Depoimento de João Carlos de Almeida Grabois é um dos coletados no livro "Infância Roubada", resultado de audiências realizadas em maio de 2013 na Assembleia Legislativa de São Paulo
por Redação
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Acervo Pessoal
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” lança o livro Infância Roubada – Crianças Atingidas pela Ditadura Militar no Brasil.
O livro traz uma série de depoimentos e histórias de mães e filhos de
presos políticos, perseguidos e desaparecidos durante o regime militar,
em vigor de 1964 a 1985 no Brasil.
CartaCapital publicou um dos depoimentos contidos na obra: Filhos e mães de vítimas da ditadura contam suas vidas
Leia outro a seguir:
A história que o menino não queria ouvir a mãe contar
Por João Carlos de Almeida Grabois
O meu nome é João. Minha mãe estava presa quando eu nasci. Ela estava sequestrada e eu nasci em Brasília, no Hospital da Guarnição do Exército. Mas isso eu não lembro. Comecei a ter lembranças quando a gente já estava morando no Rio de Janeiro, com o Edson e a Jana [Edson Teles e Janaína de Almeida Teles, primos de João Carlos], eu já devia ter meus 4 anos, em 1977, 1978.
Quando eu era pequeno, minha mãe contou que meu pai tinha morrido na Guerrilha do Araguaia. Ela dizia: “Olha, se perguntarem, você vai dar outro nome. Não vai falar o nome verdadeiro do seu pai, nem contar essa história de que ele era guerrilheiro. Você fala que ele teve um acidente e morreu. Que você era muito bebê e teve um acidente de carro, morreu e pronto”.
Mas eu já tinha consciência. Minha mãe contava a história do Araguaia na hora de dormir e eu não gostava porque achava que ela ia morrer no final da história. Então, eu pedia: “Não conta, não”. Os meus primos, Janaína e Edson, já eram mais velhos e gostavam dessa história. E eu, não. Mesmo sendo histórias de bichinhos, da cachorra, eu não tinha vontade de ouvir. Não era uma história que, para mim, tinha sido boa. Aí depois eu fui conhecer o Igor [Igor Grabois, outro primo de João Carlos], mais tarde, já quase nos anos 1980, eu já estava na escola. Nessa época conheci mais gente da família. Antes, a família era reduzida à Jana, o Edson, o Cesar, a Amelinha e a minha mãe. Eram poucas pessoas e aí, de repente, mais que dobra o número de familiares. Os Grabois têm um monte de primos.
Eu lembro que minha mãe tinha a preocupação de sermos sequestrados. A gente não podia chegar atrasado. Por exemplo, se eu saísse da escola e fosse para a casa de um colega e não tivesse sido planejado, se não tivesse avisado a minha mãe, ela ficava desesperada. E explicava “Olha, eu fico pensando que aconteceu alguma coisa com você, porque eles ameaçavam me sequestrar. Então tem que avisar, tem que ser mais responsável, não pode sair da escola e ir brincar, e tal. Tem que voltar para casa”.
Tinha essa tensão, até depois de mais velho ela ainda carregava essa preocupação. Eu ia para as baladas e ela ficava em casa esperando: “Aconteceu alguma coisa?”, ela perguntava. E isso já era nos anos 1990, mas mesmo assim ficou essa preocupação. Aí, quando eu estava com 17 anos, mais ou menos, a gente abriu um processo contra a minha avó... olha que engraçado. Na verdade, era contra o meu pai e contra a minha avó para reconhecimento de paternidade.
Tinha o curador de ausente que estava defendendo o meu pai. Ele ficava questionando se minha mãe não tinha tido outros casos, se eu era realmente filho do meu pai, sei lá o que. Uma coisa assim meio surreal. A minha avó era ré, tinha este cara que estava lá para defender os interesses do meu pai, mas questionando a paternidade. Aí, uma hora o juiz perguntou se eu tinha uma pergunta para fazer. Eu disse: “Tenho, sim. Por que essa pessoa que está representando o meu pai não está querendo reconhecer o filho dele? Eu acho que se meu pai estivesse aqui ele ia querer, sim. E eu não entendo essa coisa aí”. Ele falou: “Não, a figura dele é essa, e alguém tem que questionar”. Aí eu falei, “Mas não tem sentido, ele não está aqui não é por que ele não quer reconhecer a paternidade. Ele não está aqui porque é desaparecido”.
Nós ganhamos esse processo e a partir dos 17 anos eu passei a ter no RG a filiação, pai: André Grabois. Porque antes, só tinha assim: mãe, Crimeia Alice. E ganhei uma certidão que tinha os avós paternos.
Havia um caderninho que ganhei da minha mãe em que ela contava toda a sua história. Era tipo um diário que ela fez durante todo o tempo em que esteve presa. Todo dia ela escrevia um pouquinho porque achava que não ia me conhecer.
Eu demorei muito tempo para ler esse caderninho. Minha mãe o colocou na minha fralda quando me entregou para minha tia, minha madrinha. Quando eu estava com três meses e saí da cadeia ela entregou para essa minha tia. E aí depois a minha tia entregou esse diário para minha mãe e depois a minha mãe entregou para mim. Só fui lê-lo quando estava com 21 anos. É triste.
Mas essa parte de ficar ouvindo histórias assim eu não gosto muito. O diário do Maurício [Grabois] eu também não li, não. A única história que eu li foi a que a minha mãe escreveu.
*João Carlos de Almeida Grabois nasceu em 13 de fevereiro de 1973, em Brasília. É filho de Crimeia AliceSchmidt de Almeida e André Grabois. É administrador e estudante de matemática.
CartaCapital publicou um dos depoimentos contidos na obra: Filhos e mães de vítimas da ditadura contam suas vidas
Leia outro a seguir:
A história que o menino não queria ouvir a mãe contar
Por João Carlos de Almeida Grabois
O meu nome é João. Minha mãe estava presa quando eu nasci. Ela estava sequestrada e eu nasci em Brasília, no Hospital da Guarnição do Exército. Mas isso eu não lembro. Comecei a ter lembranças quando a gente já estava morando no Rio de Janeiro, com o Edson e a Jana [Edson Teles e Janaína de Almeida Teles, primos de João Carlos], eu já devia ter meus 4 anos, em 1977, 1978.
Quando eu era pequeno, minha mãe contou que meu pai tinha morrido na Guerrilha do Araguaia. Ela dizia: “Olha, se perguntarem, você vai dar outro nome. Não vai falar o nome verdadeiro do seu pai, nem contar essa história de que ele era guerrilheiro. Você fala que ele teve um acidente e morreu. Que você era muito bebê e teve um acidente de carro, morreu e pronto”.
Mas eu já tinha consciência. Minha mãe contava a história do Araguaia na hora de dormir e eu não gostava porque achava que ela ia morrer no final da história. Então, eu pedia: “Não conta, não”. Os meus primos, Janaína e Edson, já eram mais velhos e gostavam dessa história. E eu, não. Mesmo sendo histórias de bichinhos, da cachorra, eu não tinha vontade de ouvir. Não era uma história que, para mim, tinha sido boa. Aí depois eu fui conhecer o Igor [Igor Grabois, outro primo de João Carlos], mais tarde, já quase nos anos 1980, eu já estava na escola. Nessa época conheci mais gente da família. Antes, a família era reduzida à Jana, o Edson, o Cesar, a Amelinha e a minha mãe. Eram poucas pessoas e aí, de repente, mais que dobra o número de familiares. Os Grabois têm um monte de primos.
Eu lembro que minha mãe tinha a preocupação de sermos sequestrados. A gente não podia chegar atrasado. Por exemplo, se eu saísse da escola e fosse para a casa de um colega e não tivesse sido planejado, se não tivesse avisado a minha mãe, ela ficava desesperada. E explicava “Olha, eu fico pensando que aconteceu alguma coisa com você, porque eles ameaçavam me sequestrar. Então tem que avisar, tem que ser mais responsável, não pode sair da escola e ir brincar, e tal. Tem que voltar para casa”.
Tinha essa tensão, até depois de mais velho ela ainda carregava essa preocupação. Eu ia para as baladas e ela ficava em casa esperando: “Aconteceu alguma coisa?”, ela perguntava. E isso já era nos anos 1990, mas mesmo assim ficou essa preocupação. Aí, quando eu estava com 17 anos, mais ou menos, a gente abriu um processo contra a minha avó... olha que engraçado. Na verdade, era contra o meu pai e contra a minha avó para reconhecimento de paternidade.
Tinha o curador de ausente que estava defendendo o meu pai. Ele ficava questionando se minha mãe não tinha tido outros casos, se eu era realmente filho do meu pai, sei lá o que. Uma coisa assim meio surreal. A minha avó era ré, tinha este cara que estava lá para defender os interesses do meu pai, mas questionando a paternidade. Aí, uma hora o juiz perguntou se eu tinha uma pergunta para fazer. Eu disse: “Tenho, sim. Por que essa pessoa que está representando o meu pai não está querendo reconhecer o filho dele? Eu acho que se meu pai estivesse aqui ele ia querer, sim. E eu não entendo essa coisa aí”. Ele falou: “Não, a figura dele é essa, e alguém tem que questionar”. Aí eu falei, “Mas não tem sentido, ele não está aqui não é por que ele não quer reconhecer a paternidade. Ele não está aqui porque é desaparecido”.
Nós ganhamos esse processo e a partir dos 17 anos eu passei a ter no RG a filiação, pai: André Grabois. Porque antes, só tinha assim: mãe, Crimeia Alice. E ganhei uma certidão que tinha os avós paternos.
Havia um caderninho que ganhei da minha mãe em que ela contava toda a sua história. Era tipo um diário que ela fez durante todo o tempo em que esteve presa. Todo dia ela escrevia um pouquinho porque achava que não ia me conhecer.
Eu demorei muito tempo para ler esse caderninho. Minha mãe o colocou na minha fralda quando me entregou para minha tia, minha madrinha. Quando eu estava com três meses e saí da cadeia ela entregou para essa minha tia. E aí depois a minha tia entregou esse diário para minha mãe e depois a minha mãe entregou para mim. Só fui lê-lo quando estava com 21 anos. É triste.
Mas essa parte de ficar ouvindo histórias assim eu não gosto muito. O diário do Maurício [Grabois] eu também não li, não. A única história que eu li foi a que a minha mãe escreveu.
*João Carlos de Almeida Grabois nasceu em 13 de fevereiro de 1973, em Brasília. É filho de Crimeia AliceSchmidt de Almeida e André Grabois. É administrador e estudante de matemática.
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