Imprudência do comandante, que levou ao naufrágio o navio Costa Concórdia, expõe quanto ainda estamos reféns do erro humano, apesar de toda a tecnologia
Paula Rocha e Flávio CostaVERGONHA
O comandante Schettino fez seu país passar por um
vexame mundial ao provocar o naufrágio e abandonar o navio
Tinha tudo para ser a viagem dos sonhos. Um cruzeiro de sete dias pelo Mar Mediterrâneo, com um desfilar de paisagens idílicas e todos os confortos de uma das embarcações mais modernas e luxuosas do mundo. Mais do que um roteiro de férias, estar a bordo do navio Costa Concórdia era uma conquista para muitos de seus passageiros e tripulantes, pessoas que haviam embarcado com a expectativa de comemorar um novo trabalho, celebrar o aniversário de casamento, aproveitar a primeira viagem internacional em família ou realizar o primeiro cruzeiro de suas vidas. Somada à alegria estampada no rosto de todos ao partirem do porto de Civitavecchia, a 70 quilômetros de Roma, na sexta-feira 13, estava a certeza da segurança do navio, considerado um dos meios de transporte mais infalíveis do planeta. O que os 4.229 ocupantes da nau não poderiam contar, porém, era com a inabilidade e a imprudência daquele que deveria zelar pelo bem-estar de todos. Apenas duas horas e meia após iniciarem a viagem, uma sequência de erros cometidos pelo comandante italiano Francesco Schettino levou a embarcação a naufragar próximo à Ilha de Giglio, nas águas geladas do Mar Tirreno. Até a sexta-feira 20, 11 pessoas haviam morrido no desastre e 24 continuavam desaparecidas. Por seu caráter raro e tão pouco provável, a tragédia do Costa Concórdia expôs o quanto ainda estamos reféns dos erros humanos, apesar de toda a tecnologia disponível nos meios de transporte atuais.
Mesmo com radares, sonares, cartas náuticas e todo o aparato tecnológico de aeronaves e navios, a falha humana é uma das principais causas de acidentes marítimos e aéreos no mundo. Um relatório do Departamento de Arquitetura Naval e Engenharia Náutica dos Estados Unidos aponta que 80% dos incidentes marítimos são ocasionados por erro humano. Destes, 38% se devem ao planejamento inadequado, 33% à observação errada e 19% à má interpretação de dados ou informações. O mesmo ocorre na aviação. Segundo o site americano PlaneCrash.com, especializado em acidentes aéreos, a média histórica de erro humano em desastres no ar chega a 56%, com base em dados coletados desde a década de 1950 até os dias atuais. Para o diretor de segurança de voo do Sindicato Nacional dos Aeronautas, comandante Carlos Camacho, no entanto, essa porcentagem pode ser ainda maior, chegando aos 70%. “Vale esclarecer, porém, que um acidente aéreo é multifatorial. Não se pode culpar apenas o piloto, que também tem sua responsabilidade”, diz Camacho. “O que sempre se esquece é de tentar desvendar as séries de erros e omissões cometidos por companhias aéreas e órgãos governamentais, além das condições climáticas adversas que também levam a um desastre.” A presidente da Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos, Sandra Assali, que perdeu o marido no acidente do Fooker 100 da TAM, que caiu logo após a decolagem do Aeroporto de Congonhas (SP), em 1996, concorda com o comandante. “É uma série de erros humanos que culminam com a falha do piloto.”
Mesmo com radares, sonares, cartas náuticas e todo o aparato tecnológico de aeronaves e navios, a falha humana é uma das principais causas de acidentes marítimos e aéreos no mundo. Um relatório do Departamento de Arquitetura Naval e Engenharia Náutica dos Estados Unidos aponta que 80% dos incidentes marítimos são ocasionados por erro humano. Destes, 38% se devem ao planejamento inadequado, 33% à observação errada e 19% à má interpretação de dados ou informações. O mesmo ocorre na aviação. Segundo o site americano PlaneCrash.com, especializado em acidentes aéreos, a média histórica de erro humano em desastres no ar chega a 56%, com base em dados coletados desde a década de 1950 até os dias atuais. Para o diretor de segurança de voo do Sindicato Nacional dos Aeronautas, comandante Carlos Camacho, no entanto, essa porcentagem pode ser ainda maior, chegando aos 70%. “Vale esclarecer, porém, que um acidente aéreo é multifatorial. Não se pode culpar apenas o piloto, que também tem sua responsabilidade”, diz Camacho. “O que sempre se esquece é de tentar desvendar as séries de erros e omissões cometidos por companhias aéreas e órgãos governamentais, além das condições climáticas adversas que também levam a um desastre.” A presidente da Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos, Sandra Assali, que perdeu o marido no acidente do Fooker 100 da TAM, que caiu logo após a decolagem do Aeroporto de Congonhas (SP), em 1996, concorda com o comandante. “É uma série de erros humanos que culminam com a falha do piloto.”
SOBREVIVENTES
Passageiros que deixaram a embarcação durante a noite (acima)
aguardam assistência próximo à Ilha de Giglio: angústia e perplexidade
Um exemplo curioso da relação entre falha humana e acidentes aéreos se tornou tema de livro. Entre 1988 e 1998, o índice de acidentes da companhia aérea Korean Air era 17 vezes superior à média dos Estados Unidos, o que levou o Exército americano a proibir que seus soldados viajassem pela empresa coreana. Preocupada com a situação, a Korean contratou David Greenberg, ex-vice-presidente da americana Delta Air Lines, para recuperar seu prestígio internacional. A primeira medida do executivo foi determinar o inglês como língua oficial da Korean Air. Ao separar a cultura da empresa da cultura nacional coreana, o número de acidentes da companhia caiu a zero. Analisando a interação entre copilotos e comandantes, descobriu-se um viés cultural. O profundo respeito à hierarquia cultivado pelos orientais impedia os subordinados de questionar seus superiores, mesmo quando era evidente que estes haviam errado. A história foi contada pelo escritor Malcolm Gladwell no livro “Outliers”, de 2008, que no Brasil ganhou o título de “Fora de Série”. No mar, a cultura do setor prega que o comandante é o chefe supremo. Não é raro eles serem vistos como autoritários que não admitem contestação. Isso é algo que as companhias deveriam rever.
Se o desempenho da Korean Air hoje beira a perfeição, o mesmo não pode ser dito das companhias aéreas brasileiras. De acordo com um balanço do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), o número de acidentes aéreos no País aumentou de 110 para 128 entre 2010 e 2011. Nesse período, o número de mortes também cresceu, passando de 39 para 84, aumento de 115%. Ainda de acordo com o órgão, essa variação se deve ao contínuo crescimento da frota aérea nacional e do consequente aumento da movimentação de aeronaves nos céus brasileiros. E o volume de navios de cruzeiro no litoral do Brasil também vem aumentando. Segundo a Royal Caribbean, uma das principais operadoras de turismo marítimo no País, o setor cresceu entre 20% e 30% nos últimos dez anos. Apenas na atual temporada de verão, que vai até maio, 17 navios de luxo devem passar pela costa brasileira e o número de passageiros deve subir 20% em relação ao ano passado.
Se o desempenho da Korean Air hoje beira a perfeição, o mesmo não pode ser dito das companhias aéreas brasileiras. De acordo com um balanço do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), o número de acidentes aéreos no País aumentou de 110 para 128 entre 2010 e 2011. Nesse período, o número de mortes também cresceu, passando de 39 para 84, aumento de 115%. Ainda de acordo com o órgão, essa variação se deve ao contínuo crescimento da frota aérea nacional e do consequente aumento da movimentação de aeronaves nos céus brasileiros. E o volume de navios de cruzeiro no litoral do Brasil também vem aumentando. Segundo a Royal Caribbean, uma das principais operadoras de turismo marítimo no País, o setor cresceu entre 20% e 30% nos últimos dez anos. Apenas na atual temporada de verão, que vai até maio, 17 navios de luxo devem passar pela costa brasileira e o número de passageiros deve subir 20% em relação ao ano passado.
RESGATE
Equipes italianas trabalham para encontrar ocupantes desaparecidos
O prejuízo, nesse caso, recai principalmente sobre os passageiros. Uma das sobreviventes do naufrágio do Costa Concórdia, a gaúcha Juliana Scheffer, 27 anos, já havia viajado em três cruzeiros. Desta vez, a médica recém-formada, acompanhada do namorado e de mais nove familiares – incluindo a avó de 76 anos –, esperava desfrutar de momentos de tranquilidade a bordo da embarcação, interrompidos logo no início da viagem. “Foram minutos de pânico agravados pela falta de um comando no navio, o que só aumentou a sensação de medo dos passageiros”, diz Juliana. Assim como os outros ocupantes, ela perdeu roupas, documentos e objetos de valor, mas diz que o pior foi presenciar a confusão generalizada na hora de deixar a embarcação. “Faltava alguém com autoridade para impor ordem àquela bagunça. Quando chegamos ao bote, tripulantes disseram que primeiro iriam as crianças, os idosos e as mulheres, mas ninguém respeitou e todos avançaram”, conta. Na quinta-feira 19, passageiros levaram outro susto, desta vez na costa brasileira. Cerca de 2,5 mil viajantes que estavam a bordo do Cruzeiro Ibero Grand Holiday acordaram às 5h40 com uma manobra brusca feita pelo navio para desviar de um barco pesqueiro. Segundo relatos, algumas pessoas tiveram escoriações leves e a água da piscina escoou no mar por causa da inclinação provocada pelo movimento. O evento no Costa Concórdia, é claro, foi muito mais grave. “Eu sei que é clichê, mas parecia muito com a situação vivida no Titanic”, diz Juliana.
PREJUÍZO
Despesas com resgate e indenizações devem chegar a US$ 300 milhões
Enquanto passageiros e tripulantes tentavam escapar da embarcação, que rapidamente afundava, Schettino já havia salvado a própria pele. À 1h46 (hora local), quando ainda havia pelo menos 300 pessoas a bordo, o capitão, segundo afirmação da juíza Valéria Montesarchio, já se encontrava em um cais na Ilha de Giglio, localizada a 50 metros da região onde a nau encalhou. Em um documento de oito páginas assinado pela magistrada, Valéria acusa o capitão de “conduta gravemente culposa” em diversas fases do desastre: na manobra imprudente de aproximação excessiva à Ilha de Giglio, para supostamente prestar uma homenagem ao chefe dos garçons do navio, natural da localidade; na hora do impacto, ao subestimar os danos causados na parte vital do Costa Concórdia; e no momento imediatamente após o choque, com a demora dos sinais de alarme e da sinalização às autoridades costeiras da efetiva situação em que se encontrava o navio. Uma conversa telefônica entre Schettino e o capitão Gregório de Falco, da Capitania dos Portos em Livorno, divulgada na terça-feira 17, por jornais italianos, correu o mundo, comprovando a omissão do comandante (leia quadro na pág. 94) e elevando De Falco ao status de herói. Diferentemente de Schettino, o italiano de 47 anos é descrito por colegas e parentes como um homem discreto, sem hobbies, que revelou não dormir direito desde o acidente e ter chorado muito quando soube que ainda havia pessoas presas dentro do Costa Concórdia.
“Foi um erro tão absurdo que a gente ainda busca
explicações de por que o comandante agiu daquela forma”
Juliana Scheffer, sobrevivente
São muitos os prejuízos desse episódio. O financeiro ainda está sendo calculado. A empresa estima perdas de US$ 93 milhões só pelo fato de o navio ficar parado, mas seu valor de mercado já caiu US$ 1,5 bilhão. As despesas com o resgate e as indenizações devem chegar a US$ 300 milhões e com o conserto do navio outros US$ 500 milhões. As autoridades tentam evitar um prejuízo ambiental, pois há o risco de as 2.380 toneladas de combustível vazarem. Schettino, por sua vez, terá de conviver com a desaprovação mundial e com o prejuízo psicológico causado às vítimas. “Muitos passageiros do navio poderão desenvolver quadros de estresse pós-traumático ou ansiedade”, diz a psicóloga Teresa Creusa Negreiros, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). “Não há, porém, como se preparar para uma situação dessas. Falhas fazem parte da condição humana e, por mais que a gente sinta a necessidade de acreditar que estamos seguros, viver é assumir riscos.” Lição que a gaúcha Juliana Scheffer demonstra ter aprendido. “Vou voltar a viajar de cruzeiro, porque sei que o que aconteceu foi por conta de erro humano grotesco e não por alguma falha do navio, que tem uma tecnologia de ponta”, diz. Pena ainda não terem inventado uma tecnologia que nos proteja da insensatez humana.
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