Nos porões da memória
O Estado Brasileiro tenta curar os danos causados a seus cidadãos durante a ditadura militar. Nos últimos meses, GQ acompanhou um programa inédito do governo federal que dá assistência psicológica a vítimas de tortura e suas famílias. No momento em que o golpe completa 50 anos, contamos como o tratamento está trazendo vida nova a quem sofreu com a violência – e como pode ajudar a curar os traumas do país inteiro
A guerrilheira percorreu com passos firmes os 20 metros que separam o saguão principal da Secretaria de Justiça do Rio Grande do Sul da saleta nos fundos do prédio, onde relembraria os dias em que quase foi morta. Dilma Vana Rousseff chegou com semblante altivo, o queixo apontando para o alto e, ao sentar-se para prestar depoimento, parecia tranquila. Ela falou durante 40 minutos, um discurso límpido e assertivo, que seria usado em um processo de indenização para vítimas de tortura na ditadura militar. Dilma contou que foi colocada no pau de arara, apanhou de palmatória, levou choques e sofreu hemorragia no útero. Falou da solidão da cela e do sentimento de encarar a morte. Manteve o tempo todo a postura firme e o olhar fixo no entrevistador. Até que, ao detalhar as formas como foi torturada – “me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu” –, Dilma desabou.
Nem mesmo a resistência que adquiriu como militante clandestina e o traquejo de anos de vida pública foram suficientes para evitar que, ao relembrar a tortura, Dilma caísse em um choro contundente, paralisante. Ela foi incapaz de continuar o relato. Ao deixar a sala, se transformara. A mulher alta e robusta que chegara com passos resolutos agora retornava, pelo mesmo corredor, com a cabeça baixa e o corpo encurvado – era como se fizesse um grande esforço para suportar o peso do que viveu. “Aqueles que foram torturados continuam sendo torturados”, escreveu o escritor austríaco Jean Améry, em um ensaio célebre sobre a tortura.
“A imagem que ficou ao despedir-me de Dilma, na porta da sala, foi esta: a mulher alta e de postura ereta que chega, e a mulher cabisbaixa que sai, após falar do que sofreu”, relembra o filósofo Robson Sávio Reis, que tomou o depoimento da presidente em 2001, quando ela era secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul. Dos tempos de militância na organização de extrema esquerda VAR-Palmares até o dia do seu testemunho, mais de três décadas haviam se passado. Ela ainda chorava ao lembrar. “As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim. A gente sempre vai ser diferente”, disse Dilma no depoimento.
A Comissão Nacional da Verdade, criada para investigar abusos de direitos humanos cometidos durante a ditadura, estima que, assim como a presidente da República, cerca de 50 mil pessoas tenham sido torturadas durante o regime militar (1964-1985). É possível superar os traumas causados pela tortura imposta por agentes do Estado, cuja função é defender seus cidadãos? Como o próprio Estado pode ajudar a reparar a dor que causou? Pela primeira vez o governo brasileiro tenta responder a essas questões por meio de um inédito serviço de atendimento psicanalítico a vítimas da ditadura e a seus familiares. Ao longo dos últimos meses GQ acompanhou pacientes do projeto Clínicas do Testemunho, que atendeu cerca de 300 pessoas em quatro capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife), desde maio de 2013. Os primeiros resultados mostram como escutar e compreender as angústias das vítimas da ditadura pode ajudar a superar os traumas de um país que, cinco décadas após o golpe, ainda sofre com a violência do Estado.
O homem que foi submetido a sessões-aula de tortura para agentes da ditadura; a professora de história que passou a associar quem lhe causava problemas na vida pessoal com seus algozes; o geólogo tão torturado que mal sabe explicar como sobreviveu – e se emociona a cada vez que toca no assunto; a filha de um exilado político que viu o pai, desequilibrado, tornar-se o torturador de si próprio e da família.
Esses são exemplos reais das consequências de uma ditadura na vida de quem se opôs a ela. E são efeitos que, mesmo com o fim do regime, o país preferiu esquecer. “Já a partir da Lei da Anistia, em 1979 (que livrou de julgamento os autores de crimes políticos e impede que torturadores e opositores do regime sejam julgados), houve um esforço para diminuir o que aconteceu no Brasil. Os integrantes da ditadura participaram ativamente do processo de redemocratização no país e, por isso, não houve ruptura. O silenciamento imposto pelo regime totalitário continuou mesmo com a volta da democracia”, analisa o presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Adriano Diogo, deputado estadual pelo PT.
O silêncio começou a ser quebrado com atraso de décadas em relação a outros países latino-americanos que viveram ditaduras igualmente sangrentas, como a Argentina e o Chile, onde comissões foram criadas logo após a mudança de regime. No Brasil, as indenizações financeiras começaram a ser pagas em 1995, no governo FHC, mas a primeira política de reparação simbólica foi criada apenas em 2007 pela Comissão da Anistia, ligada ao Ministério da Justiça. Nas chamadas Caravanas da Anistia (sessões públicas itinerantes para processos de anistia política), o Estado brasileiro reconhece que as pessoas tinham direito de lutar contra o regime, admite erros e, ao final, pede desculpas. “Pedimos perdão a essas pessoas, em nome do governo brasileiro, para que possam voltar a crer nas instituições do Estado”, afirma o secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, ele próprio o autor dos pedidos de desculpas em nome do Brasil. Reconhecer o erro é o primeiro passo para consertá-lo – algo
que se tenta fazer agora, por meio de iniciativas como o atendimento psicológico, programa que não encontra críticas nem mesmo entre os que costumam se opor ao processo de reparação no Brasil.
No Rio, a equipe das Clínicas do Testemunho é formada por cinco psicólogos, que atendem em um casarão em Laranjeiras. Desde maio, 68 pessoas afetadas pela violência do Estado passaram por ali. Após uma avaliação das demandas dos pacientes, os especialistas os encaminham a grupos de testemunho (cujo foco é preparar as pessoas para depor em Comissões da Verdade – seja a comissão nacional ou grupos estaduais e municipais que também apuram abusos no período) ou a grupos terapêuticos (com foco no tratamento clínico). “Em muitos casos, nem os familiares têm interesse, paciência ou coragem de escutar as experiências dessas pessoas. Para muitos, é a primeira vez que se sentiram acolhidos”, diz a psicanalista Vera Vital Brasil, coordenadora do grupo do Rio. “Há uma inversão nas relações. As pessoas deixam de ser consideradas perigosas e são reconhecidas como parte da história de um período. Não são mais os clandestinos, os procurados. Agora, a verdade delas tem valor. Isso representa um impacto importante em suas vidas.”
O fato de as Clínicas serem uma iniciativa do governo é, segundo os psicólogos, por si só um agente reparador – já que o processo de superação só se completa com o reconhecimento da sociedade. “Funciona como uma confissão, e isso ajuda as pessoas a pararem de se colocar no papel de vítimas”, explica Vera, ela mesma militante política que esteve presa no DOI-CODI (o órgão de repressão da ditadura) carioca – e, como todos os que passaram por lá, foi torturada. “O momento que vivemos pode ser ampliado e estendido ao Brasil: a exemplo dos pacientes, a sociedade nunca tratou esse trauma. Agora está escutando os afetados, para tentar compreender os danos. É um passo importante para que o país supere o que aconteceu e não deixe que se repita.”
O formato escolhido para a terapia, em grupo, e o nome do programa – referência ao testemunho, ao relato de vida – têm impacto no tratamento. “O nome tem um efeito disparador das lembranças. As pessoas deixam de rodeios e falam imediatamente sobre o que aconteceu, porque entendem que estão ali para isso”, diz o psicólogo Eduardo Losicer, também do programa clínico carioca. “E é interessante que os encontros sejam em grupo porque, ao sentirem que os outros pacientes viveram algo parecido, eles são estimulados a falar.” A terapia coletiva tem ainda relação sutil com o que os pacientes sofreram. “Pessoas torturadas que voltaram à cela e foram recebidas por outros presos ficaram menos traumatizadas do que aquelas que tiveram de ser hospitalizadas ou que foram colocadas nas solitárias. É muito importante que o relato seja socializado”, explica o médico e psicanalista Moisés Rodrigues da Silva Junior, coordenador de um dos grupos clínicos paulistas.
O acompanhamento psicológico das pessoas afetadas pela ditadura vem ajudando a elucidar a própria história do período. “O lado cruel da ditadura aparece aqui na Assembleia quando vem uma vítima que quer falar e, na hora, não consegue. A regra é não conseguir falar. Por isso as Clínicas ajudam”, diz Adriano Diogo. “É questão de responsabilidade. Ao pedir para a pessoa falar sobre memórias dolorosas, o Estado tem de oferecer acompanhamento.” Muitas vezes, segundo os psicólogos, as pessoas procuram apenas um apoio para falar em público sobre sentimentos incômodos. “Buscam uma espécie de autorização. Após escutarmos uma, duas vezes, elas se sentem seguras com seu discurso e testemunham mais livremente”, diz a psicanalista Vera.
A partir das Clínicas, os grupos do projeto começam a se unir em torno de outros objetivos – farão uma visita ao Hospital Central Militar, no centro do Rio, em busca dos prontuários médicos de pessoas torturadas, e passaram a integrar equipes das Comissões da Verdade que lutam pela criação de centros de memória em prédios-símbolo da repressão, como o do DOI-CODI e o do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). A impressão é que, depois de falar nas terapias, elas querem ter suas vozes ouvidas fora dos consultórios.
Após dez meses de experiência, o governo decidiu que vai renovar e ampliar o projeto. Servirá para dar continuidade ao tratamento e para aplacar uma crítica ao programa – a de que ainda é pouco abrangente. “É uma iniciativa nova no país, um programa que não completou um ano. A partir das demandas, vamos decidir quais outras cidades receberão as Clínicas. O novo edital será lançado em dezembro”, diz o secretário Paulo Abrão. “O projeto está sendo eficaz em dois campos: na reparação dos danos e no apoio a quem quer contar sua versão dos fatos nas Comissões da Verdade.”
Além de oferecer tratamento psicológico, os especialistas trabalham em um relatório com subsídios para criar uma política pública inédita no Brasil, que tratará especificamente da violência do Estado. Será uma espécie de guia para atendimento de vítimas não apenas da ditadura, mas da violência policial, por exemplo. É como se o país deitasse no divã, para finalmente superar um problema do passado que nunca deixou de estar presente.
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