A cada dia, os profissionais da saúde tomam consciência de que a dor é uma manifestação que precisa de tratamento.
Dr. Durval Kraychete – CRM-BA 10.486 - Doutor em Medicina e Saúde (entrevista)
As queixas dolorosas dos pacientes ganharam relevância; afinal, é por meio desses relatos que problemas mais sérios ou complicações pós-cirúrgicas podem ser detectados.Nos últimos dez anos, a medicina deu bons passos em relação ao tratamento da dor. Hoje, o assunto é mais bem compreendido pelos profissionais da área. As pesquisas continuam, mas o arsenal terapêutico disponível para analgesia é bastante significativo. Entre as ferramentas farmacológicas, estão os opioides, medicamentos de grande potencial que podem ser associados a outras substâncias para sinergia e melhor resultado terapêutico.
Sabemos que hoje a dor é vista e tratada de forma diferente do que era há alguns anos.
Em sua opinião, já estamos no caminho certo do manejo da dor?
Sim. Estamos melhores, mais conscientes de que o manejo inadequado da dor pode causar diversas perdas, tanto no convívio social quanto nas capacidades cognitiva e laboral e na qualidade de vida em geral, fato que gera consequências, muitas vezes, irreversíveis.
A atuação da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) na conscientização dos profissionais da saúde sobre o problema, promovendo educação continuada – no intuito de esclarecer sobre a abordagem do sintoma, incluindo a aplicação de questionários específi cos para a avaliação e mensuração da dor –, instrumentalizando o médico para diagnosticar o fator etiológico nas síndromes dolorosas agudas e crônicas e utilizando o exame físico e os complementares, favoreceu em muito o tratamento adequado da dor, tanto farmacológico quanto não farmacológico. Lembrando, também, que a complexidade do sintoma demanda atuação conjunta multidisciplinar, já que o cotidiano do paciente com dor demanda assistência para reabilitação funcional e psíquica.
Poderia fazer um balanço dos principais avanços dos últimos dez anos no tratamento da dor?
Os principais avanços ocorreram inicialmente em nível experimental. As pesquisas em torno da anatomia, da fisiopatologia e da farmacologia da dor forneceram substratos para a descoberta das vias de transmissão e de modulação da dor e dos mecanismos envolvidos na sensibilização periférica e central, como os neurotransmissores, os neuromoduladores, os canais iônicos, os receptores e os transcritores gênicos. Desse modo, foram desenvolvidos fármacos que atuam evitando a transmissão dolorosa e elaborados ensaios clínicos, avaliando-se a eficácia de diversos agentes. Uma grande variedade de analgésicos simples, anti-inflamatórios, opioides, anestésicos locais, alfa-agonistas, cetamina, anticonvulsivantes e antidepressivos
foi amplamente utilizada na dor inflamatória ou neuropática com bons resultados.
Por outro lado, houve avanço na utilização de métodos não farmacológicos invasivos, ou não, como as técnicas neurocirúrgicas (estimulação de córtex motor; implantação de eletrodos e bombas de infusão ao nível central ou periférico; emprego de cirurgias ablativas, como a lesão de zona de entrada na raiz dorsal), os métodos de estimulação transcraniana, a acupuntura, a terapia cognitiva comportamental entre outros, incluindo também os tratamentos psíquico, nutricional e a reabilitação física.
Dentre os avanços citados, o senhor destacaria algum ponto que considera mais importante?
A dor é uma síndrome complexa; o mais importante é conhecê-la, dissecar com sabedoria seus elementos. Assim a educação continuada torna-se a arma mais poderosa para o terapeuta que quer lidar com o grande desafio de tratar a dor aguda e crônica.
O uso dos medicamentos opioides pode ser considerado uma evolução também?
Claro que sim. O médico brasileiro prescreve bem mais opioides que prescrevia anteriormente. O Brasil já esteve no posto de país que consome poucos opioides no mundo. Entretanto, à medida que a dor aguda e a dor crônica foram sendo esclarecidas, esse cenário mudou totalmente.
Além disso, desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) instituiu regras para o controle da dor e estabeleceu a necessidade de incluir sua avaliação como quinto sinal vital para a acreditação hospitalar, houve uma maior divulgação entre os profissionais. Afinal a dor existe enquanto entidade clínica e deve ser tratada adequadamente. Assim ficou esclarecido que os opioides são o padrão-ouro no tratamento da
dor moderada a intensa e, quando bem indicados, com seu emprego monitorado, podem ser manuseados com tranquilidade. Isso implica tratamento dos efeitos adversos, rotação de opioides e mudança de via de administração. Os opioides têm segurança comprovada se bem administrados.
O senhor acredita que ainda há preconceito em relação a essa medicação? Como o senhor vê essa questão?
Sim, existe ainda muito preconceito. Há um medo maior de dependência química e de depressão respiratória. Existe tanto pânico sobre essa questão que vemos equívocos muitas vezes surpreendentes. Por exemplo, se o paciente toma morfina no pós-operatório de histerectomia total ampliada e evolui com sonolência e desorientação, os médicos nunca pensam em causa metabólica.
O que garante que o paciente não está com insuficiência renal no curso de ligadura inadvertida de ureter?
Fatos como esse são comuns. Os opioides tornam-se um grande vilão, o que atrapalha a avaliação diagnóstica. Por isso, é necessário esclarecer o que é a dor, o que é utilizar opioides e valorizar os benefícios da técnica. Entre os conceitos utilizados atualmente está a analgesia multimodal.
Nesse sentido, o uso de associações medicamentosas, especialmente aquelas que já veem prontas em um mesmo comprimido, como o paracetamol / codeína, é uma ferramenta útil para o tratamento da dor? Há mesmo melhora da adesão ao tratamento?
O conceito de analgesia multimodal foi desenvolvido em torno da dor pós-operatória. Essa técnica considera o emprego da associação de substâncias que atuam em diferentes locais da transmissão dolorosa no sistema nervoso periférico e central, de forma a proporcionar analgesia de boa qualidade e evitar
efeitos colaterais. Isso, por conta da redução da dose individual dos fármacos, por efeito aditivo ou sinérgico. Dessa forma, a associação paracetamol / codeína é útil no tratamento da dor, pois é eficaz para dores de intensidade moderada de característica nociceptiva com efeito poupador de opioides. Isso reduz
a ocorrência de naúsea, vômito, obstipação intestinal, sonolência, prurido e outros efeitos adversos que, com certeza, interferem em adesão ao tratamento.
O senhor tem experiência com o uso da associação paracetamol / codeína? Em que casos costuma indicá-la?
A maioria dos médicos bem treinados utiliza essa associação com tranquilidade. Isso requer conhecimento técnico de farmacologia (farmacodinâmica e cinética). Desse modo, esse medicamento é seguro, de fácil aplicação e poucos efeitos adversos. Devemos ter cuidado com os extremos de idade (crianças e idosos) e utilizar doses adequadas à condição física do paciente. Essa associação está indicada no tratamento da dor aguda de pós-operatório de cirurgias de pequeno ou médio porte, nas lombalgias, nas cervicalgias, nas cefaleias, nas crises falcêmicas, na dor de câncer, desde que não exista contraindicação para esses fármacos e que não ultrapasse a dose tóxica de ambos os medicamentos.
Os opioides poderiam ser utilizados com mais frequência? Isso poderia ampliar as possibilidades de tratamento e melhorar os resultados terapêuticos do manejo da dor ?
Claro que sim. Como frisei anteriormente, o tratamento da dor crônica ou de câncer seguramente envolve o uso prolongado de opioides. O conhecimento de conceitos relacionados à tolerância (redução do efeito do fármaco, independentemente do aumento da dose), à dependência química (abstinência), à rotação de opioides, além da monitoração de efeitos adversos comuns relacionados ao emprego desses agentes, é fundamental para reduzir a fobia relacionada à prescrição de opioides. Assim a educação continuada pode reduzir o medo de dependência química e de efeitos colaterais graves, como a depressão respiratória, tanto do prescritor quanto do paciente e dos familiares. Lembrando que esses efeitos adversos são de ocorrência pequena até entre os usuários crônicos.
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