niilismo rebelde."
Analisando a estratégia de um dos mais cruéis líderes de um
movimento em si monstruoso como o nazismo, Arendt fala que Himmler
procurava recrutar integrantes das SS entre cidadãos que não estavam
interessados em “problemas do dia a dia”, mas somente em questões
ideológicas de quem acredita trabalhar “numa grande tarefa que só
aparece uma vez a cada dois mil anos.”
Vejam algumas semelhanças entre as coisas.
No livro “A Cozinha Venenosa”, no qual estuda a emergência do
nazismo a partir da história de um jornal socialdemocrata de Munique, a
jornalista Silvia Bittencourt lembra uma frase do hino da SS: “a
Alemanha desperta.”
Descrevendo a “atomização social e a individualização extrema”,
Hanna Arendt fala de massas que, “num primeiro desamparo de sua
existência, tenderam para um nacionalismo especialmente violento.”
Paulo Moreira Leite
Avaliando o comportamento dos partidos que tinham uma postura de
cumplicidade nos ataques à democracia, diz que agiam assim “por motivos
puramente demagógicos, contra seus próprios instintos e finalidades.”
Na verdade, a falta de disposição espontânea para transformar o 7
de setembro numa jornada de confronto político real, como ocorreu em
junho, não era tão difícil assim de ser percebida.
Em 4 de setembro registrei neste espaço minhas dúvidas sobre o tão
falado monstro e seu “ronco”, como dizem os adoradores de todo movimento
capaz de ser usado para causar prejuízos ao condomínio Lula-Dilma.
Falando dos crocodilos que rondam o Supremo, escrevi:
“Tenho certeza absoluta de que muitos brasileiros querem a prisão
dos condenados pela ação penal 470. São sinceros e estão convencidos de
seus motivos. Acho que o massacre dos meios de comunicação,
tendenciosos, tem muito a ver com isso.
Não custa lembrar, contudo, que o Brasil não se resume a essas
pessoas. Todos os deputados indiciados na ação penal 470 e que
disputaram cargos eleitos em 2010 tiveram boa votação. Em 2012 a lei
ficha limpa tirou João Paulo Cunha do pleito em Osasco. Senão, teria
sido eleito prefeito. Não pode concorrer e emplacou um substituto no
posto. Dirceu só não foi eleito em 2010 porque perdeu os direitos
políticos no Congresso.
(...)
O ‘povo’, ‘a rua’, ‘o monstro’ compareceu em massa às urnas em
2006, 2010, 2012. Em nenhuma dessas ocasiões a ação penal 470 derrotou
qualquer candidato a presidente, a governador, a prefeito. Ocorreram
derrotas e vitórias espetaculares. Sei da opinião de quem vai aos
protestos. Mas basta andar pela rua e perguntar a opinião da população
sobre Dilma. Ou sobre Lula.”
Seria ilusório no entanto, esperar por um balanço politicamente
honesto deste 7 de setembro. Ninguém irá aplicar o mesmo critério e
reconhecer que a população não está com tanta pressa assim –-- e dar uma
folga na chantagem sobre o Supremo, deixando que, nos últimos dias,
seja capaz de encarar os fatos e reconhecer que tem o dever de abrir o
debate para a discussão dos embargos infringentes, uma possibilidade de
assegurar a pelo menos uma parcela dos réus o direito de uma revisão de
suas penas.
As “ruas” e o "monstro" eram apenas pretextos convenientes para
justificar uma postura autoritária para mobilizar a população, de
qualquer maneira, para exigir punições exemplares. Não deu certo e agora
se mudará de assunto para perseguir o mesmo alvo, que é criminalizar as
mudanças ocorridas no país nas últimas décadas. Como se faz sempre, a
retórica consiste em transformar o bom em regular em ruim, o ruim em
péssimo – e dizer que tudo o que há de ótimo saiu da cartola da
oposição, enxotada do Planalto com uma popularidade negativa de 13
pontos.
A transmissão ao vivo do julgamento, ainda no ano passado,
destinava-se a transformar uma decisão que deveria ser tomada num
ambiente de serenidade e recolhimento num espetáculo público com várias
demonstrações de autoritarismo e intolerância.
Tivemos um ministro relator que jamais foi um juiz, mas um aliado
da acusação e, em vez de ser questionado a respeito, foi aplaudido
exatamente por isso.
Este comportamento permitiu várias distorções e abusos. No último
exemplo, o ministro Ricardo Lewandovski demonstrou, com dados
irrefutáveis, o agravamento artificial das penas com a finalidade de
impedir que, apesar das denúncias injustas, da falta de provas, da
fraqueza de tantas acusações, os réus pudessem beneficiar-se de um
direito universal – a prescrição de penas depois de determinado prazo de
investigação.
Estimulando atitudes de quem se coloca acima da lei, improvisa
soluções sob encomenda a seus interesses, o que se quer é outra coisa.
Convencer o “niilismo rebelde” e o “nacionalismo tribal” de que é
possível desrespeitar a democracia, pois ninguém será capaz de reagir.
Estamos sendo submetidos a um teste.
Através do ataque aos direitos de 25 condenados, pretende-se
atingir os direitos do povo inteiro. É um plano para um prazo mais
longo, amplo e profundo.
Se, em outubro de 2014, Dilma Rousseff e Lula confirmarem o que
dizem as pesquisas eleitorais de hoje, cravando uma quarta vitória
eleitoral consecutiva sobre a “ a amargura egocêntrica” das elites, nós
poderemos saber exatamente o que estava em jogo no espantalho do monstro
de 7 de setembro -- obter, fora das urnas, fora do respeito devido às
instituições democráticas, vitórias que só a soberania popular pode
assegurar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário