3.16.2014

MP vai denunciar 4 militares pela morte de Rubens Paiva

  • Coronel reformado conta que restos mortais de deputado foram desenterrados e jogados ao mar

Chico Otavio


Escavações foram feitas na praia do Recreio, em 1987, em busca da ossada de Rubens Paiva, mas agentes do Exército já o tinham desenterrado, em 1973, e o levado de lancha para alto mar
Foto: Guilherme Pint0/6-2-1987

Escavações foram feitas na praia do Recreio, em 1987, em busca da ossada de Rubens Paiva, mas agentes do Exército já o tinham desenterrado, em 1973, e o levado de lancha para alto mar Guilherme Pint0/6-2-1987
RIO — Ao baixar à Seção de Operações do Centro de Informações do Exército (CIE), no Rio, a missão foi entregue a um dos capitães mais experientes do serviço. Acostumado, como ele diz, a “consertar cagadas” de militares de outros órgãos da repressão, este oficial acatou a ordem, emanada do “gabinete do ministro” em 1973, de dar um fim definitivo a um corpo enterrado dois anos antes nas areias do Recreio dos Bandeirantes.
— Pelo estado do corpo, não posso dizer de quem era, nem cabia a mim identificá-lo. Mas o nome que ouvi foi o de Rubens Paiva — recorda-se.


No momento em que o grupo Justiça de Transição, do Ministério Público Federal, se prepara para denunciar os agentes do regime envolvidos na morte de Paiva, ocorrida entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1971, a revelação do oficial, hoje um coronel reformado, de 76 anos, afasta as dúvidas que restavam acerca do destino do ex-deputado.
— Ele saiu para o mar — garante.
O coronel, que participou de praticamente todas as missões importantes do CIE na chamada “guerra suja”, período mais sangrento do regime militar, entre 1969 e 1974, concordou em falar sob o compromisso do anonimato. Ele disse que montou uma equipe de 15 homens, disfarçados de turistas, e passou 15 dias abrindo buracos na praia — as escavações eram feitas dentro de uma barraca — até encontrar o corpo ensacado:
— De lá, ele (o corpo) seguiu de caminhão até o Iate Clube do Rio, foi embarcado numa lancha e lançado no mar. Estudamos o movimento das correntes marinhas e sabíamos o momento certo em que ela ia para o oceano.
A princípio, o procedimento instaurado em 2012 pelo MPF caminha para denunciar quatro militares: os oficiais reformados José Antônio Nogueira Belham — que comandava o Destacamento de Operações de Informações do 1º Exército (DOI-I), na Rua Barão de Mesquita (Tijuca), onde Paiva morreu sob torturas — e Raimundo Ronaldo Campos, que admitiu ter montado uma farsa para forjar a fuga do ex-deputado, além dos irmãos e ex-sargentos Jacy e Jurandyr Ochsendorf, também envolvidos na fraude. Porém, as revelações do coronel levam o CIE para a cena do crime e podem ampliar as investigações.
Os procuradores da República ouviram 24 pessoas, colhendo mais de 30 horas de depoimentos. Um dos mais importantes foi prestado pelo coronel da reserva Armando Avólio Filho, que na época servia no Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército (PIC-PE). Ele contou que viu, por uma porta aberta, o ex-deputado sendo torturado pelo então tenente Antônio Carlos Hughes de Carvalho e levou o fato ao comandante do DOI-I, o então major Belham, no dia 21 de janeiro de 1971.
Um depoimento escrito, deixado pelo coronel Ronaldo José Baptista de Leão, ex-chefe do PIC morto no ano passado, confirmou a versão de Avólio. Já o coronel da reserva da PM Riscala Corbage, ex-interrogador do DOI-I, fez um relato inédito e detalhado sobre a tortura no DOI, incluindo-se entre os carrascos da unidade.
Reforçam a denúncia os papéis encontrados na casa do coronel Júlio Molinas Dias, assassinado em 2012, com a comprovação de que o ex-deputado foi levado de fato para o DOI-I, e a confissão do coronel da reserva Raimundo Ronaldo sobre a farsa do tiroteio no Alto da Boa Vista.
Belham alegou que estava de férias no período da prisão e do desaparecimento de Paiva, sendo substituído pelo subcomandante, major Francisco Demiurgo Santos Cardoso, o mesmo que teria dado a ordem para a farsa no Alto da Boa Vista. Porém, os próprios documentos que ele apresentou no MPF o incriminam, pois revelam que as férias foram suspensas em 21 de janeiro, um dia após a prisão de Paiva, para o cumprimento de missão especial com o pagamento de diárias. Ele afirmou que a anotação teria sido equívoco do Exército.
Em coletiva sobre o caso, há duas semanas, o professor Pedro Dallari, da Comissão Nacional da Verdade, disse que a única pergunta sobre Rubens Paiva ainda não respondida era o destino dado ao corpo. Em 1987, denúncias anônimas levaram a polícia fluminense a escavar na Praia do Recreio dos Bandeirantes. Em 1999, as retroescavadeiras esburacaram uma área em frente ao Corpo de Bombeiros no Alto da Boa Vista, à beira da Avenida Edson Passos, com o mesmo objetivo.
— As pistas estavam corretas. O corpo realmente passou por estes lugares, onde já não estava na época das buscas — garante o coronel reformado.
O oficial disse que o corpo foi enterrado e desenterrado pelos próprios agentes do DOI no Alto da Boa Vista. Eles o retiraram dali, segundo o militar, por temer que uma obra na Avenida Edson Passou acabasse por descobrir o local, muito próximo à pista. O novo esconderijo também não serviu. Em 1973, banhistas descobriram pelo menos duas ossadas no local, provável ponto de desova de grupos de extermínio. Além disso, o coronel ex-CIE contou que havia risco de vazamento interno. Os comandantes desconfiavam principalmente de Ronald Leão, que espalhara pelo quartel a disposição de abrir a boca.
— Cheguei a ventilar a possibilidade de eliminá-lo, mas a ideia foi abandonada — contou.
O oficial disse que gostava de “montar teatrinhos”, razão pela qual não teve dificuldade de escavar durante 15 dias sem que os frequentadores do local desconfiassem. Não havia, garante, qualquer coordenada precisa sobre a localização do corpo, mas apenas pontos de referência.
— Normalmente, nós levávamos prostitutas junto com os agentes, para disfarçar. Elas eram presas e, depois, cantadas para nos ajudar por dinheiro. Mas, no Recreio, não as levamos. Selecionei 15 agentes, todos subalternos. De graduado, era só eu. A gente se fez passar por turistas. Tomávamos banho de mar, sol, como banhistas comuns.
Para a operação, foram usadas duas barracas civis. Uma destinada às escavações e outra, à logística. As refeições eram fornecidas pelo CIE. Ele citou pelo nome de guerra pelo menos três sargentos que teriam participado: Cabral, seu braço-direito, cujo nome completo não forneceu, Canaan e Iracy. Documentos do projeto Brasil Nunca Mais Digital identificam o sargento Clodoaldo Paes Cabral, já falecido, como um dos agentes do CIE na época. Também aparecem os nomes dos sargentos Jairo de Canaan Cony (também já falecido) e Iracy Pedro Interaminense Corrêa, que negou o envolvimento no caso:
— Fui do CIE, mas nunca tive uma função específica. Só cumpria ordens e nunca estive no Recreio com este objetivo.
Quando as buscas terminavam em determinado ponto, as abas da barraca eram erguidas. O coronel garantiu que o estado do corpo, “um amontoado de ossos e poucos pedaços de carne”, impedia uma identificação.
O militar disse que acompanhou o corpo até o momento do embarque na lancha, mas preferiu ficar esperando no cais, bebendo um drink, o fim da operação. Ao ter a certeza de que cumprira a ordem, seguiu para o Palácio Duque de Caxias, então sede do 1º Exército, para comunicar o sucesso da missão:
— Subi ao 23º andar e dei a notícia pessoalmente ao general Coelho Neto, subchefe do CIE. Podiam escavar e dragar o país inteiro que não iriam achá-lo.


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