Vivemos num mundo muito pobre em rituais, e dizer isso significa dizer
também que perdemos o contato com os ciclos. Por isso, gostaria de começar o
artigo desta semana com um desafio. Pare e respire fundo. Olhe ao seu redor.
Olhe para si. Quais ciclos você percebe? O ciclo da terra em torno do sol, e em
torno dela mesma. O ciclo da lua e das marés. O ciclo das estações do ano.
Agora aproxime-se de sua própria vida. Talvez seja mais fácil começar
percebendo na gente mesmo os ciclos concretos, do corpo: o ciclo menstrual das
mulheres, os ciclos de sono/vigília, o sangue circulando pelo corpo, os
hormônios e outras substâncias que o corpo produz e libera sempre no mesmo
equilíbrio para manter a nossa harmonia. Agora, vamos sair do concreto. A forma
como levamos nossa vida também é o nosso ciclo. As nossas rotinas diárias, seja
em casa, no trabalho, nos estudos e até na vida espiritual, também são ciclos
que vivemos.
Por que perdemos o contato com
os ciclos?
Um dos maiores motivos para isso é que o mundo em que vivemos deixou
de ser guiado pelas tradições e passou a ser cada vez mais dominado pelas
regras rígidas e burocráticas de uma realidade baseada na lógica produção –
consumo desenfreado – descarte. Ou seja, é preciso produzir mais e mais, para
sustentar o consumismo. Ao mesmo tempo, se o consumismo é tão valorizado, todos
esses bens são meio que vistos como descartáveis. Isso mexe na forma como
vivemos e como pensamos a questão do nosso tempo. O tempo deixa de ser aquele
espiral harmonioso, formado por ciclos e passa a ser mais como uma “linha do
tempo”. Com isso, perdemos o contato com a história, pois numa reta, o passado
fica cada vez mais distante, cada vez mais difícil de ser lembrado. E o futuro
também é um tempo fora de acesso, não é o retorno de uma parte do ciclo, passa
a ser visto como algo distante da nossa vida, algo que não temos a menor ideia
de como será. E aí surgem os desânimos, a insegurança, os medos, o sentimento
de solidão e de impotência. Parece que a vida não é nossa, porque nós perdemos
o ritmo que os ciclos davam. É como se o tempo apenas fosse passando, alheio a
nós e aos nossos sentimentos.
Poxa, mas e
agora?!
O jeito é recuperar nosso contato com os ciclos,
seja os ciclos do mundo, seja os nossos próprios ciclos. Esse contato nos leva
a uma vida mais equilibrada e com mais sentido, pois nos traz o sentimento de
que a vida que levamos (e não “a vida que nos leva”) é de fato nossa.
Para isso, basta ter a intenção e estar atento ao
dia a dia. É comum parecer difícil e até meio estranho no começo, mas insista.
Não se deixe levar por pensamentos como “não tenho tempo” ou “não vou
conseguir”. É claro que vai. Os ciclos são partes de nós.
Depois de identificar os ciclos que existem na sua
vida, basta dar atenção às passagens. Marcá-las de um jeito que seja eficiente
para você. Podem ser coisas simples e corriqueiras que ganham o nosso olhar
especial. Por exemplo, a passagem do sono para o despertar pode ser marcada com
a anotação (mesmo breve) do sonho no seu diário de sonhos (em artigos futuros
vamos conversar sobre como fazê-lo e trabalhar com ele), ou ainda por um café
da manhã gostoso e saudável. A passagem daquele momento em que chegamos em casa
depois do trabalho ou dos estudos, pode ser marcada e celebrada com um banho
revigorante. Capriche e se envolva, crie um ambiente gostoso com velas ou
flores e uma toalha sequinha e macia. Imagine a água levando embora as
preocupações e tensões do dia... Se dê um tempo e cuide de você.
Os momentos mais únicos e marcantes (aniversários,
casamento, a primeira menstruação da menina, tornar-se mãe/pai/avô ou avó,
mudar-se para outra casa, mudar de trabalho, terminar a escola, aposentar-se...)
também podem ser celebradas. Os povos antigos chamavam este tipo de celebração
de “ritual de passagem”. Isso significa que a pessoa deixa um momento da vida e
inicia um novo ciclo. Para isso, muitas vezes ela precisa transformar os papéis
que vive, deixar papéis antigos e que já não cabem na nova realidade para trás
(como quando deixamos o papel de criança e nos tornamos jovens adultos), e
também abraçar e incorporar papéis novos. O rito de passagem, como nos conta o
antropólogo francês Arnold van Gennep (1873-1957), que estudou a fundo este tipo
de ritual em diversos povos ao redor do mundo, ajuda a pessoa que passa pelo
ritual a assumir o novo papel com mais confiança e ajuda também as outras
pessoas a aceitarem que aquela pessoa já não é mais a mesma: agora tem novas
responsabilidades e novos direitos, e pode se comportar de forma diferente do
que costumava no antigo papel (por exemplo, ao tornar-se adulto, ao assumir uma
profissão, ao ser iniciado numa tradição espiritual, etc.).
Sugestões
para celebrar a vida e retomar o contato com os ciclos
- Fazer das férias, feriados, finais de semana ou
dias de folga uma oportunidade de viver o “mundo da vida”, e não o “mundo da
burocracia e das regrinhas sem sentido”.
- Repare nas mudanças ao seu redor... nas fases da
lua, estações do ano, momentos que você vivencia...
- Passe um dia inteiro sem celular e sem relógio.
Se, como no meu caso, algum desses itens é indispensável na sua profissão, faça
isso num dia de folga. É uma delícia passar um domingo sem ter a menor ideia de
que horas acordou ou que hora vai almoçar. Quando der vontade! Deixe seus
ciclos te guiarem ao invés de deixar-se guiar pelo relógio.
- Nas datas especiais e momentos de grandes
passagens (como aniversários e mudanças em geral), marque a passagem com algo
especial. Não precisa ser nada muito pomposo e complicado. Reunir pessoas
queridas, dizer e ouvir palavras carinhosas e dividir uma refeição especial
(mesmo que um simples sanduíche), já é um ritual de passagem poderoso. Porque
assim podemos dizer adeus à fase e ao papel que se vai e dar as boas-vindas ao
novo.
- Para as mulheres... celebrem o período da
menstruação. Isso é especial, eu diria até que é um dos nossos maiores ciclos.
Você pode celebrar dando atenção a si mesma nesses momentos. Pare um pouco a
correria e medite. Cuide de você sem ter de se entupir de remédios e fingir que
não tem nada acontecendo. É claro que tem! Este é o início de um novo ciclo,
faça algo que gosta para comemorar!
- Abrace. Não aquele abraço frio e engessado de uma
fila de condolências. Um abraço de verdade, um abração! Abraçar nos faz acolher
o outro e também nos sentirmos acolhidos. Faz sentir que somos parte de algo
que vai além de nós mesmos e a perceber que é nesse vácuo entre o outro e a
gente que a vida pulsa e se realiza.
Bia F. Carunchio
Escritora, psicóloga e neuropsicóloga. Mestre em Ciências da
Religião pela PUC-SP. Especialização em neuropsicologia e
psicobiofísica.
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