Reconciliação depende dos militares, diz coordenador da CNV
Em entrevista, Pedro Dallari, coordenador da Comissão
da Verdade, critica o silêncio das Forças Armadas e afirma que
consolidação democrática passa por reconhecimento de violações
por Marsílea Gombata
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publicado
02/09/2014 08:56
Marcelo Oliveira/ ASCOM CNV
O coordenador da CNV, Pedro Dallari, em entrevista concedida em São Paulo
Diante das evasivas do comando do Exército, da Aeronáutica e da Marinha frente às evidências de graves violações de direitos humanos durante o regime militar (1964-1985), o jurista e coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, se mostra indignado. Desde o início dos trabalhos da comissão, as corporações militares optaram pelo silêncio e por ignorar a CNV. “Como as Forças Armadas não quiseram se manifestar? Nós somos um órgão de Estado. A CNV não é uma ONG. É da natureza da função pública e dos órgãos do Estado prestar contas”, afirma Dallari. “Inclusive, nosso orçamento vem do Poder Público, as pessoas são pagas por ele e nós prestamos contas. Mas as Forças Armadas ‘não’, elas não se manifestam”.
Dallari concedeu entrevista a CartaCapital na tarde de segunda-feira 1º, em meio à correria entre um depoimento e outro no escritório da Presidência, em São Paulo. O prazo é curto: os membros têm até o dia 16 de dezembro para apresentar o tão esperado relatório final. Nele, além do pedido para a criação de uma comissão permanente junto ao Poder Executivo, espera-se um posicionamento mais claro em relação à reinterpretação ou revisão da Lei de Anistia, como pede a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O órgão internacional determinou que o Brasil julgue os agentes do Estado que atuaram na repressão à Guerrilha do Araguaia.
Dallari vê com bons olhos o trabalho de levantamento histórico feito pela Comissão da Verdade. Entre outros pontos, a atuação da CNV envolveu o acesso às “folhas de alteração”, que trazem todos os eventos da carreira do militar e permitiu, entre outras coisas, a descoberta do envolvimento do coronel José Antonio Nogueira Belham na morte do deputado Rubens Paiva. Para Dallari, essa e outras medidas mostram que a comissão cumpriu o papel de resgate da memória e da verdade. Cabe às Forças Armadas, afirma o jurista, encerrar o ciclo: “Falta a reconciliação. E o que estamos fazendo é estender a mão para as Forças Armadas, para elas virem”.
Confira os principais trechos da entrevista:
CartaCapital – Como está sendo a produção do relatório final da Comissão da Verdade?
Pedro Dallari – Foram mais de mais de mil depoimentos colhidos desde o começo da comissão. O relatório é parte disso, nos não distinguimos. O trabalho é o mesmo. Começamos a estruturar o relatório a partir de setembro do ano passado. E vamos aproveitar esses últimos três meses para dar um acabamento ao texto, que vai muito bem. A dificuldade que podemos ter é como aproveitar a quantidade de material obtido. Há muitas linhas de pesquisa, tudo em aberto, e as pessoas ficam muito ansiosas.
O prazo é importante porque ele estabelece, ele marca. Mas tenho sempre dito: a apuração das graves violações de direitos humanos do período investigado não começou com a Comissão Nacional da Verdade e não vai acabar com ela. Até hoje, informações importantes, por exemplo, sobre a Segunda Guerra Mundial aparecem de vez em quando, seja porque descobriu-se o diário de uma pessoa importante do regime nazista, seja porque fotografias que vêm á tona. Então, certamente, isso vai continuar acontecendo, e uma das recomendações que a comissão certamente vai aprovar é a de que se constitua no âmbito do Poder Executivo um órgão permanente que dê continuidade a esse trabalho. Como no Uruguai, onde ela se chama Comissão do Trabalho Recente. Seria um órgão que dê continuidade a esse trabalho.
E com o relatório vamos proporcionar uma plataforma de dados muito ampla, muito consistente e muito organizada. Seja para essa futura comissão do Executivo, para o mundo acadêmico ou para jornalistas, o relatório da comissão será uma primeira fonte de acesso importante para fonte de pesquisa.
CC – Essa comissão permanente estaria ligada à Presidência da República?
PD – Depende, mas o provável seria uma comissão vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, este seria o figurino mais plausível. Outro dia, em reunião com o procurador-geral da República, o doutor Rodrigo Janot, ele nos disse que o Ministério Público está constituindo uma comissão dessa natureza, de caráter permanente, para dar continuidade e sistematizar o trabalho que vem sendo feitas pelas chamadas procuradorias da Justiça de transição, pelos grupos de justiça de transição do Ministério Público Federal. Imagino que várias iniciativas desse teor sejam incorporadas. A Comissão da Verdade tem sido uma experiência positiva e tem contribuindo para o resgate da memória de maneira muito eficaz. Suponho, então, que vá haver a defesa de organismos de estados, municípios e sociedade civil que deem continuidade a isso.
CC – Ainda sobre o relatório, qual recomendação, na opinião do senhor, não pode faltar? Muitos falam com expectativa sobre a revisão ou a reinterpretação da Lei de Anistia.
PD – Isso é algo que ainda temos de discutir. Não está definido porque não é objeto da comissão, é um ponto inclusive técnico-jurídico, portanto não é do escopo da comissão. A comissão sequer é formada por gente só do direito, poderia ser até inclusive formada integralmente por pessoas que não são da área do direito. Ela não tem esse caráter técnico jurídico, e a discussão tem esse elemento. Agora, há coisas fundamentais, como as referentes às Forças Armadas. Há necessidade de se reformular o ensino nas academias militares, de modo que a temática de direitos humanos ganhe relevância. Isso é algo muito importante, porque mexe com a cultura organizacional da estrutura das Forças Armadas. As graves violações não decorreram da ação de uns malucos. Na verdade foi uma política de Estado comandada pelas Forças Armadas. É muito importante, portanto, atuar junto a elas.
CC – A desmilitarização das policias fará parte das recomendações do relatório final?
PD – É possível, é possível. Nós vamos ter que discutir isso melhor, porque estamos deixando por último as recomendações. Estamos recebendo sugestões de populares até o dia 30 de setembro. Não dá para ter uma base estatística, mas outro dia recebi uma coisa muito interessante. O que se verificou é que há um número muito grande de pessoas desaparecidas. Há muitas pessoas enterradas nos cemitérios brasileiros sem identificação. Então é a construção de um banco de DNA de todos os corpos enterrados sem identificação, de tal maneira que se tenha claro onde está aquele corpo e uma amostra de DNA. De tal sorte que, se houver a procura, isso seja facilmente localizado. É uma sugestão que nasce desse contexto, por exemplo, da Vala de Perus, onde não conseguimos identificar os corpos e teremos de fazer essa perícia toda. Na verdade essa medida acabará tendo um alcance muito maior do ponto de vista dos direitos humanos. Esse é o tipo de sugestão que a gente não imaginaria e que certamente vamos acolher.
CC – Ainda sobre a Lei de Anistia. Na opinião do senhor, ela foi construída sob um pacto ou interpretada de maneira que essa versão prevalecesse no imaginário da sociedade brasileira?
PD – Sou professor de Direito e costumo falar para os alunos que nenhuma lei veio de Marte. A lei é produto da ordem social que a cria e ela vai sendo interpretada em sua implementação por uma ordem social que a cerca. Então é muito comum pegar a legislação antiga e verificar que a jurisprudência foi cuidando de atualizá-la, mesmo que o tempo literal não mude. A Lei de Anistia tem um vício de origem, que é o fato de ter sido adotada sob a égide do regime militar, ou seja, ela beneficiou seus autores, claramente. E isso tem sido um argumento importante para aqueles que defendem sua revisão. Então esse é um debate que tem uma dimensão jurídica, mas que ao cabo depende muito da posição da sociedade, de interpretá-la e de entender que cabe ou não o julgamento.
Agora, acho que essa ênfase em relação à Lei de Anistia decorre do fato de que lamentavelmente as Forças Armadas até hoje não reconheceram a sua responsabilidade institucional pelas graves violações de direitos humanos. O que mais nos chocou, por exemplo, no relatório de conclusão das sindicâncias foi o fato de que as Forças Armadas não reconhecem a ocorrência da tortura. Para caracterizar que não houve desvio de finalidade nas sete instalações militares, onde obviamente houve tortura, a única opção deles foi qual? Ignorar. Então isso gera uma certa indignação na sociedade, pois um órgão do Estado da importância das Forças Armadas, que até hoje se recusam a reconhecer o que é óbvio e, mais do que isso, se negam ao pagamento de indenização. Quem reconheceu? O Estado brasileiro. As Forças Armadas continuam a negar o reconhecimento de algo que o Estado brasileiro já reconheceu. Isso gera uma indignação muito grande, e acho que acaba sendo um fator importante em relação à Lei de Anistia.
CC – Essa questão gira em torno do julgamento dos agentes repressores do Estado. Como levar, então, os responsáveis a julgamento? Se as Forças Armadas admitissem, seria mais fácil de levá-los a julgamento?
PD – Não sei, mas acho que socialmente isso fortaleceria a ideia de reconciliação. Se as Forças Armadas reconhecem que houve graves violações de direitos humanos, que elas tiveram protagonismo nisso, que isso foi um equívoco e que não é algo exclusivo das Forças Armadas – torturou-se na polícia do Estado Novo de Getúlio Vargas, por exemplo... Na medida em que a instituição avança no reconhecimento, isso leva a uma perspectiva de reconciliação. Porque até hoje as Forças Armadas vivem sob esse estigma: elas são vistas como uma necessidade do Estado, elas têm apoio da sociedade, mas paira ainda como uma chaga aberta essa participação delas nesse período e de uma maneira tão trágica.
Costumo fazer um pouco de analogia com o papa Francisco em relação à pedofilia. Na hora em que a Igreja parou de ter uma postura meramente reativa, reconheceu o problema e a sua responsabilidade em relação a isso, deixou claro que aquilo tinha ocorrido, mas não era um elemento da doutrina da Igreja, resolveu. Claro, os casos continuarão a ser julgados individualmente, mas o próprio papa reconheceu que não tem sentido a Igreja ficar fugindo dessa realidade. Acho que as Forças Armadas deveriam mirar nesse exemplo.
Independentemente da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (que condenou o Brasil pela repressão à Guerrilha do Araguaia), o Brasil precisa dar uma demonstração inequívoca de que houve uma reação diante disso. No sentido estrito, é fazer o julgamento dos agentes. Mas, com franqueza, a imensa maioria já morreu, então estamos falando do julgamento de algumas pessoas, sendo algumas muita idosas. Então, embora eu ache que isso seja uma questão relevante, não tenho dúvida de que o mais importante seja um reconhecimento pelas Forças Armadas. Do ponto de vista da consolidação democrática, seria algo significativo. O próprio fato de a Comissão Nacional da Verdade não ser um avanço técnico jurídico, dá essa dimensão social política de maneira muito mais abrangente do que ficar restrita a algo que terá de será equacionado pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.
CC – As Forças Armadas têm sido resistentes em abrir seus arquivos, se posicionarem em relação às denúncias etc. Há outros órgãos do governo em que a comissão sentiu resistência? Como é o Itamaraty, por exemplo?
PD – Tem sido muito cooperativo. Acho que o problema realmente são as Forças Armadas. Chegamos a um momento em que até o aprofundamento das nossas investigações fica difícil, porque quem detém as informações são elas. Na semana passada, por exemplo, tivemos o primeiro caso de um desaparecido cujo corpo foi localizado, identificado e entregue à família, que foi o Epaminondas de Oliveira. Neste caso, tanto o atestado de óbito dele quanto um documento do Serviço Nacional de Informações (SNI) dizem que ele foi internado no Hospital das Forças Armadas, em Brasília. Nós pedimos ao hospital o prontuário dele. O hospital disse que não poderia nos dar porque existia uma ordem do comando do Exército para que todas as informações referentes a esse período fossem fornecidas exclusivamente pelo comando. Pedimos ao comandante, e veio uma resposta dizendo que não há nenhuma informação sobre Epaminondas de Oliveira no Hospital das Forças Armadas em Brasília. Ponto. É uma resposta que tem duas linhas. É ridículo! Como não tem o prontuário de uma pessoa que o próprio SNI disse que esteve lá? A perícia comprovou, inclusive, pela atadura e os restos mortais, que ele havia saído de um hospital para ser enterrado.
O que nós podemos, então, fazer? É fundamental que as Forças Armadas nos auxiliem. E a própria comissão apurou que existe naquele hospital um imenso arquivo morto que não foi pesquisado. É uma resistência, é uma obstrução. A cada momento, a cada passo a gente enxerga essa resistência.
CC – Como o senhor enxerga o fato de o general Enzo Peri, comandante do Exército, ter imposto um silêncio oficial a seus subordinados, de modo que não colaborassem com as apurações da CNV?
PD – É uma visão equivocada de que a melhor maneira de preservação das Forças Armadas é o silêncio e a ocultação. É um equívoco isso, porque ninguém atribui aos atuais comandantes ou mesmo a quem está na ativa qualquer responsabilidade pelas violações de direitos humanos. Nós temos absoluta clareza de que esse quadro não resulta da conduta dos comandantes e oficiais atuais. Mas na medida em que essa postura obstrucionista acaba se configurando, os atuais quadros das Forças Armadas acabam se associando. Não porque praticaram graves violações, mas pelo acobertamento das investigações. E isso gera um desgaste da imagem deles perante a sociedade. Sempre vemos na cobertura da imprensa: “Mais uma vez as Forças Armadas não quiseram se manifestaram sobre as informações trazidas pela Comissão Nacional da Verdade”. Como não quiseram? Nós somos um órgão de Estado. A CNV não é uma ONG, somos um órgão de Estado brasileiro. Se nós apontamos esse quadro de graves violações e identificamos responsabilidade institucional das Forças Armadas, elas têm de se manifestar como qualquer órgão. É da natureza da função pública e dos órgãos do Estado prestar contas. Inclusive, nosso orçamento vem do Poder Público, as pessoas são pagas por ele e nós prestamos contas. Mas as Forças Armadas não, elas não se manifestam.
CC – A quem caberia esse ultimato, essa pressão? A qual “instância máxima”? Se a CNV faz um requerimento e as Forças Armadas se manifestam de maneira insatisfatória beirando o silêncio, a quem caberia?
PD – Nossa interlocução tem sido com o ministro da Defesa, Celso Amorim, que tem colaborado. Somos um órgão que está com os dias contados, que tem seu atestado de óbito lavrado*: dia 16 de dezembro de 2014 deixaremos de existir. Então a comissão não tem nenhum espírito belicoso, não somos movidos pela ideia de fazer um enfrentamento político, até porque não temos tempo para isso. O que fazemos diante da dificuldade encontrada com as Forças Armadas é perseverar: temos insistido, ido atrás.
Tivemos muita dificuldade, por exemplo, para conseguir as folhas de alteração, que é um documento que registra todos os eventos da carreira de um militar. Através dela conseguimos rastrear o que foi a vida de um militar. Isso é muito importante na investigação que a gente faz, pois muitos elementos podem vir a partir da identificação de dados dessas folhas de alteração. Por exemplo, conseguimos identificar por meio desse documento que o coronel José Antonio Nogueira Belham, à época major e comandante do DOI-CODI no Rio de Janeiro, estava presente na morte do Rubens Paiva. Ele alegava que estava de férias, mas com a folha de alteração vimos que naquele dia da morte havia recebido diárias. Só agora estamos conseguindo as folhas de alteração, levamos meses para conseguir isso. Há pedidos para a folha de alteração que são do ano passado.
CC – Aceitar esse posicionamento, pensando agora em relação à Presidência da República, de um general que impõe esse silêncio e das Forças Armadas se fechando não representa um paradoxo em relação à Comissão da Verdade? Por um lado, se tem um órgão que vai investigar essas evidências, de outro, um manancial de provas e evidências de violações de direitos humanos...
PD – Sem dúvida. É um paradoxo e um paradoxo ruim, porque na verdade ele sinaliza que há um problema. Não é à toa que a presidenta Dilma, quando sancionou a lei de criação da CNV, chamou para o ato todos os ex-presidentes então vivos para mostrar que era uma política de Estado e não de governo. Há, então, um paradoxo: de um lado o Estado avançando e por outro está impedindo o avanço.
CC – A Comissão Nacional da Verdade fez um pedido de esclarecimento do Ministério da Defesa depois de as Forças Armadas negarem desvio de finalidade no uso de suas instalações. Existe um prazo para se obter uma resposta? Caso esta não ocorra, qual atitude pretende tomar a CNV?
PD – Reparamos numa constante sobre os relatórios: nenhum deles havia feito referência aos casos de mortos e desaparecidos que havíamos juntado. Porque para cada um dos sete locais nós juntamos casos em que justamente o Estado brasileiro já está indenizando as famílias, portanto são casos inquestionáveis. E reparamos que, em relação a esses casos, não houve nenhuma citação no relatório, pois foi a única maneira de se chegar àquela conclusão absurda sobre o não desvio de finalidade: foi negar que havia ocorrido tortura e morte ali. Então, em um pedido de esclarecimento indagamos se, na ausência de referência a esses casos, as Forças Armadas estavam negando o que havia sido validado pelo Estado brasileiro.
Entendo que esse pedido de esclarecimento pode constituir uma excelente oportunidade para as Forças Armadas darem um passo à frente em relação ao reconhecimento das graves violações de direitos humanos. Estou aguardando com muita ansiedade essa resposta. Se elas pura e simplesmente negarem, contestando o que a Comissão de Mortos de Desaparecidos já apurou e até de casos judiciais, elas vão incorrer em um descrédito absoluto. No momento em que as Forças Armadas reconhecerem que houve realmente esse quadro de violações, que elas tiveram responsabilidade nisso e que isso foi um equívoco, será um avanço enorme para a democracia brasileira. Porque isso, sim, representará a consolidação da democracia. Na medida em que o principal fator que gerou a supressão da democracia, ao reconhecer que isso foi um equívoco, estará dando um aval à perenização da democracia na sociedade brasileira. O fato de eles reconhecerem fará com que ganhem credibilidade frente à sociedade brasileira. As Forças Armadas sairiam fortalecidas desse processo, e não enfraquecidas como pensam que será.
CC – No relatório final, haverá um capítulo sobre o empresariado que apoiou o regime? Como a Comissão da Verdade buscará responsabilizá-los?
PD – Não é o regime... A finalidade da comissão, pela lei, é apurar as graves violações de direitos humanos. Então o fato de muitas pessoas terem apoiado o golpe de 1964 não quer dizer que elas tenham dado apoio às graves violações de direitos humanos. Então haverá um capítulo a segmentos da sociedade, que não eram o Estado, que deram apoio às graves violações de direitos humanos. Por exemplo, o financiamento da Oban pelo empresário do grupo Ultra, o Henning Albert Boilesen é um caso. Um outro exemplo são os donos da Usina Cambaíba, em Campos, no Rio de Janeiro. Os fornos da usina foram usados para incinerar os corpos de executados na Casa da Morte, conforme depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra. Temos, então, empresários que atuaram não para o apoio ao regime, mas para apoiar as graves violações de modo mais claro. Então vamos apurar, temos um capítulo dedicado a isso, mas mais focado. Ou teríamos que investigar o golpe, e essa não é a função da comissão.
CC – Alguns colaboradores e responsáveis por relatórios preliminares que servirão de subsídio para o relatório da CNV se mostraram preocupados com o fato de não haver ninguém encarregado de redigir um capítulo sobre a repressão à Guerrilha do Araguaia. Haverá, afinal, um capítulo sobre o tema?
PD – Claro, nós até criamos esse capítulo. Originalmente tínhamos um capítulo dedicado aos casos mais emblemáticos, como Riocentro, Stuart Angel, Araguaia etc. Mas avaliamos que o caso do Araguaia, seja pelo número de desaparecidos grande, já que metade dos mortos e desaparecidos vem de lá, seja pelo impacto que teve ou pelo volume de recursos das Forças Armadas que mobilizou merecia um capítulo especial. Todos os capítulos estão sendo feitos. Temos hoje trabalhando diretamente na redação do relatório cerca de 40 pessoas.
CC – Outro ponto de preocupação é em relação aos camponeses da região do Araguaia. As informações a respeito desse episódio vêm de apurações feitas pelas famílias dos guerrilheiros. Investigou-se a respeito dos camponeses da região?
PD – Sim, mas é uma investigação difícil. Difícil pela ausência de documentação. E quem tem documentação, de novo, são as Forças Armadas. No caso dos membros da guerrilha urbana se tem até um perfil socioeconômico das vítimas, que ajuda um pouco. Mas essa população camponesa, e principalmente a indígena, é mais difícil. Quem tem se debruçado muito sobre isso é a professora Maria Rita Kehl, mas é difícil. É como localizar os desaparecidos. Tem um momento em que temos depoimentos como o do coronel Paulo Malhães ou do delegado Cláudio Guerra, de que eles foram incinerados ou jogados no mar ou rios. Isso significa que nunca vamos encontrá-los. E não é porque não há investigação, mas porque os corpos desapareceram.
CC – Falamos anteriormente sobre o caso do camponês Epaminondas Gomes de Oliveira, cujos restos foram localizados, devolvidos à família e enterrados em sua terra natal. Com a criação da Comissão Nacional da Verdade, muito esperavam que fôssemos ter outros Epaminondas...
PD – Mas é muito difícil porque houve uma política deliberada de extermínio e de desaparecimento dos corpos. Não é que os corpos estão desaparecidos porque não foram localizados. Eles estão desaparecidos porque houve uma política de desaparecimento. E o fato de que em parte dos casos que apuramos houve incineração ou esses foram jogados ao mar ou em rios, significa que não será possível localizá-los não porque a comissão não tenha efetuado uma atividade de pesquisa, mas porque não existem mais esses restos mortais.
CC – Então não seria o fato de não ter faltado equipe para investigar e levantar evidências...
PD – Acho que não. Há duas dimensões, e uma é essa de que houve desaparecimento. Hoje a gente sabe que a Ana Rosa Kucinski foi incinerada em um forno na Usina de Cambaíbas. Ou seja: nós nunca vamos achar o corpo dela porque ele foi incinerado. E nós temos a informação do Cláudio Guerra que o identificou, porque perguntei se ele abria os sacos onde eram levados os corpos e ele diz que sim. Pode ser que haja corpos que não tenham desaparecido nessas circunstâncias e estejam enterrados. Mas aí quem sabe são as Forças Armadas, como é o caso do Araguaia. Quem sabe o que foi feito com os desaparecidos? As Forças Armadas, porque elas operavam a partir de uma unidade, a Casa Azul de Marabá, que vamos visitar provavelmente em 15 e 16 de setembro.
CC – Qual avaliação que o senhor faz da CNV em relação a outras comissões que existiram em países palcos de ditadura, como Argentina, Chile ou mesmo Guatemala? O caso da Argentina ficou muito marcado pela mobilização e pelo debate público, onde as audiências eram transmitidas em cadeia nacional...
PD – Acho que cada comissão tem sua própria história porque ela é fruto de um contexto específico. No caso da Comissão da Verdade brasileira nós tivemos êxito em realmente resgatar a memória do que foram as graves violações de direitos humanos, principalmente no período do regime militar. Isto era o principal objetivo dela. A comissão não vai esgotar essas investigações. Ela é vista pela sociedade como um ente que vem realizando um trabalho e está conseguindo impactar, o que é o maior mérito que teve. Então, nesse sentido, acho que ela já foi bem sucedida. Agora ela tem de concluir seu relatório. Fica faltando o que, diante do tríptico da comissão – verdade, memória e reconciliação, como está na lei da comissão? Aí é com as Forças Armadas. Acho que verdade e memória, pelo que transmitimos à sociedade, avançamos muito. Falta a reconciliação. E o que estamos fazendo é estender a mão para as Forças Armadas, para elas virem.
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