Falta de medicamentos nos hospitais é consequência, principalmente, de lacunas na gestão da assistência farmacêutica brasileira.
Desde a institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, a descentralização da gestão da área fez com que as esferas federal, estadual e municipal passassem a assumir juntas as responsabilidades pela saúde pública e traçassem novas orientações para a assistência farmacêutica nacional. A aquisição e distribuição centralizada de medicamentos existente até então e comandada pela Central de Medicamentos mostrava-se ineficiente e deu espaço a uma rede de distribuição de funções. A ideia era, justamente, dar fim às queixas de escassez de produtos, perdas de estocagem e altos custos de transporte e armazenagem.Fila para a retirada de remédios na farmácia de alto custo em posto do SUS.
Segundo especialistas ouvidos pela Dinâmica Pública, houve melhoras significativas. Entretanto, parte de antigos problemas continua. “Passamos por uma evolução histórica importante, mas dizer que atendemos hoje 100% da demanda não é verdade”, pondera Ana Paula Veber, professora de Farmácia da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). “Até porque, se o fornecimento de medicamentos fosse tão efetivo, não existiria o sistema privado de farmácias.” O fato é que, de acordo com as legislações vigentes, as três esferas de governo devem fazer colaborações diferentes no abastecimento nacional de insumos, dependendo do grau de complexidade e do preço dos materiais.
Para regular os medicamentos adquiridos, existe a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), atualizada a cada dois anos. Estados e municípios utilizam a lista para elaborar as próprias relações. Caso sejam incluídos medicamentos não expressos na Rename, cabe às esferas locais financiá-los. “Acredito que o maior problema na gestão atual de medicamentos esteja justamente nas listas estaduais e municipais”, avalia o membro da Comissão Técnica e Multidisciplinar de Atualização da Rename Rafael Mota Pinheiro. Segundo ele, as listas são elaboradas, muitas vezes, sem a capacitação necessária e acabam duplicando produtos ou deixando outros de lado.
Êxitos
A assistência farmacêutica do SUS divide-se em componentes básicos, especializados e estratégicos. No segundo tipo, estão fármacos para doenças como Parkinson e Alzheimer. Nesse caso, os remédios estão divididos em três subgrupos, de acordo com a origem do financiamento (União, secretarias estaduais de Saúde e financiamento tripartite, que envolve as duas esferas anteriores e os municípios).Na divisão dos componentes estratégicos, por sua vez, figuram os medicamentos utilizados para o tratamento de doenças como aids, tuberculose e hanseníase. Cabe ao Ministério da Saúde a aquisição centralizada e distribuição dos produtos. As secretarias, por sua vez, ficam incumbidas de armazenar o material e distribuí-lo.
Em março, o Ministério da Saúde centralizou a compra
de 40 tipos de remédios de alto custo do grupo especializado. Com isso,
licitações de estados e municípios foram substituídas pela aquisição
direta dos itens por parte do governo federal,o que possibilitou
negociação de preço mais vantajosa. Resultado: cerca de R$ 200 milhões
foram economizados. A expectativa é de que a economia anual com o novo
modelo de compra chegue a R$ 400milhões. O dinheiro poupado, de acordo
com o ministério, será investido na ampliação da assistência
farmacêutica do SUS.
Rotina
Estados e municípios são responsáveis por financiar e
adquirir insumos básicos, como tiras para dosagem de glicemia, seringas
e agulhas. Surge então um novo problema: a forma como os materiais sob
responsabilidade local são adquiridos e repassados para centros e
hospitais. Os procedimentos sofrem constantes mudanças, regulados por
legislações locais.
O governo do Distrito Federal é um exemplo de gestão que
modificou o modelo de compra. Em janeiro, declarou situação de
emergência e a Secretaria de Saúde ganhou independência com relação
à central única, até então responsável pela aquisição de
medicamentos, material hospitalar e equipamentos. Na ocasião,
impressionantes 120 processos para a compra de insumos aguardavam
licitação. A central própria aumentou a agilidade das aquisições, uma
vez que pregões eletrônicos em andamento puderam ser efetivados.
Em 2010, outra alternativa foi testada no DF: parte da verba
da saúde local foi descentralizada para os hospitais da unidade da
Federação. Assim, diretores de hospitais regionais passaram a ter
autonomia para comprar insumos básicos emergenciais. A decisão foi
tomada após o principal centro de saúde da capital, o Hospital de Base,
ter suspendido procedimentos cirúrgicos por falta de materiais.
Dificuldades
O problema de abastecimento não se restringe à forma de
aquisição de materiais. A fim de melhorar a gestão de medicamentos e
materiais, a cidade de São Paulo investiu, no início do ano passado, R$
4,8 milhões em armazenamento e distribuição. A capital
paulista construiu a primeira central pública de logística hospitalar do
Brasil, o Centro Estadual de Armazenamento e Distribuição de Insumos de
Saúde. O local é responsável pelo recebimento, pelo estoque e
pela distribuição de aproximadamente 9 mil itens utilizados em
hospitais estaduais. Com o sistema, é possível abastecer diariamente os
hospitais, com exceção dos domingos. Embora tenha melhorado a
distribuição, não evita as filas para os pacientes retirarem os
medicamentos.
Há quem aponte ainda o papel dos laboratórios como ponto
problemático do processo. “Não podemos deixar de lado outra
realidade, que é a pressão feita pela indústria farmacêutica sobre os
médicos e as prescrições de medicamentos feitas por eles”, afirma o
presidente da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos
(Sobravime), José Rubem de Alcântara Bonfim. “O governo precisa lançar
alguma forma de controle referente a isso.”
Para Ana Paula Veber, da Univali, o fato de muitos
pacientes buscarem na Justiça o acesso a determinado insumo em falta na
rede pública é outro problema enfrentado pelas gestões locais. “Força-se
o sistema a adquirir, rapidamente, determinado produto, que não
estava programado, para atender a uma minoria”, explica.
Soluções
Adequar estruturas físicas e promover a capacitação de
recursos humanos poderia solucionar parte dos problemas da gestão de
medicamentos e insumos no Brasil, de acordo com Rafael Mota
Pinheiro. “Falta programação por parte de estados e municípios e gestão
de qualidade, feita por profissionais mais qualificados”, destaca. Na
opinião dele, se as unidades federativas elaborassem listas de
medicamentos mais enxutas, seria possível investir mais nas áreas
carentes da assistência farmacêutica.
A ideia é compartilhada pela especialista Ana Paula Veber,
que destaca ainda a necessidade de o governo federal integrar as
estratégias. “Propostas paralelas, parcerias privadas e
cofinanciamentos, como a Farmácia Popular do Brasil, podem acabar
tomando recursos que poderiam ser investidos no SUS”, avalia a
professora. “Não podemos investir em duas frentes se temos um cenário de
recursos limitados.”
Para a capacitação, o Ministério da Saúde desenvolve, com a
Universidade Federal de Santa Catarina, o curso de especialização Gestão
da Assistência Farmacêutica. A ideia é formar 2 mil farmacêuticos do
SUS em todo o País.
Especialistas esperam ainda que atualizações na lei solucionem os
gargalos. “O relativo caos que existe poderá ser superado com a
aplicação de novas legislações”, opina o presidente da
Sobravime, referindo-se à Lei 12.401, que alterou as regras para
incorporação ou exclusão de medicamentos no SUS, e ao Decreto 7.508, que
regulamentou alguns pontos da organização do Sistema Único de Saúde,
como as comissões intergestoras.
.
texto Noelle Oliveira
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário