Crônica / Matheus Pichonelli
O eleitor apavorado
O medo e a desorientação valem ouro para o marqueteiro: é mais eficiente
construir fantasmas do que heróis. Daí a paranoia espalhada pelas redes
por Matheus Pichonelli
—
publicado
31/10/2014 05:42,
última modificação
31/10/2014 19:21
Reprodução/Rodrigo Carvalho
O eleitor médio brasileiro é o personagem assustado de uma
música da Legião Urbana: ele não sabe bem quem é, mas sabe do que não
gosta.
Às portas do mundo adulto, esses versos eram repetidos a plenos pulmões com uma identificação quase dolorosa: éramos jovens, desorientados e desprestigiados (“ninguém vê onde chegamos...”). Os assassinos, jurávamos, estavam livres – e nós, presos. Como na música, nossas rebeliões tinham como fim a busca por um pouco de atenção. Nossos sonhos se limitavam a ter um lugar legal pra ir e nos divertir. Ninguém, a não ser nós, era digno de pena, mas a ordem de viver sozinho diante do mundo assustava e levava homens-feitos a perder as noites e noites de sono.
Os teóricos da contemporaneidade que me desculpem, mas estava ali, naqueles versos, um retrato do que, mais à frente, entenderíamos como reflexos da perda de referências verticais (os pais, os padres, os governos, os professores), que levava o sujeito narcísico a se angustiar diante das incertezas do futuro e das frustrações do presente. Era duro descobrir, sozinhos diante do mundo (e quase sempre sem dinheiro), que não éramos especiais e que ninguém parecia capaz de dizer o que fazer para ser feliz. A construção da nossa subjetividade era um grande baque, mas tinha uma trilha sonora.
Essa relação atomizada com o mundo é uma relação de desencanto: diferentemente de outros tempos, quando os referenciais familiares, religiosos e afetivos eram fixos e inegociáveis, hoje não temos em quem nos apoiar - e isso não muda ao fim da adolescência, esticada até não poder mais. Talvez em razão do contingente de informações disponíveis, e dos imperativos que nos levam a nos mostrar, a nos expor e a nos confessar o tempo todo, sabemos das nossas limitações e também das limitações do outro, seja o ídolo pop que se perde na vida para se encontrar, seja o líder religioso de desejos e segredos destampados, seja o pai que reconhecemos como um de nós: vacilante e em conflito.
O mesmo se dá na política. Não há bateria de questionamentos que deixe uma autoridade de pé; não há copo cheio sem copo vazio. Por isso desconfiamos quando nos apresentam planos infalíveis para salvar o meio ambiente, a economia, o agronegócio, a juventude, os aposentados, a programação de domingo na TV.
O indivíduo contemporâneo não tem herói, mas tem inimigos. Como na música, ele não sabe o que quer, mas sabe o que não quer. Ele reconhece a complexidade do mundo, mas pede respostas prontas.
Quando escalado para trabalhar a imagem de um candidato, o marqueteiro político precisa partir de alguns pressupostos. Um deles é que é recomendável saber o que quer e o que pensa o seu cliente, mas é fundamental conhecer o que (não) quer e o que (não) pensa seu eleitor. Em um período de incertezas latentes, em que pedimos respostas prontas e fáceis para nos apegar à volatilidade do mundo como a um bote salva-vidas, não há melhor estratégia do que trabalhar em cima das poucas certezas restantes. A principal delas é: temos medo de tudo o tempo todo. Por isso é mais eficiente construir fantasmas do que produzir heróis. Em outras palavras: para o marqueteiro político, o pânico do eleitor, misturado à desinformação – que, vale dizer, é democrática e não respeita classes sociais – é ouro em pó. Esse é o elemento irracional que ganha forma em uma campanha polarizada como esta – e que tornou infrutífero qualquer apelo ao bom senso em meio à gritaria.
A desconstrução do adversário e de seus eleitores se tornou, em 2014, uma estratégia preferencial. Pudera: a esperança de futuro parecia menor do que a desconfiança do presente, que, por sua vez, era menor do que os medos do passado. Nessa, os eleitores chegaram ao fim da campanha convencidos de que Aécio Neves telefonaria para o FMI assim que assumisse a Presidência. E outros juravam ver em Dilma Rousseff a responsabilidade por tudo o que não funciona em sua vida privada.
A aversão a um resultado adverso era a consagração dos nossos medos. Daí o território propício para todo tipo de teoria da conspiração, a começar pelos porta-vozes da paranoia instalados em publicações de toda sorte. Eles, de fato, acreditam que estamos às portas de um golpe comunista...
Os monstros foram aflorados. Não por acaso, o "eu tenho medo" foi uma frase recorrente entre os que diziam optar por um e não por outro – para evitar a vitória do outro e não a derrota do um. Trocamos assim o argumento, o fato, o debate e a consistência pelos uivos, os lençóis brancos com furos na altura dos olhos, as histórias sobre lobisomens, o boi-da-cara-preta, o saci. Um deles "assassinou", no meio-fio entre a ficção e a realidade, um delator da Petrobras a poucos horas da votação.
“Existe um plano de ocupação comunista e totalitarista no Brasil. Será que ninguém vê isso?”, dizia, tempos atrás, uma moradora do Rio durante um protesto em um bairro nobre. Na manifestação havia um homem vestido de Batman e um militante de esquerda que, incomodado com a manifestação, apelava à carteirada: “sou rico e bem sucedido e você é um merda”. Os arranca-rabos da eleição de 2014 eram, em parte, a versão expandida daquele episódio (relembre AQUI), um sintoma de um estado de loucura – ou a versão real do conto Darandina, de Guimarães Rosa: não sabemos se o maluco é o personagem em cima da palmeira ou se é a plateia a vibrar com suas frases desconexas.
A paranoia falou alto e se tornou um capital para os marqueteiros mais atentos. Eles sabem que, ao decidir nosso voto, ainda somos o mesmo adolescente da velha música: contrariado, desnorteado e apavorado diante do mundo. A crise, portanto, não é só social ou política. É sobretudo psíquica.
Às portas do mundo adulto, esses versos eram repetidos a plenos pulmões com uma identificação quase dolorosa: éramos jovens, desorientados e desprestigiados (“ninguém vê onde chegamos...”). Os assassinos, jurávamos, estavam livres – e nós, presos. Como na música, nossas rebeliões tinham como fim a busca por um pouco de atenção. Nossos sonhos se limitavam a ter um lugar legal pra ir e nos divertir. Ninguém, a não ser nós, era digno de pena, mas a ordem de viver sozinho diante do mundo assustava e levava homens-feitos a perder as noites e noites de sono.
Os teóricos da contemporaneidade que me desculpem, mas estava ali, naqueles versos, um retrato do que, mais à frente, entenderíamos como reflexos da perda de referências verticais (os pais, os padres, os governos, os professores), que levava o sujeito narcísico a se angustiar diante das incertezas do futuro e das frustrações do presente. Era duro descobrir, sozinhos diante do mundo (e quase sempre sem dinheiro), que não éramos especiais e que ninguém parecia capaz de dizer o que fazer para ser feliz. A construção da nossa subjetividade era um grande baque, mas tinha uma trilha sonora.
Essa relação atomizada com o mundo é uma relação de desencanto: diferentemente de outros tempos, quando os referenciais familiares, religiosos e afetivos eram fixos e inegociáveis, hoje não temos em quem nos apoiar - e isso não muda ao fim da adolescência, esticada até não poder mais. Talvez em razão do contingente de informações disponíveis, e dos imperativos que nos levam a nos mostrar, a nos expor e a nos confessar o tempo todo, sabemos das nossas limitações e também das limitações do outro, seja o ídolo pop que se perde na vida para se encontrar, seja o líder religioso de desejos e segredos destampados, seja o pai que reconhecemos como um de nós: vacilante e em conflito.
O mesmo se dá na política. Não há bateria de questionamentos que deixe uma autoridade de pé; não há copo cheio sem copo vazio. Por isso desconfiamos quando nos apresentam planos infalíveis para salvar o meio ambiente, a economia, o agronegócio, a juventude, os aposentados, a programação de domingo na TV.
O indivíduo contemporâneo não tem herói, mas tem inimigos. Como na música, ele não sabe o que quer, mas sabe o que não quer. Ele reconhece a complexidade do mundo, mas pede respostas prontas.
Quando escalado para trabalhar a imagem de um candidato, o marqueteiro político precisa partir de alguns pressupostos. Um deles é que é recomendável saber o que quer e o que pensa o seu cliente, mas é fundamental conhecer o que (não) quer e o que (não) pensa seu eleitor. Em um período de incertezas latentes, em que pedimos respostas prontas e fáceis para nos apegar à volatilidade do mundo como a um bote salva-vidas, não há melhor estratégia do que trabalhar em cima das poucas certezas restantes. A principal delas é: temos medo de tudo o tempo todo. Por isso é mais eficiente construir fantasmas do que produzir heróis. Em outras palavras: para o marqueteiro político, o pânico do eleitor, misturado à desinformação – que, vale dizer, é democrática e não respeita classes sociais – é ouro em pó. Esse é o elemento irracional que ganha forma em uma campanha polarizada como esta – e que tornou infrutífero qualquer apelo ao bom senso em meio à gritaria.
A desconstrução do adversário e de seus eleitores se tornou, em 2014, uma estratégia preferencial. Pudera: a esperança de futuro parecia menor do que a desconfiança do presente, que, por sua vez, era menor do que os medos do passado. Nessa, os eleitores chegaram ao fim da campanha convencidos de que Aécio Neves telefonaria para o FMI assim que assumisse a Presidência. E outros juravam ver em Dilma Rousseff a responsabilidade por tudo o que não funciona em sua vida privada.
A aversão a um resultado adverso era a consagração dos nossos medos. Daí o território propício para todo tipo de teoria da conspiração, a começar pelos porta-vozes da paranoia instalados em publicações de toda sorte. Eles, de fato, acreditam que estamos às portas de um golpe comunista...
Os monstros foram aflorados. Não por acaso, o "eu tenho medo" foi uma frase recorrente entre os que diziam optar por um e não por outro – para evitar a vitória do outro e não a derrota do um. Trocamos assim o argumento, o fato, o debate e a consistência pelos uivos, os lençóis brancos com furos na altura dos olhos, as histórias sobre lobisomens, o boi-da-cara-preta, o saci. Um deles "assassinou", no meio-fio entre a ficção e a realidade, um delator da Petrobras a poucos horas da votação.
“Existe um plano de ocupação comunista e totalitarista no Brasil. Será que ninguém vê isso?”, dizia, tempos atrás, uma moradora do Rio durante um protesto em um bairro nobre. Na manifestação havia um homem vestido de Batman e um militante de esquerda que, incomodado com a manifestação, apelava à carteirada: “sou rico e bem sucedido e você é um merda”. Os arranca-rabos da eleição de 2014 eram, em parte, a versão expandida daquele episódio (relembre AQUI), um sintoma de um estado de loucura – ou a versão real do conto Darandina, de Guimarães Rosa: não sabemos se o maluco é o personagem em cima da palmeira ou se é a plateia a vibrar com suas frases desconexas.
A paranoia falou alto e se tornou um capital para os marqueteiros mais atentos. Eles sabem que, ao decidir nosso voto, ainda somos o mesmo adolescente da velha música: contrariado, desnorteado e apavorado diante do mundo. A crise, portanto, não é só social ou política. É sobretudo psíquica.
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