Divergências internas podem modificar o projeto do governo, mas a presidenta Dilma não abre mão de levar médicos para as regiões carentes
Izabelle TorresA saúde pública tem se tornado protagonista da cena política brasileira como poucas vezes se viu na história recente do País. A decisão do governo de trazer médicos estrangeiros para trabalhar em áreas desassistidas e o anúncio de que a partir de 2015 um estágio de dois anos no Sistema Único de Saúde (SUS) passará a ser pré-requisito para a graduação em medicina movimentaram os poderes da República e as classes profissionais. As mudanças fazem parte do programa Mais Médicos, a medida mais drástica do governo em resposta aos protestos sociais que se espalharam pelo País no último mês. Ao priorizar o atendimento básico e generalista, o governo acredita na redução gradual de despesas públicas, com o atendimento a doenças evitáveis se tratadas adequadamente. No ano passado, por exemplo, foram gastos mais de R$ 3,6 bilhões em tratamentos de males causados pela obesidade, como doenças cardiovasculares. O valor gasto equivale a metade das despesas anuais previstas para o novo programa.
SOCORRO
Médicos trabalham em favela de Duque de Caxias,
no Rio: projeto pode ampliar atendimento
Apesar da intenção admirável de resolver os gargalos na assistência
básica de saúde, a polêmica causada desde o lançamento do programa
demonstrou que houve pelo menos duas linhas cruzadas dentro da equipe
governista. A primeira delas se refere ao fato de que a ideia inicial
era tratar apenas da vinda de médicos estrangeiros para atender de forma
emergencial regiões mais carentes de profissionais da área. O assunto
sofria críticas, mas seu teor era de importância incontestável, visto os
números oficiais sobre o déficit de 54 mil médicos acumulado na última
década. O que se viu, entretanto, foi a entrada inesperada de outra
proposta que pouco tem a ver com a primeira. A decisão de ampliar o
curso de medicina em dois anos não chegou a ser discutida efetivamente
no Planalto, surpreendendo até auxiliares mais próximos da presidenta
Dilma. O que causou maior estranheza foi o fato de a medida ter
aumentado as resistências ao projeto original, desgastando ainda mais as
relações do governo com os médicos brasileiros. Tudo isso por uma
proposta que só começará a produzir qualquer efeito prático em 2021,
quando nem a própria presidenta, mesmo se reeleita, estará no poder.Médicos trabalham em favela de Duque de Caxias,
no Rio: projeto pode ampliar atendimento
A outra linha cruzada pode ser notada na lista de prioridades dos países escolhidos para exportar os profissionais. De forma isolada, o ministro das Relações Exteriores assinou um protocolo de cooperação com Cuba. A iniciativa dava a entender que a prioridade seria pelos médicos desse país. Entretanto, uma pesquisa feita pelo Planalto mostrou que a preferência dos brasileiros é por gente formada nos Estados Unidos, seguidos por Espanha e Portugal. Cuba aparecia em quarto lugar. Como o atual governo adora se mexer com base em pesquisas, decidiu começar a investida da importação pela Espanha e depois por Portugal. Nos próximos dias, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, terá uma reunião com o governo espanhol sobre os procedimentos adotados. Para os cubanos sobrarão as vagas remanescentes.
SOLUÇÃO?
O ministro Padilha:
"Podemos resolver parte dos problemas da saúde"
Apesar do estardalhaço que causaram, as mudanças propostas pelo Mais
Médicos não representam inovações ao que vinha sendo discutido nos
gabinetes de Brasília durante os últimos governos. A ideia de uma
passagem obrigatória pelo SUS, por exemplo, vem se arrastando desde a
gestão de Fernando Henrique Cardoso, quando o então ministro da saúde
Adib Jatene defendeu a humanização do ensino de medicina. “O importante é
ter médicos capazes de atuar sem equipamentos modernos e robóticos. É
formar médico especializado em gente”, disse ele. Mesmo tratadas como
irreversíveis, as mudanças no ensino ainda podem sofrer ajustes durante
os debates, até pela pressa com que foram colocadas na pauta. “Estamos
brigando em várias frentes e essa ideia será amadurecida nos próximos
meses”, afirma o ministro da Educação, Aloizio Mercadante.O ministro Padilha:
"Podemos resolver parte dos problemas da saúde"
O modelo proposto pelo governo brasileiro é inspirado no programa inglês, apesar das diferenças substanciais que separam a realidade médica dos dois países. Com uma das medicinas mais bem avaliadas do mundo, a Inglaterra possui um sistema de saúde semelhante ao SUS, composto por 37% de profissionais estrangeiros. Além do atendimento gratuito aos cidadãos, os ingleses dispõem de hospitais bem equipados e uma média de 2,8 médicos por mil habitantes. Em comparação com o Brasil, a maior semelhança é o tamanho do sistema de saúde e a intenção de proporcionar serviços gratuitos para todos. Aqui, a média é de 1,8 médico por mil brasileiros e ainda há pelo menos dois mil municípios com menos de um profissional para mais de três mil habitantes. É com base nessas estatísticas que o governo decidiu enfrentar as resistências e importar profissionais sem a revalidação do diploma, cuja prova oficial tem 90% de reprovação dos estrangeiros que tentam trabalhar aqui. “Acreditamos que uma nova distribuição de profissionais pode resolver grande parte dos problemas da saúde”, diz o ministro Padilha.
Nesse cenário de dificuldades de articulação, os parlamentares já estudam emendas à MP dos médicos para atender aos apelos dos conselhos de classe. No plenário, em que a fidelidade ao governo é colocada à prova a todo momento, alguns parlamentares dizem que podem propor a dedução dos dois anos de serviços obrigatórios no SUS do curso de residência médica e propor a adoção de uma prova alternativa ao Revalida, elaborada especificamente para os profissionais estrangeiros que vão se inscrever no programa. Alheio às resistências e às ameaças de mudanças no texto original, o governo se prepara para as próximas fases da ofensiva por melhorias na saúde básica. A pressa se deve à necessidade de o Mais Médicos mostrar eficiência rapidamente. Para a presidenta, tirar o atendimento básico de saúde do caos em que se encontra representa não apenas sua resposta às ruas, mas também o combustível de sustentação da própria trajetória política.
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