Cada vez mais violento, conflito entre manifestantes e governo expõe as fissuras de um país dividido entre o Ocidente e a Rússia
Mariana Queiroz Barboza (mariana.barboza@istoe.com.br)
Depois de meses
ocupada por manifestantes que resistiram ao rigoroso inverno ucraniano,
a Praça da Independência, no centro da capital Kiev, foi palco, na
semana passada, de uma violenta batalha. Durante dois dias, bombas,
granadas e tiros disparados por franco-atiradores deixaram quase uma
centena de mortos e milhares de feridos. De um lado, policiais leais ao
presidente Viktor Yanukovych. De outro, oposicionistas que exigiam a sua
renúncia. “O governo perdeu o controle em dois momentos”, disse à ISTOÉ
Andreas Umland, cientista político e professor da Universidade Nacional
de Kiev-Mohyla. “O primeiro foi na intensa repressão aos protestos
iniciais organizados por estudantes no fim de novembro e o segundo na
criação, em janeiro, de uma lei que cerceava a liberdade.” Os protestos,
que começaram como demonstrações pacíficas de descontentamento após o
presidente Yanukovych rejeitar um acordo comercial com a União Europeia,
radicalizaram-se num embate contra o governo. Acusado de
autoritarismo e corrupção, Yanukovych aprovou, no início da crise
política, leis antiprotestos que, na prática, criminalizavam os centenas
de milhares de cidadãos que estavam nas ruas. O governo chegou a ponto
de rastrear celulares e enviar mensagens aos manifestantes, alertando-os
de que estavam registrados como “participantes de tumultos de massas”.
Era o combustível que a oposição queria. Sob pressão popular, o
Parlamento anulou as medidas em menos de duas semanas e o
primeiro-ministro renunciou. Agora, os oposicionistas querem ver
Yanukovych, isolado até por aliados, fora do palácio presidencial.
SEM TRÉGUA
Apesar do cessar-fogo acordado entre governo e oposição, manifestantes
e policiais se enfrentaram na quinta-feira 20 na Praça da Independência
Yanukovych tem um aliado de peso: Vladimir
Putin, presidente da Rússia. Para impedir a incorporação da Ucrânia ao
bloco ocidental, Putin já ofereceu uma linha de crédito de US$ 15
bilhões, a compra de US$ 3 bilhões em títulos da dívida ucraniana e um
generoso desconto no preço do gás natural. O país de 46 milhões de
habitantes é, afinal, estratégico para os russos. Fonte de recursos
naturais (agrícolas e minerais), a Ucrânia tem saída para o Mar Negro,
dois portos importantes e é fundamental para a rota do gás natural vindo
da Rússia para a Europa – cerca de 80% passam por território ucraniano.
Ter Kiev sob sua influência também dá poder à Rússia na geopolítica. “A
Rússia passou a se enxergar como uma peça mais importante no cenário
internacional e espera ser tratada de igual para igual em sua relação
com o bloco europeu”, escreveu Dmitri Trenin, diretor do Centro Carnegie
de Moscou, em recente relatório. Segundo Trenin, como parte da nova
política externa, Moscou se concentrou num projeto de integração
euro-asiático com o objetivo de reaproximar política e economicamente as
antigas nações soviéticas. Assim, a partir de 2009, uniram-se à União
da Eurásia Bielorrússia, Cazaquistão, Armênia e Quirguistão. Sem a
Ucrânia, porém, o bloco perde força. E, sem a Rússia, a Ucrânia se vê em
dificuldades econômicas, principalmente pela dependência energética.
Cientes disso e ligados culturalmente a Moscou (em algumas regiões, o
russo é idioma oficial), um terço dos ucranianos se opõe à União
Europeia e apoia a integração à União da Eurásia.
Com a escalada da violência, o Kremlin e o
Ocidente subiram o tom da retórica na expectativa de restabelecer a
ordem e decretar vitória para seu lado. Na quinta-feira 20, dia mais
sangrento do conflito, ministros das Relações Exteriores da União
Europeia aprovaram sanções que incluem o congelamento de bens e a
proibição de viajar pelo bloco a autoridades ucranianas pelo “uso
excessivo de força”. Por sua vez, Dmitri Medvedev, primeiro-ministro
russo, condicionou o fim dos protestos a mais US$ 2 bilhões em crédito e
pediu que o governo da Ucrânia não se comporte como um “capacho”.
Embora, na mesma semana, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama,
tenha declarado que a Ucrânia não deve ser vista “como um xadrez da
Guerra Fria no qual estamos jogando contra a Rússia”, a antiga
polarização parece ter ganhado novo fôlego. De um lado, os russos
afirmam estar diante de um golpe liderado por radicais da extrema
direita. De outro, os americanos e europeus apoiam uma transição
política e a convocação de eleições.
TIRO AO ALVO
Franco-atiradores foram identificados em vídeos divulgados nas redes sociais.
As vítimas foram atingidas na cabeça, no coração e nos pulmões
Na sexta-feira 21, o presidente Yanukovych e
líderes da oposição chegaram a um acordo que prevê eleições
antecipadas, a formação de um governo de coalizão e reformas
constitucionais para limitar os poderes do presidente. Radicais disseram
que não cumprirão o pacto de paz. A ameaça não pode ser ignorada. O dia
mais sangrento do conflito foi também o dia em que havia sido acordada
uma trégua.
Fotos: Efrem Lukatsky/BULENT KILIC/AP Photo
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