Entrevista: Daniel Cloud
Para o filósofo americano Daniel Cloud, a seleção artificial está por trás da evolução das línguas, do significado das palavras e do vocabulário. Nesta entrevista, o professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, revela o funcionamento desse mecanismo e conta por que a linguagem nos torna uma espécie única na natureza.
Rita Loiola
No livro 'The Domestication of Language' ('A Domesticação
da Linguagem', em tradução livre), Daniel Cloud explica que a linguagem
evolui quando aceitamos ou rejeitamos pequenas inovações nas palavras.
Em seu segundo livro, The Domestication of Language (A Domesticação da Linguagem, em tradução livre), lançado em dezembro nos Estados Unidos, Cloud conta como os termos que usamos sobrevivem ou desaparecem de acordo com as rígidas leis da seleção artificial. A evolução não perdoa substantivos ou adjetivos mal adaptados.
Autor: CLOUD, DANIEL
Editora: COLUMBIA UNIVERSITY PRESS
Questões filosóficas — Cloud, que é professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, retira a discussão sobre as palavras do terreno da linguística e promove seu retorno aos domínios da filosofia, ocupando-se de questões como sua origem, objetivos e o processo por trás do significado dos termos que usamos no cotidiano. Reunindo cerca de três décadas de seu trabalho de pesquisa sobre a linguagem, discute as últimas descobertas sobre o tema e explica os passos que o levaram a concluir que a biologia é a força por trás da evolução de nossas línguas. Para isso, constrói seus argumentos com o apoio de filósofos antigos e contemporâneos, como o grego Sócrates (século V a. C), o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ou o americano Daniel Dennett, um dos primeiros contemporâneos a relacionar os conceitos de Darwin e nossa linguagem.
Buscando as bases científicas que revelam como os primeiros hominídeos aprenderam a criar os sons articulados que hoje conhecemos como palavras e de que forma elas se transformaram ao longo dos anos, Cloud demonstra que somos o “design inteligente” por trás de palavras e expressões. Temos o controle sobre seu destino e convivemos com elas em uma relação de simbiose, como a que temos com as bactérias que vivem em nosso intestino. Enquanto fornecemos o ambiente ideal para que a linguagem sobreviva, ela nos ajuda a viver melhor, ter sucesso reprodutivo e passar os genes adiante.
Nesta entrevista, o filósofo explica como suas ideias funcionam na prática e por que se preocupar com o nascimento e transformações das línguas é revelar alguns dos misteriosos mecanismos que tornam os seres humanos uma espécie única na natureza.
Por que o senhor acredita que temos com a linguagem a mesma relação que desenvolvemos com nossos cães?
A ideia da domesticação das palavras rondava minha mente há anos, desde que li Darwin. Sua ideia de seleção artificial parece resolver velhos problemas sobre a linguagem de maneira inovadora. Nossas línguas são, em parte, produto da invenção humana: decidimos como ela é e será. No entanto, nossa linguagem não foi deliberadamente inventada por um grupo de pessoas. Ela está mais para nossos sheepdogs ou retrievers. Não os inventamos, no sentido literal, mas nossos ancestrais fizeram escolhas repetidas, mais ou menos racionais de suas características, que os tornaram o que são hoje. Escolhemos entre diversas variantes sutilmente diferentes, inconscientemente moldando nossos cães da maneira que nós quisemos. Com a linguagem parece acontecer o mesmo.
Escolhemos palavras e expressões como preferimos um cão com orelhas grandes ou curtas? Sim, fazemos uma série de pequenas escolhas, aparentemente inconsequentes, e elas se sobrepõem a variações acidentais, produzindo grandes mudanças ao longo do tempo. Os animais foram otimizados, inadvertidamente e sem muita coordenação entre os diversos criadores ao redor do planeta, e se tornaram ferramentas especializadas para as atividades humanas. A mesma coisa pode ser verdadeira para alguns aspectos de nosso uso da linguagem. Nós simplesmente não percebemos os resultados se acumulando.
Nossas escolhas são o motor da evolução da linguagem? Sim. De acordo com Darwin, algo se torna domesticado quando adquirimos o poder de veto sobre sua reprodução – é o que acontece quando os agricultores selecionam algumas sementes e jogam outras fora. Eles escolhem entre as opções que o ambiente oferece, ceifando as mutações desagradáveis e conservando as outras. Fazemos o mesmo com as palavras, suas associações e sentidos, aceitando algumas das pequenas inovações que encontramos no caminho – as mutações – e rejeitando outras.
Quando Darwin elaborou o conceito de seleção artificial, ele falava sobre a intervenção humana em organismos vivos, como animais ou plantas, e não sobre fenômenos ou eventos, como costumamos definir a linguagem. As línguas seriam também organismos vivos? Cultura é diferente da vida baseada em carbono. Trata-se de uma nova forma de ‘vida’ que só pode surgir quando apareceram cérebros capazes de desenvolvê-la. Mas os princípios básicos de Darwin ainda governam sua existência. Sim, é difícil imaginar isso. Mas também foi difícil imaginar os átomos e micróbios ou que evoluímos a partir de um ancestral comum dos macacos. Gostamos de imaginar que há o inconsciente ou ‘o sistema’ ou qualquer ‘eles’ por trás de nossas atitudes. Mas não existe nada disso. O que há é, simplesmente, o efeito de nossas próprias ações.
Seu livro afirma que as palavras “aumentam o sucesso reprodutivo de seus hospedeiros em um sistema de mutualismo”. Como isso acontece? Convivemos com a linguagem da mesma maneira que com as bactérias de nosso intestino. As bactérias nos ajudam a digerir alguns tipos de alimento, uma associação que favorece sua reprodução e também nosso bem-estar. As palavras nos ajudam sendo ferramentas úteis para a persuasão, a comunicação, o ensino, a reflexão, o trabalho em equipe e a previsão do futuro. E nós as ajudamos a permanecerem vivas. Além disso, elas são essenciais em nossa reprodução: julgamos outras pessoas pelas palavras que usam e, assim, simpatia ou status social dependem de nosso uso correto das palavras. Alguém com um vocabulário limitado terá dificuldades diariamente em sua vida. É atrativo, para um humano, saber falar bem.
Ou seja, o tipo de palavras que alguém usa revela também informações pessoais. Como esse componente social se encaixa em sua teoria de domesticação e evolução da linguagem? Conscientemente, as pessoas se esforçam para tornar seu dialeto distinto de seus vizinhos por razões políticas. Muitos sotaques britânicos, por exemplo, sobrevivem porque as pessoas do interior não querem soar como os londrinos. A linguagem está ligada à identidade e o contrato social estabelecido entre grupos diferentes. Ela é uma parte essencial da natureza humana, com efeitos poderosos. Detestamos algumas maneiras de falar, gostamos de outras e é difícil decidir racionalmente o porquê dessas preferências. Muitos preconceitos de classe são preconceitos linguísticos e vice-versa, mas explicar isso é difícil. Costumamos pensar nas maneiras de falar apenas como ‘certas’ ou ‘erradas’.
A discussão sobre a origem das línguas costuma ser um mistério científico. Se ela evolui, como começou? A hipótese é que começamos com alguns sinais aleatórios como respostas a situações novas. Então, presumivelmente, esse processo foi repetido inúmeras vezes até que adquirimos o léxico [conjunto de palavras de um idioma] da linguagem humana. Sabemos que isso aconteceu pelos gritos de alarme dos animais ou pelos sinais que coordenam diferentes genes nas células. Esse é o sistema possível e comum em qualquer forma de vida. No entanto, o que os humanos fazem e os chimpanzés não é cooperar. Precisamos cooperar para buscar alimento. A linguagem humana começou quando percebemos que mentir é errado, que o mau uso dos sinais era contrário aos interesses comuns. Nossos sinais precisaram ser moralizados para tornar possível a comunicação elaborada.
É esse o papel da conversa na evolução da linguagem? Sim, todas as conversas estão relacionadas a alguma atividade de cooperação. Ensinar é uma atividade assim, da mesma maneira que a escrita. Quando acusamos alguém de distorcer o significado de nossas palavras, estamos participando da evolução da linguagem, tentando nos engajar na estabilização da seleção das palavras.
Seu livro destaca a importância da conversa pessoal, cara a cara, no desenvolvimento das línguas. Tornou-se um senso comum dizer que as novas tecnologias podem minar a capacidade da conversa ao vivo. Essa poderia ser uma nova força na evolução das línguas? O que podemos perder com a falta dessa conversa cara a cara são os elementos envolvidos na atenção e na obrigação de falar e interpretar fielmente. Sem o contato pessoal a dimensão moral que tornou possível a linguagem humana pode ser perdida. Tudo depende se você se importa com a reação do público. Suponho que uma pessoa que perdeu o contato com essa dimensão fundamental não é melhor que um chimpanzé com um teclado. No entanto, tornar-se humano sempre foi algo a ser conquistado, não nascemos com todas as habilidades humanas, elas são aprendidas. Então, não sei se é um novo fenômeno falar sem pensar ou não se importar com a resposta de quem ouve. Sempre houve pessoas assim. A tecnologia apenas as tornou visíveis.
Costumamos considerar nossa linguagem uma dessas habilidades incríveis e únicas que nos torna humanos. No entanto, o senhor a coloca lado a lado a outras simples adaptações, comuns a todos os seres vivos. Nossa linguagem não é esse fenômeno complexo e maravilhoso? É uma adaptação incrível que apenas se desenvolveu nos homens e na Terra, até agora – apesar de não sabermos exatamente o que golfinhos, baleias ou elefantes fazem para nos certificar de que possuem algo igualmente maravilhoso, apenas diferente. Há muitas coisas maravilhosas na natureza que começaram simples e evoluíram. Nosso mundo é o tipo de lugar que cria coisas como nós e, provavelmente, outras coisas inteligentes. Somos maravilhosos, assim como toda a natureza que nos rodeia. O que nos faz especiais não é nossa linguagem, é a grande responsabilidade que temos com nosso mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário