Por Nara Rúbia Ribeiro
Muitos
vivenciam o amor como um rasgo a que a alma se submete intencionalmente
para exigir que a mão do amado a costure. O problema é que a mão do
outro nem sempre está disponível para esse trabalho: a alma sangra, dói,
e os rasgos se expandem… A dor, quando bem resolvida, pode ser um
prenúncio de beleza. Mas, para que o belo de fato advenha, é preciso
viver a dor, senti-la, tocá-la, integrar-se a ela, e transmutá-la,
sabedores de que o vivenciar a dor também é parte do exercício de amor.
Já
tive muitos castelos desmoronados na poeira dos dias. Quem não os teve?
E a dor, nesse caso, é inevitável. Em nossa alma aprendiz, amar é
desejar estar ao lado do outro, dentro do outro. É querer ser o outro
sem sair de si mesmo. É construir uma redoma de sonho e ali inserir o
amado, sob a eterna e vigilante proteção dos nossos olhos. E queremos
que o outro caiba exatamente no nosso sonho e viva o nosso projeto de
existência. Que ele esteja no cenário que construímos e encene o papel
que lhe escrevemos.
E, num repente,
algum novo vento nos sopra e mostra que o outro não é exatamente o
aquele a quem julgamos amar. Percebemos que ele tem segredos e mistérios
maiores que pensávamos e ficamos perplexos ao perceber que ele tem
caminhos traçados e que quer percorrê-los, muitas vezes, sem nós.
Perdemos a voz ao saber que a alma do outro é hóspede e hospedeira de
outras almas. E as nossas pernas tremem ao constatar que a redoma era
ilusão. Que todo o castelo de amor era ilusório. E a dor chega e castiga
e fustiga a alma com cem mil acusações.
O
que nos sangra, num momento como esse, é a obrigação de desamar. Mas
será que isso existe? Os poetas, há muito, já apregoaram que o amor é
sempre “para sempre”. Questionaremos as verdades poéticas? Banalizaremos
o amor? Faremos dele um bibelô barato e quebrável destinado a adornar,
por breves dias, as estantes da nossa alma?
Ocorre
que somos ainda aprendizes da arte do eterno. O amor não reside senão
no desejo da plenitude do outro. Ele não se esmera a não ser no respeito
ao outro. Ele não pulsa a não ser para o querer o bem e sonha que o
outro, pássaro livre em perfeição de voo, possa vislumbrar, dos cumes de
si mesmo, os mais belos sentimentos e paisagens da terra.
E
assim, quando o outro não mais deseja estar ao nosso lado, isso nos
fere e sangra, mas o que nos massacra não é o outro. É desejo egoístico
de aprisionar um espírito que também, assim como nós, tem sede de
infinitos.
Tenho comigo que o que
mais dói é a obrigatoriedade que nos impomos, quando o castelo
desmorona, de desamar o outro. E embora talvez não o tenhamos amado de
fato, fizemos um esboço de amor e é desorientador apagá-lo. Desamar é
doloroso demais, porque o desfazimento do amor é contrário à nossa
natureza etérea, espiritual, eterna.
Devemos,
sim, exercitar o desapego; não o desamor. Desejar a liberdade, a
integralidade, a plenitude do outro. Compreender que o que dói não é o
amor não correspondido, mas a quebra das correntes (talvez até de ouro)
com que tentávamos prender alguém. Apenas quando soubermos apreciar com
encantamento a liberdade, seja ela nossa ou de um ser amado, teremos
conhecido a face invisível e invencível de um amor verdadeiro.
E
a alma, outrora rasgada, fará das cicatrizes uma arte emoldurada e
rebordada de vida, na certeza de que toda a dor, bem lá no fundo, labora
a nosso favor.
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