Documentário exibido nos EUA revela os sérios danos neurológicos sofridos pelos jogadores de futebol americano
O futebol americano, conhecido nos Estados Unidos simplesmente como football ("futebol", em português),1 e em alguns outros países de língua inglesa como gridiron,2 é um desporto de equipe e de contato que surgiu de uma variação do rugby e que recompensa a velocidade,
agilidade, capacidade tática e força bruta dos jogadores que se
empurram, bloqueiam e perseguem uns aos outros, tentando fazer avançar
uma bola em
território inimigo durante uma hora de tempo de jogo, que se transforma
em três ou quatro de tempo real. É frequente ver no futebol americano
uma metáfora para a guerra, com muita violência pessoal a ter lugar dentro do campo, com jogadores pesando 150 kg
ou mais a empurrar-se mutuamente com cada grama do seu peso, e com uma
linha de frente claramente definida, que se move para trás e para a
frente ao longo do campo, separando as equipes de ataque e defesa.
Artigo - Dorrit Harazim
Artigo - Dorrit Harazim
Paul Oliver tinha 29 anos quando se matou com um tiro na cabeça, três
semanas atrás. Ray Easterling tinha 62 ao se suicidar em abril de 2012.
Um mês depois, foi Junior Seau, de 43 anos, que despencou com seu
Cadillac SUV de um barranco, sobreviveu, mas conseguiu tirar a própria
vida com um tiro de fuzil, em casa. André Waters tinha só 44 anos quando
se suicidou e Terry Long mal chegara aos 45 ao ingerir substância
venenosa para não mais se atormentar.
Dave Duerson, de 50 anos, que se fuzilou dois anos atrás, teve o cuidado de atirar no peito para deixar a cabeça intacta. Despedira-se dos familiares através de uma mensagem SMS na qual pedia que seu cérebro fosse encaminhado a um centro de pesquisa específico da Escola de Medicina da Boston University.
Todos eram ex-jogadores profissionais de futebol americano, veteranos de um dos 32 times da National Football League (NFL), a poderosa e bilionária entidade que rege o esporte mais popular nos Estados Unidos. Todos sofriam de encefalopatia traumática crônica (ETC), doença neurodegenerativa progressiva causada por repetidos golpes na cabeça. Seus sintomas incluem mudança de personalidade, perda de memória, depressão, demência e comportamento errático.
As consequências dos impactos inerentes ao tipo de esporte de contato que é o futebol americano vêm sendo estudadas, apontadas e denunciadas há mais de uma década. E por mais de uma década a NFL tem conseguido protelar o pleno reconhecimento de que há uma relação de causa e efeito.
Mesmo quando aceitou pagar US$ 765 milhões de indenização aos 4.500 jogadores aposentados que moveram uma ação contra a entidade. Pelos termos do acordo, selado dois meses atrás, o pagamento de indenização não representa admissão de culpa por parte da NFL. Ele também exime a Liga de revelar o que sabia e desde quando sabia das consequências das concussões. Sobretudo, alivia a entidade processada por quase um quarto de seus ex-atletas de explicar por que nada fez para informar e alertá-los dos riscos.
Um extraordinário documentário de duas horas, intitulado “League of Denial”, exibido esta semana pela rede pública PBS (programa “Frontline”), retomou o tema de forma seminal. E demonstrou a força do jornalismo investigativo à moda antiga. Baseado no livro homônimo dos irmãos Mark Fainaru-Wada e Steve Fainaru, ambos repórteres da ESPN, o programa exigiu dezoito meses de trabalho.
Nele, vê-se que Mike Webster, veterano do Pittsburgh Steelers, estava tão devastado pela demência no final da vida que tinha de ser imobilizado pela família com raios de pistola Taser para conseguir adormecer. Webster morreu em 2002, aos 50 anos. Foi o primeiro ex-atleta a ter o cérebro analisado por Bennet Omalu, pioneiro na pesquisa das sequelas neurodegenerativas relacionadas ao futebol americano, com diagnóstico póstumo de ETC.
À época, o patologista Omalu, nascido na Nigéria, foi prontamente acusado de praticar “medicina vodu” pela NFL. E uma comissão de investigação própria criada pela Liga, chefiada por um reumatologista, concluía que as lesões traumáticas sofridas no futebol americano não eram severas. Também atestava não haver risco significativo de um segundo dano na mesma partida ou ao longo da temporada caso um atleta voltasse a campo após sofrer uma concussão. As duas afirmações de 2002 se revelaram desastrosas. Foram necessários outros cinco anos de pressões e fatalidades até a Liga se assustar com o quadro e instituir um disque-denúncia caso um atleta seja obrigado a entrar em campo contra recomendação médica.
Mesmo assim, um banco de dados sobre concussões computou 160 jogadores vítimas de pancadas fortes na temporada 2012/2013, segundo relatórios oficiais dos times, o que significa um aumento de 12,7% em relação à temporada anterior. Pior: metade deles retornou a campo no jogo seguinte.
O Centro de Estudos de Encefalopatia Traumática da Boston University, para a qual o suicida Dave Duerson pedira que seu cérebro fosse enviado, encontrou a doença em 45 dos 56 cérebros de ex-jogadores da NFL estudados. “Receio que todo atleta da Liga possa estar sofrendo de alguma sequela decorrente das sucessivas pancadas. Me pergunto onde isso vai parar”, conclui sombriamente a chefe da equipe, a neurologista Anne McKee.
Até recentemente a Liga podia argumentar que a pesquisa era viciada pois os estudiosos tiveram acesso apenas a cérebros de atletas que haviam sofrido deterioração física extrema. E repisava problemas inerentes a diagnósticos póstumos.
Felizmente, desde janeiro deste ano, pesquisadores da Universidade da Califórnia (entre eles o “médico vodu” que já incomodava a NFL onze anos atrás) conseguiram pela primeira vez diagnosticar a ETC em pacientes vivos — cinco ex-jogadores da Liga, de idades entre 45 e 73 anos. Embora ainda em fase preliminar, o estudo piloto já é considerado uma espécie de Santo Graal para o futuro combate à doença.
Caso a NFL se dispusesse, ela poderia financiar este teste para todos os jogadores da Liga. Em valores de hoje, o custo global estimado de US$ 9,9 milhões seria equivalente a 0,1% de sua renda anual. Dinheiro nunca parece ser problema para a NFL. Vale lembrar que cada anúncio de 30 segundos no intervalo do Super Bowl, o jogo de final da temporada do ano, custa US$ 3,5 milhões. Trata-se da mais cobiçada vitrine publicitária do mundo.
Um diagnóstico em tempo real capaz de apontar a presença da proteína corrosiva causadora da ETC poderá ajudar atletas em atividade a decidir se querem parar para prevenir mais danos.
Ainda assim, para eles, será uma decisão a posteriori. É a garotada que inveja a saúde, a fama e a fortuna dos heróis da NFL que deveria assistir à “League of Denial”. E seus pais também.
Dorrit Harazim é jornalista
Dave Duerson, de 50 anos, que se fuzilou dois anos atrás, teve o cuidado de atirar no peito para deixar a cabeça intacta. Despedira-se dos familiares através de uma mensagem SMS na qual pedia que seu cérebro fosse encaminhado a um centro de pesquisa específico da Escola de Medicina da Boston University.
Todos eram ex-jogadores profissionais de futebol americano, veteranos de um dos 32 times da National Football League (NFL), a poderosa e bilionária entidade que rege o esporte mais popular nos Estados Unidos. Todos sofriam de encefalopatia traumática crônica (ETC), doença neurodegenerativa progressiva causada por repetidos golpes na cabeça. Seus sintomas incluem mudança de personalidade, perda de memória, depressão, demência e comportamento errático.
As consequências dos impactos inerentes ao tipo de esporte de contato que é o futebol americano vêm sendo estudadas, apontadas e denunciadas há mais de uma década. E por mais de uma década a NFL tem conseguido protelar o pleno reconhecimento de que há uma relação de causa e efeito.
Mesmo quando aceitou pagar US$ 765 milhões de indenização aos 4.500 jogadores aposentados que moveram uma ação contra a entidade. Pelos termos do acordo, selado dois meses atrás, o pagamento de indenização não representa admissão de culpa por parte da NFL. Ele também exime a Liga de revelar o que sabia e desde quando sabia das consequências das concussões. Sobretudo, alivia a entidade processada por quase um quarto de seus ex-atletas de explicar por que nada fez para informar e alertá-los dos riscos.
Um extraordinário documentário de duas horas, intitulado “League of Denial”, exibido esta semana pela rede pública PBS (programa “Frontline”), retomou o tema de forma seminal. E demonstrou a força do jornalismo investigativo à moda antiga. Baseado no livro homônimo dos irmãos Mark Fainaru-Wada e Steve Fainaru, ambos repórteres da ESPN, o programa exigiu dezoito meses de trabalho.
Nele, vê-se que Mike Webster, veterano do Pittsburgh Steelers, estava tão devastado pela demência no final da vida que tinha de ser imobilizado pela família com raios de pistola Taser para conseguir adormecer. Webster morreu em 2002, aos 50 anos. Foi o primeiro ex-atleta a ter o cérebro analisado por Bennet Omalu, pioneiro na pesquisa das sequelas neurodegenerativas relacionadas ao futebol americano, com diagnóstico póstumo de ETC.
À época, o patologista Omalu, nascido na Nigéria, foi prontamente acusado de praticar “medicina vodu” pela NFL. E uma comissão de investigação própria criada pela Liga, chefiada por um reumatologista, concluía que as lesões traumáticas sofridas no futebol americano não eram severas. Também atestava não haver risco significativo de um segundo dano na mesma partida ou ao longo da temporada caso um atleta voltasse a campo após sofrer uma concussão. As duas afirmações de 2002 se revelaram desastrosas. Foram necessários outros cinco anos de pressões e fatalidades até a Liga se assustar com o quadro e instituir um disque-denúncia caso um atleta seja obrigado a entrar em campo contra recomendação médica.
Mesmo assim, um banco de dados sobre concussões computou 160 jogadores vítimas de pancadas fortes na temporada 2012/2013, segundo relatórios oficiais dos times, o que significa um aumento de 12,7% em relação à temporada anterior. Pior: metade deles retornou a campo no jogo seguinte.
O Centro de Estudos de Encefalopatia Traumática da Boston University, para a qual o suicida Dave Duerson pedira que seu cérebro fosse enviado, encontrou a doença em 45 dos 56 cérebros de ex-jogadores da NFL estudados. “Receio que todo atleta da Liga possa estar sofrendo de alguma sequela decorrente das sucessivas pancadas. Me pergunto onde isso vai parar”, conclui sombriamente a chefe da equipe, a neurologista Anne McKee.
Até recentemente a Liga podia argumentar que a pesquisa era viciada pois os estudiosos tiveram acesso apenas a cérebros de atletas que haviam sofrido deterioração física extrema. E repisava problemas inerentes a diagnósticos póstumos.
Felizmente, desde janeiro deste ano, pesquisadores da Universidade da Califórnia (entre eles o “médico vodu” que já incomodava a NFL onze anos atrás) conseguiram pela primeira vez diagnosticar a ETC em pacientes vivos — cinco ex-jogadores da Liga, de idades entre 45 e 73 anos. Embora ainda em fase preliminar, o estudo piloto já é considerado uma espécie de Santo Graal para o futuro combate à doença.
Caso a NFL se dispusesse, ela poderia financiar este teste para todos os jogadores da Liga. Em valores de hoje, o custo global estimado de US$ 9,9 milhões seria equivalente a 0,1% de sua renda anual. Dinheiro nunca parece ser problema para a NFL. Vale lembrar que cada anúncio de 30 segundos no intervalo do Super Bowl, o jogo de final da temporada do ano, custa US$ 3,5 milhões. Trata-se da mais cobiçada vitrine publicitária do mundo.
Um diagnóstico em tempo real capaz de apontar a presença da proteína corrosiva causadora da ETC poderá ajudar atletas em atividade a decidir se querem parar para prevenir mais danos.
Ainda assim, para eles, será uma decisão a posteriori. É a garotada que inveja a saúde, a fama e a fortuna dos heróis da NFL que deveria assistir à “League of Denial”. E seus pais também.
Dorrit Harazim é jornalista
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