2.26.2014

Paco de Lucia - Entre dos aguas



Paco de Lucía: o (inesperado) eclipse de um gênio

Quando morreu Enrique Morente, em Dezembro de 2010, o mundo perdeu um revolucionário do flamenco. Agora que, inesperadamente, morre Paco de Lucía, perdeu outro. Um no cante e outro na guitarra, agitaram quietudes, mudaram mentalidades, sublimaram sons. Fizeram, ambos, o flamenco mais rico e mais universal sem perder o norte das suas raízes, e isso nenhuma morte poderá apagar.
Muitos terão começado a ouvir Paco de Lucía apenas depois da edição do célebre concerto que o juntou a Al di Meola e John McLaughlin em São Francisco, Califórnia, a 5 de Dezembro de 1980 (o disco, de 1981, chamou-se Friday Night In San Francisco). Mas já muito antes disso ele começara uma luminosa carreira ao lado do também genial Camarón de la Isla (1950-1992), que durou os discos suficientes até começar a sua própria carreira a solo, em 1977.
Em Portugal tocou várias vezes. Recordo uma delas, com um Coliseu de Lisboa rigorosamente cheio a vibrar com a agilidade das suas cordas, com a elegância e a cadência dos seus ritmos, com o seu fogo interior feito luz no suor do palco. Nas vésperas, disse Paco de Lucía a Fernando Magalhães, jornalista do PÚBLICO: “Quando chega o duende da inspiração tenho a sensação de que me vou, que saio fora de mim, que flutuo no ar”. E era essa a sensação que transmitia nos muitos palcos que felizmente pisava, como naquela noite lisboeta de 31 de Outubro de 1991.
Se o atraíam o jazz ou a música brasileira (nos discos que gravou com Al di Meola e McLaughlin, em 1981 e 1996, havia versões instrumentais de temas de Gismonti e Bonfá, respectivamente Frevo rasgado e Manhã de carnaval), foi a paixão do flamenco que norteou a sua carreira. Isso não o impediu de se aventurar em territórios clássicos (tocou apaixonadamente De Falla e o Concierto de Aranjuez, de Joaquín Rodrigo) ou até pela pop mais massificada (gravou com Bryan Adams), mas nada disso lhe ofuscou o brilho. Gravações de diferentes épocas testemunham, com escassos momentos menores, o génio que Paco de Lucía sempre foi. O seu eclipse é, pois, passageiro.



Paco de Lucía: morreu o guitarrista que universalizou o flamenco


A solo, com o seu sexteto, ou em colaborações, o guitarrista espanhol universalizou o flamenco, recriando-o e mesclando-o com outras sonoridades, mas sem nunca perder de vista a raiz fundadora do género. Paco de Lucía morreu esta quarta-feira aos 66 anos.
A cultura espanhola perdeu um dos seus pilares. Ele foi esse músico que, sem perder o contacto com a essência, foi capaz de mesclar o flamenco com outras sonoridades, principalmente com o jazz ou a bossa nova, embora os blues, a salsa, a música hindu ou a música árabe também o tenham marcado. Mas não foi apenas porque revestiu exteriormente o flamenco que se tornou imortal. Nunca é apenas por isso.
É também, e talvez ainda mais importante, porque possuía o alento interior, a inspiração, que lhe inflamava a alma, passando essa intensidade para os dedos e a guitarra de seis cordas que dedilhava como ninguém. Em Portugal, onde actuou por diversas vezes (a última das quais em 2007), era vê-lo, sentado, perna traçada, curvado sobre a sua guitarra, ora introspectivo, ora dinâmico e agitado, mas sempre apaixonado.
Até ao seu despontar o flamenco era rude e folclórico. Com ele tornou-se estilizado, elegante e elástico, numa reformulação que lhe atribuiu maior profundidade de campo. Como todos os grandes heróis populares transcendeu fronteiras e estilos. Também tinha, como acontece sempre nestes casos, detractores, que o acusaram de abastardar o flamenco, quando o começou a mesclar com jazz. Ele levava sempre consigo a cultura da Andaluzia e o flamenco, mas o seu olhar tinha dimensão universal. Ao longo dos anos transformou-se no mais internacionalmente reconhecido intérprete do flamenco.
“Nunca perdi a ligação com as raízes na minha música”, afirmou numa entrevista na década de 1990. “O que tentei fazer foi situar-me na tradição e, ao mesmo tempo, procurar noutros territórios, procurar coisas novas para transportar para o flamenco.” Anos mais tarde reafirmaria essa ideia. "Não tenho medo que se perca a essência do flamenco", declarou em Agosto de 2004, depois de receber o Prémio Príncipe das Astúrias, distinção maior das artes e da cultura em Espanha. "Um guitarrista tem de ter mais do que ritmo, tem de ter ar. Ar é fundamental", declarou na mesma entrevista.
Estreou-se em disco com Dos Guitarras Flamencas (1965), em duo com Ricardo Modrego, e desde então a sua discografia nunca mais parou de crescer. Álbuns como Fantasia Flamenca (1969), El Duende Flamenco (1972), Fuente y Caudal (1973), Almoraima (1976), Castro Marin (1981), Siroco (1987), Zyriab (1990) ou Concierto de Aranjuez (1991) acabaram por popularizá-lo, embora o seu grande sucesso transversal tenha sido o tema Entre dos aguas.
Nasceu a 21 de Dezembro de 1947 em Algeciras. Francisco Sánchez Gómez era o seu verdadeiro nome, mas acabou por adoptar o de Paco de Lucía, como homenagem à mãe, Luzia, de origem portuguesa, de Castro Marim, que adoptou o nome de Lucía Gomez. O pai, também guitarrista, tocava de noite nas casas de flamenco e de manhã era vendedor no mercado. Ele era o mais novo de cinco irmãos, sendo três deles (Pepe e Ramón, actuaram ao seu lado) também músicos de flamenco.
Aos 5 anos recebe do pai a sua primeira guitarra e as primeiras lições. Faz parte do duo Chiquitos de Algeciras, no qual acompanhava a voz do irmão Pepe e é na Radio Algeciras que dá o primeiro recital. Em 1959 obtém um prémio no Festival Internacional Flamenco de Jerez de la Frontera. Entretanto a sua família mudou-se para Madrid e ele ingressou na companhia do bailarino José Grego como guitarrista, em 1963. Durante uma digressão conheceu em Nova Iorque os guitarristas Sabicas e Mário Escudero que o incentivam a procurar o seu estilo de tocar.
Em 1965 grava dois álbuns com Ricardo Modrego e, dois anos mais tarde, participa na digressão Festival Flamenco Gitano durante a qual viria a gravar o seu primeiro disco a solo, La Fabulosa Guitarra de Paco de Lucía (1967). Um ano mais tarde acaba por conhecer o vocalista Camaron de La Isla, com quem viria a gravar mais de dez álbuns, até à morte daquele em 1992.
No seu álbum a solo de 1969, Fantasia Flamenca, já está bem definido o estilo fusionista que o caracteriza. Fuente y Caudal, de 1973, é o álbum na qual se inclui a rumba Entre dos aguas, que esteve quase para não ser incluída nesse disco e que o viria a tornar famoso. Em 1977 entra nos domínios do jazz, gravando e actuando ao vivo com John McLaughlin, Al Di Meola e Larry Coryell. Com aqueles virtuosos das seis cordas assombrou plateias de todo o mundo com a sua técnica, o que contribuiu decisivamente para ganhar uma legião de novos admiradores.
Grava com o grupo Dolores, numa homenagem a Manuel de Falla, acabando por Pardo (flauta) e Dantas (percussão) – fundadores dos Dolores – entrarem para o seu sexteto em 1981, na companhia de Carlos Benavent (baixo) e dos seus irmãos Ramon (guitarra) e Pepe (voz). O álbum ao vivo Live One Summer Night, gravado pelo colectivo, é um sucesso e no ano seguinte inicia uma colaboração com o pianista americano de jazz Chick Corea.
Em 1986 acaba por voltar ao formato mais introspectivo da guitarra acústica e o sexteto apenas regressa cinco anos mais tarde. Os álbuns Siroco e Zyriab (na companhia de Chick Corea) consolidam a sua fusão de flamenco, jazz e bossa nova que brilha em grande plano no Concierto de Aranjuez, de Joaquin Rodrigo, gravado em 1991 com a Orquestra de Cadaqués.
Em 1996, 13 anos depois da sua anterior colaboração, grava de novo com John McLaughlin e Al Di Meola o álbum The Guitar Trio, seguido de uma digressão mundial. Dois anos mais tarde gravou um álbum de tributo à sua mãe, Luzia, e deu inicio a uma digressão mundial acompanhado por um sexteto renovado. Em 2004 viria a editar o seu último álbum de estúdio, Cositas Buenas, que veio promover a Portugal.
Distinguido com o Prémio Príncipe das Astúrias das Artes em 2004 e doutor honoris causa pela Universidade de Cádiz e pelo Berklee College of Music, recebeu também um Grammy pelo melhor álbum de flamenco de 2004, o Prémio Nacional de Guitarra de Arte Flamenco, a Medalha de Ouro Mérito das Belas-Artes 1992, o Prémio Pastora e o Prémio da Música 2002.
Nos últimos anos viveu em vários locais, em Espanha (Palma de Maiorca, Toledo), e fora também (Cuba, México), numa mistura de bonomia e isolamento, marcas da sua personalidade reconhecidas pelos que com ele conviviam, e também presentes na forma como olhava para música: qualquer coisa fundada na cultura local da Andaluzia, aprofundada de forma individual, mas expressada de forma comunitária e com um enorme apelo global.




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