Se o futuro aguarda por outros desafios da Ação Penal 470, o presente oferece bons motivos para comemorar. Há novo oxigênio em Brasília
Aprovada por 6 votos a 5, a aceitação dos embargos infringentes para 12 réus da ação penal 470 trará os benefícios saudáveis de uma vitória da democracia. Ninguém sabe, agora, como o STF irá examinar os pleitos de cada um dos condenados nem quantos poderão receber benefícios que podem ser considerados legais.
Mas o debate sobre os embargos não era uma decisão corriqueira do
tribunal. Continha um risco político que não pode ser desprezado.
A simples hipótese do Supremo se recusar a aplicar um direito legal
garantido pelo Congresso em deliberação de 1998 iria criar uma situação
esdrúxula. Num país onde a Constituição reserva aos parlamentares o
direito de elaborar as leis, e à Justiça a missão de aplicar o que os
legisladores aprovaram, teríamos um Supremo capaz de se considerar no
direito de seguir essa regra apenas quando optasse por fazer isso. Em
outras ocasiões, se dedicariam a reelaborar os ordenamentos do país,
mesmo sem dispor de mandato popular para tanto.
O nome disso nem é mais judicialização. Equivaleria a uma agressão
direta à democracia, capaz de criar uma situação instável e perigosa,
ainda que pudesse ter aparência de normalidade porque resolvida por
senhores de togas negras, senhos franzidos e linguagem que nem todo
mundo entende.
O último voto foi dado pelo ministro Celso de Mello e é preocupante
que o saldo final tenha sido marcado por uma diferença tão estreita.
Assuntos mais polêmicos, que tinham menos impacto direito como as
garantias fundamentais, e que geravam compreensível polêmica em vários
setores da vida social, como cotas raciais e as uniões homoafetivas,
foram aprovadas por unanimidade.
Até o último dia, era possível ler apelos nos meios de comunicação
para que o ministro ignorasse a legislação em vigor. Confundindo a
realidade com seus desejos, colunistas ameaçavam com “as ruas” e “o
monstro.” Nem os cidadãos foram mobilizados. Nem o ministro ficou
acovardado, como se pretendia.
Como o próprio Celso de Mello fez questão de demonstrar, nenhum dos
argumentos levantados contra os embargos poderia sobreviver a uma
análise serena e consistente. Ele respondeu à tese da “multidão” ao
lembrar que a imparcialidade, a isenção e independência de um juiz
dependem de sua capacidade para distanciar-se dessas pressões para tomar
decisões de acordo com sua consciência e suas convicções,
exclusivamente. A tese de que havia um vazio jurídico perdeu sentido
quando se verificou que o assunto fora debatido e resolvido pelo
Congresso há mais de uma década e nunca mais se falou disso. A visão de
que os embargos seriam uma porta aberta para a impunidade dos condenados
comprovou-se puro absurdo. O ministro recordou que os condenados não
terão direito a um segundo grau de jurisdição – garantia elementar não
só das leis brasileiras, mas também da jurisprudência da Corte de Costa
Rica, à qual nossa Constituição está subordinada, por decisão do próprio
Congresso Nacional.
Numa intervenção precisa, em que se dirigiu de forma explícita ou
implícita a cada um de seus adversários, naquele tom de quem tem
autoridade para olhar no olho de cada integrante do plenário, Celso de
Mello foi simples e profundo quando recordou: “Nada se perde quando se
respeitam e se cumprem as leis da Constituição da República.”
O país perderia muito caso o dia tivesse terminado com um ato de
desrespeito à democracia. Se o futuro aguarda por outros desafios da
Ação Penal 470, o presente oferece bons motivos para comemorar. Há novo
oxigênio em Brasília.
Paulo Moreira Leite
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