Religião
Os evangélicos crescem, com efeitos importantes em
política, os católicos encolhem, só Deus conhece o desfecho dessa
história
por Piero Locatelli e Rodrigo Martins
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publicado
11/08/2014 03:52
Antonio Miotto/FotoArena/Folha Press
Visto de cima, o Templo de Salomão, de dimensões monumentais
Sob
forte esquema de segurança, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja
Universal do Reino de Deus, inaugurou o maior templo religioso do País,
superlativo até nos detalhes. Com 100 mil metros quadrados de área
construída, ele é quase quatro vezes maior que o santuário de Nossa
Senhora Aparecida. O novo edifício tem 56 metros de altura e a fachada
revestida com pedras vindas de Hebrom, cidade que abriga os túmulos de
Abraão, Isaac e Jacó em Israel. O quarteirão inteiro pretende ser a
recriação do Templo de Salomão, o primeiro de Jerusalém, segundo a
Bíblia hebraica. O antigo santuário sobreviveu por quatro séculos, até
ser totalmente destruído pelo Império Babilônico no século VI antes de
Cristo. Arvora-se a ressurgir, agora, numa movimentada avenida da zona
leste de São Paulo, ao custo estimado de 685 milhões de reais.
O templo tem capacidade para abrigar 10
mil fiéis, além de dispor de um estacionamento com 2 mil vagas para
carros. O altar seria a réplica da Arca da Aliança, que, segundo a
tradição judaico-cristã, guardava os Dez Mandamentos esculpidos por Deus
nas tábuas e entregues ao profeta Moisés. Na inauguração do colossal
santuário, na quinta-feira 31, a presidenta Dilma Rousseff chegou
acompanhada por seu vice, Michel Temer, e pelo ministro da Casa Civil,
Aloizio Mercadante. O governador paulista Geraldo Alckmin, do PSDB, e o
vice-presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, do PT, também se
dispuseram a acompanhar o longo culto religioso, permeado por vídeos com
histórias bíblicas e relatos de pastores e fiéis que superaram o vício
da droga.
Não causa estranhamento tamanho interesse
despertado na classe política. Somente a Universal conta com mais de
1,87 milhão de seguidores, segundo o Censo 2010, do IBGE. Os evangélicos
das mais variadas denominações somam 42,3 milhões de fiéis, ou 22,2% da
população, massa de eleitores cobiçadíssima. Trata-se da religião que
mais cresce no Brasil, à custa de um lento, mas constante, declínio
católico. Os seguidores da Igreja de Roma passaram de 73,6%, em 2000,
para 64,6%, em 2010. Se mantida a tendência, os protestantes poderão
representar um terço dos brasileiros na próxima década.
Mesmo após uma semana turbulenta, em que a
presidenta concedeu sua primeira entrevista como candidata à reeleição,
ouviu queixas de empresários em um evento da Confederação Nacional da
Indústria e se reuniu com sindicalistas da Central Única dos
Trabalhadores, Dilma fez questão de cumprimentar Macedo pela faraônica
obra. Para a campanha petista, é crucial restabelecer laços com a
comunidade evangélica, que mantém uma relação conflituosa com o governo e
costuma dar muita dor de cabeça nas eleições, como se viu em 2010 com o
obscurantista debate sobre o aborto puxado pelos religiosos. Não por
acaso, os nove partidos da coligação de Dilma optaram por criar um
comitê específico para sensibilizá-los. A missão foi confiada a Marcos
Pereira, pastor da Universal e líder do PRB, e aos presidentes do PSD,
Gilberto Kassab, e do PROS, Eurípedes Júnior.
Dilma não é a única candidata em busca do voto
evangélico. Em 7 de julho, no segundo dia oficial de campanha, o tucano
Aécio Neves reuniu-se com o pastor José Wellington Bezerra da Costa,
presidente da Convenção-Geral das Assembleias de Deus no Brasil. O
encontro, realizado no bairro do Belém, também zona leste da capital
paulista, reuniu mais de 2 mil fiéis. Foi articulado pelo ex-governador
paulista José Serra, candidato do PSDB ao Senado por São Paulo, e pelo
senador Aloysio Nunes Ferreira, candidato a vice na chapa de Aécio
Neves.
Em 2010, o pastor Costa declarou apoio à
candidatura de Serra, apesar de Marina Silva, então candidata à
Presidência pelo PV e hoje vice na chapa de Eduardo Campos (PSB), ser
uma devota assembleiana. Além disso, a filha do líder religioso, Marta
Costa (PSD), foi indicada como segunda suplente de Ferreira na disputa
pelo Senado na última eleição. A despeito das intensas movimentações no
campo religioso, o senador José Agripino Maia (DEM), coordenador da
campanha de Aécio, despista: “Não existe um planejamento para as igrejas
evangélicas”.
Campos, por sua vez, participará de uma
reunião em São Paulo com pastores da Igreja Brasil para Cristo no
domingo 3. A coordenação da campanha socialista assegura que a vice
Marina Silva está distante dessas articulações, por ser refratária à
mistura de política com religião. Mas os socialistas admitem dialogar
com grandes denominações evangélicas, a exemplo da Assembleia de Deus. A
aproximação com setores religiosos ficou a cargo da comissão de
articulação e mobilização, tocada por um representante da Rede, Pedro
Ivo, e um do PSB, Milton Coelho.
Outros líderes evangélicos reúnem-se em
torno da candidatura do pastor Everaldo Dias Ferreira, do PSC.
Abertamente contra a descriminalização do aborto e a união civil entre
casais do mesmo sexo, o candidato é um árduo defensor da redução da
maioridade penal. Embora figure nas pesquisas com algo entre 3% e 4% das
intenções de voto, Everaldo deve ter o mesmo espaço que Dilma, Aécio e
Campos nos telejornais da TV Globo e nos debates. Mesmo com essa
exposição, o pastor dificilmente alcançará uma votação de dois dígitos,
avalia o cientista político Claudio Couto, da Fundação Getulio Vargas.
“Everaldo tem potencial para crescer, pode até chegar a um patamar
similar ao de Heloísa Helena em 2006, com 6,85% dos votos válidos, mas
duvido que vá muito além disso.”
Com bandeiras obscurantistas e forte
discurso oposicionista, Everaldo deve facilitar a vida de Aécio e Campos
na campanha, inclusive por contribuir na dispersão dos votos
evangélicos, o que pode precipitar o segundo turno. Deverá ainda
difundir as pautas de líderes neopentecostais que disputam cadeiras no
Congresso. Entre seus apoiadores está o deputado Marcos Feliciano
(PSC-SP), ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e
conhecido pelo seu desprezo a minorias. A cúpula do partido acredita que
Feliciano triplicará o número de votos obtidos nas eleições passadas.
Em 2010, ele arrebanhou 211 mil eleitores. O PSC também aposta na
popularidade do cirurgião plástico Roberto Miguel Rey Junior, o Dr. Rey
dos reality shows, para alavancar votos de seus candidatos a deputado
federal em São Paulo.
Silas Malafaia, que apoiou Serra na última corrida
presidencial, também já atua como cabo eleitoral de Everaldo. Líder da
Assembleia de Deus Vitória em Cristo, o pastor escancarou sua estratégia
em um vídeo distribuído na internet. “Existem centenas de
projetos no Congresso Nacional para detonar a família, detonar os bons
costumes da sociedade. Temos de marcar uma posição firme para que
Everaldo, se não for para o segundo turno, possa ter quantidade de votos
grande”, diz Malafaia. “E aí vamos sentar à mesa e dizer: olha aqui
queridão, quer o nosso apoio? Você vai assinar um documento aqui, e não
pode votar nisso, nisso, nisso. Esse é o jogo político.”
A principal aposta continua no Poder Legislativo. Nunca
tantos pastores foram candidatos como nestas eleições. O número subiu de
193, em 2010, para 270 neste pleito, um aumento de 40%. Como termo de
comparação, somente 16 padres católicos são candidatos em todo o País. A
bancada evangélica projeta um crescimento de 30%, podendo chegar a 95
deputados federais e senadores. Atualmente, ela conta com 73
congressistas, de acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar.
Nos últimos quatro pleitos, a bancada evangélica na Câmara
passou de 44 para 71 deputados. Apenas em 2006, o número recuou para
32. À época, 16 parlamentares não se reelegeram após terem seus nomes
envolvidos na Máfia das Ambulâncias, exposta pela CPI dos Sanguessugas. À
exceção desse revés pontual, a tendência sempre foi de crescimento
contínuo.
O número das bancadas religiosas em assembleias
legislativas e câmaras municipais também tem disparado. Já há frentes
parlamentares evangélicas organizadas em 15 estados. Nos municípios, é
mais difícil mapear a tendência. Pelas contas do Fórum Evangélico
Nacional de Ação Social e Política, o número de “vereadores de Deus”
aproxima-se de 10 mil.
Dessa forma, em diferentes pontas do
espectro político, os parlamentares evangélicos tentam influenciar a
agenda nacional. Primeiro, na conquista de dividendos para as igrejas,
como isenção fiscal, a manutenção das leis de radiodifusão, a obtenção
de pedaços de ruas para a construção de templos, a instituição de leis
que reconheçam a cultura evangélica e forcem a abertura dos cofres
públicos a tais eventos. Mas também na criação de obstáculos à aprovação
de projetos vistos como uma ameaça à família e aos bons costumes, entre
eles os direitos LGBT.
De acordo com o coordenador do Centro de Educação,
Filosofia e Teologia da Universidade Mackenzie, Rodrigo Franklin de
Sousa, os neopentecostais têm uma atuação mais coesa e coordenada do que
outros religiosos. “Eles descobriram essa ligação entre religião e
poder e estão explorando cada vez mais esse viés”, afirma. “Tanto o
protestantismo quanto o catolicismo têm, desde o Iluminismo, uma
discussão em torno do Estado laico, do que deve ser papel da religião e
da política. Mas muitas denominações evangélicas agem de forma mais
pragmática.”
Os pragmáticos também estão presentes nas
eleições ao governo dos estados. Anthony Garotinho, da Igreja
Presbiteriana, e Marcelo Crivella, da Universal, lideram a disputa pelo
governo do Rio de Janeiro, e ambos devem servir de palanque para a
candidatura de Dilma à reeleição. Nas eleições de 2002, Garotinho
terminou a corrida presidencial em terceiro lugar, com quase 18% dos
votos válidos, um dos melhores desempenhos obtidos por um candidato
evangélico. Só ficou atrás do resultado de Marina Silva em 2010, quando a
ex-ministra conquistou 19,3% do eleitorado na disputa pela Presidência
da República.
“É inegável o peso político desse
segmento, mas não dá para vencer uma disputa majoritária defendendo os
interesses de apenas um setor da sociedade”, pondera o sociólogo inglês
Paul Freston, professor da Universidade de Wilfrid Laurier, no Canadá.
Um dos principais estudiosos do protestantismo brasileiro e pós-doutor
pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, Freston lembra que tanto
Garotinho quanto Marina têm um histórico de atuação política anterior à
conversão religiosa. “Eles não se apresentaram como o candidato dos
evangélicos, e sim como políticos que, entre outras coisas, são
evangélicos”, explica. “Além disso, é um equívoco acreditar que todos os
protestantes formam um bloco coeso e monolítico. Dentro do mundo
evangélico, há muitas divisões de cunho social, teológico e também
político. Muitas igrejas continuam refratárias à participação de bispos e
pastores na política nacional.”
A opinião é compartilhada por Couto, da
FGV. “É tolice acreditar que 22% da população, pelo simples fato de ser
evangélica, vai confiar seu voto num pastor ou num candidato da mesma
religião”, avalia. “Esse tipo de apelo costuma funcionar mais em cargos
proporcionais, para o Legislativo, e é até previsto um certo crescimento
da bancada religiosa a cada nova eleição.”
O êxito eleitoral dos candidatos evangélicos deve-se à sede de representação política desse segmento, mas também ao poder midiático
de muitas igrejas. Um levantamento feito pelo Instituto de Estudos da
Religião, em 2009, identificou 20 redes de televisão que transmitiam
conteúdo religioso, das quais 11 eram evangélicas e nove católicas.
Apenas a Igreja Universal controla mais de 20 emissoras de televisão, 40
de rádio, gravadoras, editoras e a segunda maior rede de tevê do País: a
Record. O arrendamento de espaço para igrejas na tevê aberta é quase
uma regra. Na Band, RedeTV! e Gazeta, o horário reservado a programas
religiosos ultrapassa 30 horas semanais.
Até o ano passado, a Igreja Mundial do
Poder de Deus, uma dissidência da Universal, liderada pelo pastor
Valdemiro Santiago, dispunha de 1,6 mil horas mensais de programação na
tevê. Ocupava, por exemplo, 23 horas diárias na Rede 21, do Grupo
Bandeirantes. Pela exposição na RedeTV!, desembolsava 6 milhões de reais
por mês. Não conseguiu, porém, bancar os milionários contratos e perdeu
espaço para o rival Macedo. Mesmo com a gigantesca despesa nas obras do
Templo de Salomão, a Universal conseguiu ampliar sua presença na tevê.
Aparentemente, parece nunca faltar dinheiro para os
projetos da igreja. Nem por isso a Universal deixa de buscar formas para
baratear seus custos. O Templo de Salomão foi erguido com um alvará de
reforma, e não de construção. Com a manobra, a Universal deixou de pagar
à prefeitura 5% do valor da obra, cerca de 35 milhões de reais,
destinado a melhorias no entorno. Concedido em 2008, o documento foi
expedido pelo antigo Departamento de Aprovação de Edificações, então
chefiado por Hussain Aref, afastado do cargo após denúncias de corrupção
e enriquecimento ilícito.
O caso é investigado pelo Ministério
Público, mas a Universal diz não ter sido notificada sobre qualquer
irregularidade. “É, no mínimo, prematuro afirmar que tenha havido fraude
em qualquer etapa da construção do Templo de Salomão, que transcorreu
ao longo de quatro anos sob intensa fiscalização e grande
transparência”, afirmou a igreja por meio de nota.
Antes mesmo da inauguração, o novo
santuário atraía visitantes de diferentes regiões do País, que chegam em
caravanas com crachás pendurados para entrar no prédio com horário
marcado. Uma única excursão do Rio de Janeiro trouxe 105 ônibus cheios
para assistir a um culto. Bispos, pastores, obreiros e voluntários da
igreja são os únicos autorizados a entrar no templo até agora. Os fiéis
seguem regras rígidas. Nada de celulares, falatório, risadas ou roupas
curtas.
Em frente ao Templo de Salomão, há uma
Igreja Evangélica da Assembleia de Deus e a Paróquia São João Batista,
praticamente uma miniatura diante do novo edifício. No restante da
avenida há ao menos dez outros locais que abrigam cultos evangélicos,
incluindo um da própria Universal. A vizinhança se completa com lojas
de equipamentos para restaurantes, móveis, material de costura,
distribuidoras de diversos produtos, padarias baratas e ambulantes. Por
lá também floresce um comércio com miniaturas do templo, bíblias e
camisetas religiosas.
A construção também serve para atrair outros fieis.
Fã do padre Marcelo Rossi, a copeira Odila Carla Ferreira, de 46 anos,
ainda faz parte da maioria católica, mas demonstra como as fronteiras
religiosas são tênues. Ela dedicou um dia de suas férias para “admirar” o
local. “Não tenho carinho pela Universal, mas aprecio isso aqui. O
templo foi feito para todos os cristãos.”
A postura de Odila reflete a estratégia
bem-sucedida da Universal ao não identificar seu templo. Não há
referências claras de que a construção foi feita pela igreja de Macedo.
Os símbolos mostrados também são utilizados por outras religiões, como a
estrela de Davi, a arca, o Menorá (candelabro judaico) e as oliveiras. A
longuíssima barba cultivada por Macedo ajuda a personificar Moisés,
profeta adorado por várias religiões.
Segundo Franklin de Sousa, os fiéis
transitam facilmente entre diferentes denominações, e Macedo tenta tirar
proveito disso. “A Universal já atrai fiéis de outros credos há muito
tempo, porque a religiosidade brasileira é dada a esse tipo de
sincretismo”, diz. “Algumas pessoas podem ter vergonha de admitir que
vão à Universal, então esse templo dissociado dela pode produzir esse
efeito,” explica o professor do Mackenzie.
E talvez angariar muitos votos. Voz da
Universal no Congresso, o PRB hoje conta com 10 deputados federais e 21
estaduais. O presidente da legenda, pastor Marcos Pereira, diz ser
possível dobrar o número nestas eleições. Com um palanque tão vistoso, é
difícil contestar a profecia do líder religioso.
*Reportagem publicada originalmente na edição 811 de CartaCapital, com o título "Além do Misticismo"
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