Aquecimento global
O vegetarianismo pode salvar o mundo?
Cientistas propõem que três quartos do consumo atual de carne sejam cortados para que todos tenham o que comer no futuro. Mas será que a humanidade pode abrir mão da carne?
Guilherme Rosa
Dê adeus a esta cena: pesquisadores dizem que a criação de animais consome água demais
(Thinkstock)
Entre as saídas apresentadas estavam a irrigação mais eficiente, menor desperdício de água e novos sistemas de alerta e legislação. Apesar da viabilidade dessas ideias, elas não seriam suficientes sem uma última medida: a humanidade deveria tomar o caminho do vegetarianismo. Quem come um pedaço de bife no almoço e outro no jantar passaria a ter direito a meio bife por dia. Mas será que isso é realmente necessário? Será que é viável?
Quanto à necessidade de medidas rápidas, não restam dúvidas. "O acesso à água já é um problema para um bilhão de pessoas. E com o aquecimento global isso tende a piorar, já que ele vai alterar os padrões de chuva e aumentar os eventos climáticos extremos", diz Jan Lundqvist, cientista do Instituto Internacional da Água de Estocolmo e um dos pesquisadores presentes no encontro (veja a entrevista completa). Segundo o pesquisador, a quantidade de água disponível no planeta não deve mudar muito no futuro. No entanto, a população vai crescer — seremos 9 bilhões em 2050 — e os países mais pobres tendem a alcançar os padrões de consumo dos mais desenvolvidos.
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Comida é água — No relatório produzido para a Semana Mundial da Água, a pesquisadora Malin Falkenmark, do Instituto Internacional da Água de Estocolmo, calculou a quantidade de comida necessária para alimentar toda a população do planeta em 2050. Ela estimou que, mantidos os padrões de dieta atuais, que registram o consumo de 3.000 calorias por dia, sendo 20% delas vindas da carne, não haverá comida para todos. Segundo seus cálculos, esse consumo diário de calorias só será viável se a quantidade de carne for reduzida para 5%.
A estimativa se apoia na idea de que grande parte dos pastos do mundo é usada para produzir comida para bois, porcos e galinhas. Ou seja, esses animais criados para abate são grandes consumidores de recursos hídricos. Segundo a Water Footprint Network, uma organização que reúne pesquisas sobre o consumo hídrico de diversos produtos, cada quilo de carne bovina precisa de 15.415 litros de água para ser produzida. Porcos e frangos gastam um pouco menos, consumindo respectivamente 6.000 e 4.300 litros por quilo. Já o alface consome 240 litros por quilo, o tomate, 214, e a batata, 290.
Uma pesquisa publicada pelo Instituto de Educação da Água, da Unesco, em 2002, mostrou que, de toda água que é usada para produzir comida, 29,6% vai para a carne, 23,8% para os cereais e 4,4% para legumes. No entanto, somente 15,3% do consumo humano de proteínas vem da carne, enquanto 19,2% vem dos legumes e 48,2% dos cereais. É por isso que, do ponto de vista do consumo de água, faria sentido abolir os churrascos.
Carnívoros desde criança — A relação dos homens com a carne é muito antiga e está registrada nas paredes das cavernas – as pinturas rupestres são provas da importância dada aos animais pelos nossos ancestrais. "Sociedades que não consomem carne são extremamente raras. Antes mesmo da domesticação, a consumíamos por meio da caça", diz Rui Murrieta, professor de antropologia evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. "Inclusive, a gordura da carne pode estar relacionada ao crescimento do cérebro humano, e isso ajudou no desenvolvimento de nossa espécie."
Atualmente, porém, graças aos conhecimentos sobre nutrição, é possível encontrar substitutos para as substâncias presentes na carne. "O problema da dieta vegetariana é que ela é muito mais complexa. A quantidade de alimentos que serão misturados no prato tem de ser maior, para garantir a presença de todos os nutrientes", diz Murrieta.
Os nutricionistas não recomendam que crianças em fase de crescimento sejam privadas dos nutrientes animais em nenhuma circunstância. Mesmo para adultos, uma dieta exclusivamente vegetariana traz riscos se não for bem planejada. A vitamina B12, por exemplo, é de origem animal e não está presente em nenhum vegetal. E ela é essencial para a formação do sangue e o funcionamento do sistema nervoso. "Quem só se alimentar de vegetais terá que tomar suplementos da vitamina periodicamente para suprir a carência alimentar", diz Sonia Trecco, nutricionista do Hospital das Clínicas.
Os vegetais também apresentam ferro em menor quantidade e qualidade que a carne. "O ferro que vem dos animais tem um melhor aproveitamento pelo organismo", diz Eneida Ramos, nutricionista do Hospital Albert Einstein e colunista do site de VEJA. Sem o seu consumo regular, podem aparecer anemia, quedas de cabelo, fraquezas e aumento na quantidade de infecções.
Para driblar esses problemas, o conhecimento é essencial. "As pessoas têm de ser orientadas caso queiram reduzir o consumo de carne. O ferro pode ser substituído por um aumento no consumo de ovo, feijão, soja e vegetais folhosos escuros, como couve, agrião e rúcula", diz Sonia Trecco. Com uma orientação nutricional adequada, seria possível, em tese, abrir mão do bifinho diário.
Cortando na carne – Alguns especialistas dizem, no entanto, que o corte na quantidade de carne consumida pode não ser necessário na quantidade calculada pelos pesquisadores. "O ano de 2050 está muito distante para fazer previsões tão exatas. Existem muitos fatores diferentes. Ao mesmo tempo em que destruímos nascentes e expandimos as áreas urbanas, estamos começando a nos preocupar com a sustentabilidade, a planejar o uso e ocupação do solo", diz Sâmia Tauk-Tornisielo, pesquisadora do Centro de Estudos Ambientais da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Ainda assim, ela acredita que, em algum momento, será necessário diminuir a quantidade de carne consumida, mesmo que não passemos para uma dieta exclusivamente vegetariana. Segundo o professor Rui Murrieta, se esse momento chegar, ele será dolorido. "Sabemos que as sociedades nunca estão prontas para mudanças em sua culinária. Mas nossa vontade de sobreviver tem que ser maior que o amor a determinados pratos."
"Se seguirmos a tendência atual, teremos um futuro dramático e desagradável"
Jan Lundqvist
Pesquisador do Instituto Internacional da Água de Estocolmo e autor de um dos estudos publicados no relatório da Semana Mundial da Água
Pesquisador do Instituto Internacional da Água de Estocolmo e autor de um dos estudos publicados no relatório da Semana Mundial da Água
Porque os senhores acham que vai faltar água no futuro? A quantidade de água no planeta será a mesma por um bom tempo. Mas o número de pessoas está crescendo. Com a melhora no nível de vida, o consumo de comidas que consomem muita água, como a carne, só tende a aumentar. Além disso, o acesso à água já é um problema para um bilhão de pessoas. E com o aquecimento global isso tende a piorar, já que ele vai alterar os padrões de chuva e aumentar os eventos climáticos extremos. O risco de grandes tempestades ou secas são significativos para os fazendeiros. As colheitas vão variar a cada ano.
O que é possível fazer para evitar isso? É essencial que busquemos a eficiência no uso da água. Temos que garantir uma colheita maior a cada gota usada. Além disso, temos que reduzir as perdas e desperdícios de comida que acontecem desde o campo até a mesa – não é nada responsável permitir que um terço do que é produzido vá pelo ralo. Por fim, temos que incentivar uma dieta balanceada e em harmonia com os recursos naturais. Tanto a natureza quanto nosso corpo sofrem as consequências da alimentação inadequada.
O que o senhor pensa sobre o estudo publicado no relatório da Semana Mundial da Água que afirma que devemos reduzir nosso consumo de carne? Temos que ser cuidadosos nisso. Quando falamos sobre o consumo de carne, não necessariamente estamos falando da quantidade de carne ingerida. Podemos estar falando na quantidade produzida. Diminuir as perdas na cadeia de produção, nos depósitos e restaurantes pode fazer com que a quantidade de carne a ser cortada da alimentação seja menor. Além disso, a carne é produzida de modo diferente em vários lugares do mundo, e será afetada de modo diferente também. A produção dos vegetais que alimentam os animais é diferente se a colheita é regada pelas chuvas ou irrigada. Há várias áreas no mundo onde a criação de animais é possível, mas a produção outros produtos agrícolas não é.
Quais podem ser as consequências de não mudar nossos hábitos? Se seguirmos a tendência atual, teremos um futuro dramático e desagradável. Seguindo esse caminho, a competição pela água pode aumentar, intensificando conflitos e afetando um grande número de pessoas. Ninguém quer esse tipo de futuro. Mas poucas coisas não são estáticas no mundo. As pessoas mudam, os negócios, as lideranças políticas e nosso conhecimento mudam. A tecnologia pode nos ajudar a reduzir essas ameaças, mas também pode torná-las piores. No final das contas, tudo depende da vontade humana.
No Brasil, nós temos muitas reservas de água. Devemos nos preocupar com essa questão? Nós vivemos em um mundo globalizado e dividimos o mesmo futuro. As mudanças climáticas — ou mudanças na água — vão nos afetar a todos, de vários jeitos. Do mesmo modo, nossas ações conjuntas também podem afetar o clima.
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