José Graziano
Diretor-geral da ONU para a Alimentação e a Agricultura, o brasileiro diz que 900 milhões de pessoas passam fome no mundo por falta de acesso à comidapor Rachel Costa
“A FAO é como o Titanic, um navio
grande e pesado. Estamos no processo
de girar essa embarcação”, diz ele
"As práticas e os padrões de consumo são
insustentáveis. Hoje, usamos 15 mil litros de
água para produzir um quilo de carne"
"Bill Gates disse que todo o sistema de governança da
agricultura e da alimentação global é obsoleto e ineficiente.
A afirmação é radical, mas concordo com ele"
Istoé -
Não temos tido muitos avanços nas conferências sobre as mudanças climáticas. Devemos esperar mais êxito da Rio+20?
José Graziano -
Vejo a Rio+20 não como um
ponto de chegada, mas de partida para um mundo mais sustentável. Será
uma oportunidade para fazer convergir as agendas da mudança climática,
da sustentabilidade e da segurança alimentar. Essas agendas precisam
estar interconectadas porque não vamos chegar a lugar nenhum enquanto
900 milhões de pessoas estiverem sobrevivendo com fome.
Istoé -
Por que é importante discutir a fome no contexto ambiental?
José Graziano -
Mais de 70% da população
extremamente pobre vive em áreas rurais e depende do uso de recursos
naturais para garantir o pão de cada dia. Você não pode pedir a esses
pequenos produtores que não derrubem uma árvore para produzir lenha,
deixem de fazer uma queimada para preparar o solo para o plantio ou
parem de pescar na época do defeso. Não sem lhes dar uma opção.
Istoé -
As mudanças climáticas são realmente um ponto-chave?
José Graziano -
Sim. O mundo está contra a
parede. Não há como negá-las, elas são uma realidade. Basta ver as ilhas
do Pacífico, cujo nível do mar sobe perigosamente, ou as ilhas do
Caribe e da América Central, onde já está instituída a temporada de
furacões. Isso acontece por causa de práticas e padrões de consumo
insustentáveis e que precisamos mudar. Por exemplo, hoje, usamos 1,5 mil
litros de água para produzir um quilo de cereais e dez vezes mais, 15
mil litros, para produzir um quilo de carne. Não poderemos alimentar
nove bilhões de pessoas com esse padrão em 2050.
Istoé -
Um dos riscos anunciados
causados pelas alterações no clima nas últimas décadas é a escassez de
alimentos, com posterior subida de preços. Essa é realmente uma ameaça?
José Graziano -
Não existe ameaça de
escassez. Já temos, hoje, comida suficiente para alimentar toda a
população do planeta. O problema que ainda afeta 900 milhões de pessoas é
o acesso: as pessoas têm fome porque lhes faltam meios para obter os
alimentos ou dinheiro para comprá-los.
Istoé -
Se a questão não é a produção, qual é o problema?
José Graziano -
O principal desafio é
garantir as condições que permitam o acesso de todos aos alimentos.
Naturalmente, porém, há também a pressão pelo aumento da produção. A FAO
estima que teremos de crescer a produção agrícola em 60% até 2050,
quando a população mundial deverá ultrapassar a marca dos nove bilhões
de pessoas.
Istoé -
É possível promover esse aumento de 60% na produção até 2050 de maneira sustentável?
José Graziano -
Sim. Os sistemas de
produção que causam menor impacto ao meio ambiente já existem e são
acessíveis ao pequeno produtor. Exemplos são o cultivo direto, os
sistemas agroflorestais, o controle biológico de pragas e a irrigação
por gotas. A questão, porém, não se restringe apenas à produção: é
preciso pensar o consumo e reduzir o desperdício.
Istoé -
Qual o impacto do consumo descontrolado e do desperdício sobre a fome?
José Graziano -
Ao mesmo tempo que há 900
milhões de pessoas subnutridas, outras centenas de milhões sofrem de
sobrepeso e obesidade. Além disso, entre a produção e o consumo,
perde-se anualmente cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos.
Istoé -
O fundador da Microsoft,
Bill Gates, defendeu num evento o uso de tecnologia para aliviar a fome
no mundo e criticou a FAO por ser um órgão obsoleto. O que o sr. tem a
dizer?
José Graziano -
Estive com ele nesse
evento, em Roma, e o recebemos aqui na FAO – temos um trabalho conjunto
com a Fundação Gates. O que ele disse é que todo o sistema de governança
da agricultura e da alimentação global – e isso inclui agências,
governos e doadores, não apenas a FAO – é obsoleto e ineficiente. A
afirmação é um pouco radical, mas em geral eu concordo com ele e estou
trabalhando para mudar a situação. Mas discordo que a solução da fome no
mundo seja basicamente um problema tecnológico.
Istoé -
Quais foram os principais desafios desses seis primeiros meses no cargo?
José Graziano -
A FAO é como o Titanic, um
navio grande e pesado. Estamos no processo de girar essa embarcação dois
graus à esquerda e estamos conseguindo. Mas, além das questões da
própria FAO, temos hoje desafios no combate à fome bem diferentes
daqueles do passado: já não basta apenas produzir mais, precisamos
produzir – e consumir – de maneira mais sustentável; não basta entregar
comida às famílias que vivem em áreas afetadas por secas e inundações, é
preciso aumentar a sua resistência a choques e melhorar os meios de
vida para que elas superem essas condições difíceis. São outras
exigências.
Istoé -
O último coordenador da
FAO, o senegalês Jacques Diouf, esteve à frente do órgão por mais de uma
década. Uma gestão tão longa engessou o órgão?
José Graziano -
Nos últimos 36 anos a FAO
teve apenas dois diretores-gerais. Com a reforma dos estatutos, agora só
é possível uma reeleição para um total de cinco anos, o que é positivo.
Além dessa questão, a FAO tem uma tendência de olhar para o próprio
umbigo. É ilusão, porém, achar que, sozinha, a FAO ou qualquer outro
organismo ou país vá acabar com a fome. Abrir a FAO a novos parceiros e
aprofundar a cooperação com outras agências tem sido uma prioridade
desde o primeiro dia do meu mandato.
Istoé -
Como a experiência com o Fome Zero ajuda na coordenação do órgão?
José Graziano -
Quase todos os líderes com
os quais eu converso querem conhecer mais o programa e saber como ele
pode ser adaptado às suas realidades. O Fome Zero é uma receita que deu
certo no Brasil e mostrou que se avança mais rápido no combate à fome
quando vontade política, mobilização social e políticas públicas
caminham juntas. A FAO pode ser uma plataforma para compartilhar essa
experiência com outros países.
Istoé -
A crise nos países ricos compromete as ações da FAO?
José Graziano -
De certa forma, sim. A FAO e
muitos outros organismos dependem de contribuições voluntárias para
responder a emergências. Por exemplo, em 2012, existe uma brecha de
financiamento de US$ 239 milhões para as atividades propostas para a
região do Chifre de África, no nordeste do continente, que há décadas
tem as piores taxas de fome e pobreza no mundo, e o Sahel, a zona de
transição entre o Saara e as savanas sudanesas. Isso tem nos obrigado a
buscar alternativas: novos doadores, mecanismos inovadores de
financiamento, a cooperação Sul-Sul.
Istoé -
O que pode ser feito de novo nessas regiões africanas para diminuir o problema?
José Graziano -
O Chifre de África e o
Sahel são áreas com secas recorrentes e não podemos evitá-las. Há,
porém, como impedir que elas se transformem em famine, quando há
escassez drástica de produtos alimentares. O problema é que, hoje,
muitas vezes, a comunidade internacional só reage quando as situações
críticas já se tornaram emergências. Precisamos parar com isso, parar de
pular de crise em crise tentando apagar o fogo.
Istoé -
O que fazer então?
José Graziano -
As secas vão continuar, o
que temos de fazer é mudar o modo de reagir a elas. Temos de colocar em
prática estratégias de longo prazo que diminuam a vulnerabilidade das
famílias rurais à estiagem. A FAO, junto do Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (Pnuma), do Unicef e de outros parceiros, tem
investido em mutirões de trabalho e programas de cupons de alimentos no
Chifre da África. Dentro dessa lógica, a comunidade local ajuda a
reconstruir a infraestrutura rural, construindo cisternas e canais de
água, ao mesmo tempo que se cria a oportunidade para as famílias
comprarem localmente a comida da qual precisam, o que estimula a
produção local, dinamizando a economia.
Istoé -
O continente africano pode ser autossustentável na produção de alimentos?
José Graziano -
Sim. O continente tem um
enorme potencial produtivo agrícola e todas as condições para produzir
comida em quantidade suficiente para alimentar toda a sua população.
Istoé -
Modificar vegetais geneticamente pode ser uma forma válida e de pouco custo para se erradicar a fome?
José Graziano -
Organismos geneticamente
modificados não são uma bala de prata para acabar com a fome, mas também
não devem ser descartados. Há um custo social, ambiental e econômico
embutido em sua produção, que precisa ser estudado. Não podemos jogar
fora o bebê junto com a água suja.
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