Um auditor que se diz amigo do secretário da Receita Federal foi demitido por tráfico de influência. Uma de suas ações pode elevar o preço da bebida mais tradicional do Brasil
O preço do cafezinho deve subir. E logo. Pouco mais de 3%. Não se trata
de aumento de demanda, problemas na safra ou pressão inflacionária. A
causa pode estar relacionada a uma das mais resistentes pragas que
habitam o poder público brasileiro: o tráfico de influência. Onde? Nada
menos que na Receita Federal. Documentos obtidos com exclusividade por
ÉPOCA descrevem em detalhes as irregularidades cometidas dentro do órgão
responsável pela arrecadação de tributos no país. O autor das
irregularidades, Pedro dos Santos Anceles, não está mais nos quadros da
Receita. Ex-auditor fiscal, ele foi demitido no final de 2011 por ter
repassado a empresas privadas informações restritas do Fisco. Sem apoio
interno, Anceles talvez não tivesse conseguido agir com tamanha
liberdade. Ele vangloriava-se de ser próximo do próprio secretário do
Fisco, Carlos Alberto Barreto. “Nós somos amigos”, disse ele a ÉPOCA.
“Ele é uma pessoa bem acessível.”
A ordem para que Anceles fosse demitido por improbidade administrativa
partiu do ministro Guido Mantega (Fazenda), em novembro (leia mais sobre o ministro Guido Mantega).
A decisão teve por base um relatório da Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional (PGFN), que recomendou a exclusão de Anceles do serviço
público. O documento descreve um festival de trambi-ques. Anceles deu
palestras e cursos a seus clientes particulares – e foi remunerado por
isso –, faltou ao trabalho para prestar consul-torias a empresas
privadas e participou, como julgador da Receita, do julgamento de um
recurso movido por um de seus próprios clientes contra multas do Fisco. O
processo contra as práticas de Anceles foi aberto em agosto de 2009
pela Corregedoria da Receita. O período investigado compreende os anos
de 2006 e 2007. Nessa época, o superior hierárquico de Anceles era
Carlos Alberto Barre-to, que ocupava o cargo de secretário adjunto da
Receita. Da abertura do processo contra Anceles até o início da gestão
de Barreto como o número um do Fisco, em janeiro de 2011, foi coletado
vasto material contra o então auditor. Diante desse quadro, era de
esperar que Anceles fosse afastado de suas funções enquanto as
investigações não fossem concluídas. Mas ocorreu o contrário: ele foi
transferido para uma função mais importante.
O trabalho dos investigadores do Fisco começou a partir da denúncia de
outro órgão federal, a Controladoria-Geral da União (CGU). Em janeiro de
2008, técnicos da CGU identificaram que Anceles constava como
sócio-administrador de uma empresa pri-vada chamada A Ensinante Ltda.
Ele usava a empresa como uma espécie de biombo para repassar informações
restritas do Fisco a seus clientes particulares, de acordo com a
Corregedoria da Receita. Um dos casos mais graves ocorreu em 2007 e
envolveu um fabricante de refrigerantes do Rio Grande do Sul, a CVI
Refrigerante Ltda. A empresa fora autuada pelo Fisco em três processos
distintos por sonegação de tributos, incluindo PIS e Cofins –
contribuições sociais pagas por quase todas as empresas de médio e
grande porte. Se-gundo a corregedoria, Anceles prestou consultoria para a
CVI Refrigerante. “Constata-se que a natureza do trabalho prestado é
in-compatível com o cargo de auditor fiscal e de delegado de julgamento,
haja vista que foi verdadeira consultoria tributária, atividade que
configura patente conflito de interesses”, escreveram os procuradores da
PGFN. Nessa época, Anceles era delegado de julgamento da Receita no
município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Num dos processos, em
que a CVI Refrigerante recorreu da autuação do Fisco, a raposa foi
convocada para cuidar do galinheiro. Na primeira instância
administrativa, dentro da própria Receita, o caso foi parar justamente
nas mãos de Anceles, como presidente da 1a Turma de Julgamento da
Delegacia da Receita em Santa Maria.
Chamado a explicar quem o autorizara a dar cursos e palestras para
empresas privadas durante seu expediente, Anceles afirmou que não
precisava de autorização. Afirmou apenas que seu superior era o então
secretário adjunto Carlos Alberto Barreto. Ele também citou Barreto em
sua defesa. “Argumenta o indiciado que a declaração do senhor Carlos
Alberto de Freitas Barreto, à época dos fatos secretário adjunto da
Receita Federal, no sentido de que a DRJ/SM (delegacia de Santa Maria)
sempre foi muito produtiva, seria prova de que suas faltas não
prejudicaram o serviço.” Barreto negou à Corregedoria ter dado tal
declaração ou conhecer as atividades parale-las de Anceles. Mas é fato
que Barreto, a partir desse episódio, tomou conhecimento das acusações
contra seu subordinado. Barreto foi ouvido pelos integrantes da comissão
de inquérito da Corregedoria em 2010 e assumiu como secretário da
Receita em janeiro de 2011. Em maio, cinco meses após o início de sua
gestão, Anceles foi designado julgador na delegacia da Receita de São
Paulo, a mais impor-tante região fiscal do país, responsável por mais de
50% da arrecadação nacional de tributos.
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