7.10.2011

Novos estudos científicos condenam o uso de punições e da violência no treinamento dos nossos cães e comprovam a eficácia de métodos com base em recompensas

Vamos discutir a relação?

Na esteira de reportagem que mostra como a ciência pode melhorar a nossa relação com os cães, a repórter Izadora Rodrigues visitou um hospital em que cães são usados para fins terapêuticos com resultados animadores. :
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Quando a cadela bichon frisé Jujuba entrou na vida da psicopedagoga Cristina Ferraz há quatro anos, sua primeira missão era suprir a ausência deixada por Catarina, sharpei que havia morrido pouco antes. Dócil e fácil de ser treinada, a partir de um ano, Jujuba adotou um hábito que incomodava profundamente a sua dona: lambia insistentemente sempre o mesmo ponto no pescoço de Cristina. Em uma ida ao ginecologista, a psicopedagoga descobriu que tinha um problema na tiroide. Exames posteriores revelaram um tumor. Depois de uma cirurgia, o câncer foi curado e a cachorrinha deixou o pescoço da dona em paz. Até o ano passado, quando voltaram as lambidas. Mais uma vez, o diagnóstico de Jujuba foi absolutamente preciso, e um novo tumor precisou ser retirado. Por conta disso, é mais do que compreensível que Cristina defina a si própria como “mãe da Jujuba”.

A ciência está mostrando que, muito mais do que exagero dos donos, usar graus de parentesco para qualificar a relação entre espécies não é de todo descabido. Essa é uma das conclusões apresentadas no livro “Dog Sense: How the New Science of Dog Behavior Can Make You a Better Friend to Your Pet” (“O Sentido do Cão: como a Nova Ciência do Comportamento Canino Pode Fazer de Você um Amigo Melhor para o Seu Bicho de Estimação”), lançado no mês passado no Hemisfério Norte e que chega ao Brasil no início de 2012 pela editora Record.
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DOUTOR PET
A psicopedagoga Cristina Ferraz teve um câncer na tiroide diagnosticado por sua
bichon frisé Jujuba, que divide a casa com a boxer Dadá e Guilherme, filho de Cristina

Seu autor é o britânico John Bradshaw, diretor do departamento de antrozoologia da Universidade de Bristol, no Reino Unido. Ele tem estudado o comportamento de cães e gatos por mais de 25 anos, com acesso às mais avançadas pesquisas. Isso dá a ele a autoridade para afirmar que um dos maiores erros que nós, humanos, cometemos ao analisar nossos cachorros é achar que para eles o mundo é uma grande matilha, na qual os indivíduos disputam o poder com direito até a recorrer à violência. Segundo Bradshaw, estudos recentes mostram que a visão dos cães sobre o relacionamento com humanos tem mais a ver com o conceito de família. “Eles ‘pensam’: ‘Aquele que me cria é quem tem mais chance de cuidar bem de mim para o resto da vida’. Assim, o dono dizer que é pai ou mãe de um cachorro faz todo o sentido. Pelo menos do lado do cão”.

A ideia de família sustenta o argumento que Bradshaw defende incansavelmente ao longo das 329 páginas da obra: cães não gostam – nem têm – de apanhar. Pode parecer óbvio, mas há treinadores e donos que não pensam muito antes de usar a punição como instrumento na hora de educar um cão. Segundo o autor, isso é absolutamente desnecessário. Mais que isso, é improdutivo. “É um erro pensar que o cão vai se comportar melhor caso seja ‘dominado’. Eles podem até ser obedientes caso temam seus donos, mas vão ter um comportamento muito mais estável se amarem as pessoas com quem vivem e receberem de volta esse amor em forma de recompensa por bom comportamento.”
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CÃO DE GUARDA
Misto de maltês e shitzu, Mik livrou a comerciante Valéria Gomes e seu marido de uma
tentativa de assalto. O cãozinho é tão calmo que convive pacificamente com a gata Nanda
Outra celebridade da literatura canina, a americana Alexandra Horowitz, autora de “A Cabeça do Cachorro” (editora Best Seller), endossa a tese: “A punição não pode ser uma ferramenta. Cães aprendem de uma maneira mais rápida e feliz por meio do reforço positivo (leia-se recompensas). Ao usar a violência, a única coisa que ensina ao cão é que você precisa ser temido”, diz Alexandra, que é professora de psicologia no Barnard College, da Universidade de Colúmbia, nos EUA. Educar um cão dá trabalho.

E, por meio do uso das recompensas, o tempo de treinamento pode ser até maior que o das técnicas baseadas na punição. Mas, de acordo com os estudos apresentados por Bradshaw, os resultados são mais consistentes e melhoram a saúde emocional do cão. Mesmo assim, muita gente ainda educa o seu bicho usando recursos verbal ou fisicamente violentos. Segundo o autor, alguns dos grandes incentivadores de técnicas punitivas são os programas de tevê de treinadores, como o mexicano Cesar Millan, apresentador de “O encantador de cães”, exibido pelo canal pago Animal Planet. “Essas atrações dependem de tensão para magnetizar os espectadores. E, aí, uma certa dose de punição e até violência aparece. Me incomoda muito o fato de gente como ele não colocar qualificações acadêmicas em seus sites.”

É justamente com o que recolhe na academia que Bradshaw tenta responder à pergunta central do seu livro: como os cães aprendem? Várias páginas são ocupadas para exibir estudos comprovando que o prazer ensina muito mais que a dor. Esta última, em vez de aprendizado, pode gerar confusões na cabeça do cão. A obra traz o exemplo de um sujeito que recolheu na rua o cachorrinho de uma vizinha. Ao receber seu bichinho de volta, a dona passou a pressionar um controle remoto que dava choques no bicho enquanto gritava “cão mau, cão mau”.
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"Programas como o de Cesar Millan dependem de tensão
para magnetizar os espectadores. E, aí, uma certa dose de
punição 
e até violência é necessária. Me incomoda muito o
fato de ele não colocar qualificações acadêmicas em seu site"

John Bradshaw, diretor do departamento de antrozoologia
da Universidade de Bristol e autor de "Dog Sense"
Em vez de aprender que estava sendo punido por escapar do quintal de casa, o animal passou a associar qualquer vizinho ou desconhecido como um potencial gerador de novos choques. Além da punição e da recompensa, há uma terceira via: “Cães aprendem com outros cães, embora os cientistas ainda não saibam exatamente como. Os cachorros não são aptos a copiar com precisão o comportamento alheio, mas certamente são fascinados por qualquer atividade que os outros cães estejam executando”.

Somado ao instinto, talvez isso explique a bravura de Mik, um misto de maltês com shitzu que pesa cerca de 1,5 kg. Na Páscoa do ano passado, o casal de comerciantes Valéria Gomes e Ismar Braga, donos do cão, distribuiu, a partir da janela de sua picape Toyota Hilux, ovos de chocolate a crianças em uma alça de viaduto na avenida do Estado, em São Paulo. Apesar de o carro estar todo cercado por estranhos, o cãozinho só se destemperou quando um sujeito abriu a porta do carro para assaltar o casal. Foi pra cima e conseguiu afugentar o bandido. “Até nós ficamos surpresos com a reação do Mik. Ele sempre foi educado, pacífico. Cresceu sem apanhar ou levar grandes broncas”, diz Valéria. Mais um sinal de que, para termos o melhor da nossa amizade com os cães, o jeito é muito mais eficaz que a força.
Edson Franco
Revista Isto É
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