2.25.2014

Viagens que transformam

Roteiros exóticos, cheios de desafios e desconfortos, atraem o público crescente dos interessados em revelações e mudanças espirituais


É um momento íntimo e silencioso, que passa despercebido a outros olhos, em que a peça de um quebra-cabeça parece se encaixar dentro de você. Depois de alguns dias em contato com uma cultura diferente, uma viagem pode provocar mais que estranhamento e fascínio. Pode abalar crenças antigas, gerar novas convicções e transformá-lo de maneira definitiva. A coisa não se dá necessariamente num estalo. Por vezes vem de modo brando e sutil, ao longo de vários dias ou semanas. Seja qual for a maneira, a busca desse acontecimento tem levado cada vez mais gente a se aventurar por lugares distantes do turismo tradicional. O número de brasileiros que percorrem o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha – o destino mais procurado para viagens de transformação –, aponta essa tendência. Em 1997, a Associação de Amigos do Caminho de Santiago, com sede em São Paulo, emitiu 143 credenciais de peregrino. Este ano, foram mais de duas mil, um crescimento de pelo menos 1.400%. E nesse grupo estão, além de esotéricos e alternativos, pessoas como o publicitário Duda Mendonça e o ministro do Desenvolvimento, Alcides Tápias, que em maio, caminhou 132 quilômetros ao lado da mulher, Luzia, até a histórica cidade espanhola.
Muitas rotas convidam o viajante a uma reflexão interna. Depois de um mês no Nepal ou na Índia, pode-se nunca mais voltar a ser o mesmo. Igualmente, a estada de um paulista no sertão nordestino ou numa tribo amazônica é capaz de mudar definitivamente o olhar do viajante. Em qualquer destinação, o mais importante é estar atento e deixar-se contaminar pelo mundo à sua volta.
Foi o que aconteceu com a bibliotecária mato-grossense Edilene dos Santos, 51 anos. Em 1994, ela partiu para o Nepal ao lado de quatro brasileiros para uma caminhada de 21 dias pelas montanhas. A meta era alcançar a base do Monte Everest, a 5.600 metros de altitude. Edilene não sabia o que estava por vir. Obrigada a enfrentar um frio que durante a noite chegava a 16 graus negativos, ela quis desistir no segundo dia. Mas continuou e, ao lado de guias nativos que ajudavam o grupo a carregar bagagem e comida no ar rarefeito, passou por uma provação. Para se lavar, só tinha dois litros de água quente por dia. A roupa era trocada a cada seis dias. Suas mãos lembravam as de um carvoeiro.
“Sobrevivi” – Ela comeu o pão que o sherpa amassou, mas acabou revigorada. “Sofri um choque com a comida e com a higiene precária, mas senti uma liberdade imensa. Passei por tudo e sobrevivi”, comemora. Seu espírito foi fortalecido também pela simplicidade e a amabilidade do nepalês. “Sempre racionalizei tudo, nunca soube o que fazer com as emoções. Mas, quando cheguei lá, percebi que tinha a chance de mudar se deixasse que as coisas passassem pelo coração”, explica. Com essa disposição, gestos singelos como o cumprimento repetido a toda hora pelo povo – namatê, namatê, ou “que meu Deus encontre o seu Deus” – adquiriram um grande significado. Depois da viagem, ela diz que passou a ser mais simples e tranquila. “Resgatei os valores humanos”, conta. Ela passou a tomar banhos mais demorados depois que voltou. Edilene sabe que não é preciso ir até o Nepal para mudar, mas reconhece que é mais fácil isso acontecer fora do contexto em que se vive. O consultor de empresas Sérgio Motta concorda enfaticamente: “O importante é sair da rotina e se deparar com situações em que precisa se adaptar e evoluir.” Motta aproveitou sua experiência de globe trotter para dar palestras sobre a importância das viagens no crescimento pessoal. “É impressionante como uma pessoa pode voltar com mais coragem e motivação, mais positiva e menos reclamona. Mas é preciso saber que aquela é uma oportunidade de aprendizado”, afirma. “Mais do que conhecer um lugar, o que as pessoas buscam é uma aventura pessoal, uma experiência de vida”, diz Motta.
Às vezes, essas experiências são casuais. A corretora de imóveis Renata Zabrockis, 32 anos, foi parar na Índia por acaso. Há dez anos, recém-formada em Arquitetura, ela quis ir para a Europa. Arranjou uma passagem superpromocional da Air India, com a qual poderia visitar três capitais européias com a condição de passar por Bombaim. “Nem me passava pela cabeça aquela idéia ‘Ai, eu vou me espiritualizar’”, conta Renata. Depois de fazer um périplo de um mês pela Índia, ela chegou ao Nepal. Foi lá que teve uma experiência que a transformaria para sempre.
Escalada – Conheceu num ônibus quatro nepaleses, todos homens, muito bem-educados que puxaram conversa em inglês perfeito. Eles estavam a caminho de um templo desconhecido dos turistas, importantíssimo para o hinduísmo. Convidaram-na para ir e ela topou. “Fomos caminhando. De repente me deparei com um paredão de pedra. Eles disseram que o templo era lá em cima. Quis desistir, mas eles argumentaram que eu tinha cruzado o caminho deles e tinha me tornado seu guia”, conta Renata. Por oito horas, ela subiu escadas em zigue-zague penhasco acima, seguindo a técnica dos nepaleses, um degrau de cada vez. “Cada degrau que você sobe, vai se purificando.” No topo da montanha, havia o templo e uma vila. Aquela espiritualidade toda do ambiente e dos nepaleses impregnou Renata que, ao voltar para o Brasil, trocou as aulas de capoeira pela ioga, adotou uma dieta vegetariana e passou “a acreditar no invisível”.
Segundo o jornalista e escritor americano Phil Cousineau, que esteve recentemente no Brasil para lançar seu livro A arte da peregrinação, “para que aconteça a transformação é preciso que haja um encontro entre aquilo que o viajante traz dentro de si e o que acontece num certo lugar.” O ministro Alcides Tápias, 57 anos, religioso e filho de espanhóis, diz que percorrer o Caminho de Santiago era um sonho antigo, finalmente realizado quatro meses antes de assumir o cargo no governo. “Temos na vida uma missão. Eu me perguntava se estava cumprindo bem a minha. O caminho me mostrou que posso melhorar em relação à família, aos amigos, à sociedade”, garante. A decisão de peregrinar pode ter causado estranheza em seus amigos poderosos. Mas Tá-pias tem certeza de que era o passo necessário e se emociona: “Ao contrário do que se pensa, sou desapegado de valores materiais”, afirma. Ele destaca que, ao longo da estrada, debaixo de chuva e frio, todos são iguais “Você chega à essência do seu ser”, resume. De volta ao Brasil, teve vontade de contribuir mais. Ele, que havia recusado convites anteriores, considera que como ministro pode prestar essa contribuição.
Haxixe e Deus – Os peregrinos do Caminho de Santiago andam em média de 700 a 800 quilômetros em 30 e poucos dias e, além de bolhas nos pés, adquirem um novo comportamento. “Eu acordava todo dia pensando: quando é que eu vou mudar?”, conta a ex-publicitária paulista Mariangela Nicolellis, 42 anos. “Tudo que eu fazia era planejado e aquilo estava me matando”, diz. No final de junho, ela resolveu embarcar para a Espanha. Separada e mãe de dois filhos, ela foi com o namorado, Raul de Marzio, 31 anos, com o firme propósito de iniciar uma nova etapa em sua vida. “Antes eu só me preocupava com a família e o marido. Essa viagem foi um reencontro comigo mesma”, diz Mariangela. Segundo ela, a dureza do caminho dá fé e coragem. De volta ao País há pouco mais de dois meses, ela não quer mais voltar à publicidade. “Quero cozinhar, que eu adoro e faço muito bem”, garante. Raul, engenheiro químico, também fez um balanço: “Não tenho mais dúvidas em relação à carreira, mas quero ser mais aberto às opiniões alheias.” Os dois voltaram decididos a combinar o trabalho com alguma atividade voluntária.
O autor da foto que abre esta reportagem é o escritor e fotógrafo paraense Guy Veloso, 29 anos, que já foi a Santiago quatro vezes. “Todos chegam ao final diferentes. Conheci um surfista de Florianópolis, Flávio, que fez o caminho inteiro fumando haxixe e chegou a Santiago acreditando em Deus”, diverte-se. O percurso não é feito só de alegrias. Na primeira viagem, em 1993, ele sentiu dores fortíssimas no joelho, e foi parar num hospital. Ele viajou sozinho e sentia medo ao atravessar lugares desertos. “Hoje sou menos estressado e mais seguro. Se consigo andar 800 quilômetros, consigo tudo.”
O enriquecimento po de surgir do contato com outras realidades. Chico Mattoso, 21 anos, estudante de Letras da USP, sentiu isso em janeiro, quando partiu com três amigos para o Nordeste, num projeto para o programa Universidade Solidária. Durante 20 dias, eles visitaram lugarejos do Ceará, do Piauí e de Pernambuco. O convívio com os habitantes transformou Chico. “Fiquei mais maduro.” De volta a São Paulo, ele e os amigos escreveram o livro Cabras – caderno de viagem, um retrato sensível e bem-humorado da experiência. Foi também num projeto universitário que o antropólogo Renato Sztutman, 25 anos, viajou no final de 1996 para uma tribo indígena na Guiana Francesa. Ele passou quase dois meses na tribo waiãpi. “Ver pessoas com outros valores é transformador. Só conhecia isso na teoria”, conta. Renato diz que agora está mais apto a encarar desafios. “Tive medo porque a viagem era perigosa e não sou nenhum Indiana Jones.” Como não?
Peregrinações sempre envolveram desafios. Na Idade Média, o caminho até Jerusalém era povoado por prostitutas e ladrões. Um quinto deles jamais voltava. “Hoje as dificuldades são mais psicológicas. O sujeito tem a tentação de ficar vendo tevê no hotel. Se não superar nada, não é peregrinação”, defende. Para ele, a peregrinação é restauradora. “A maioria viaja ligada no automático, num tal frenesi de programações e de compras que, ao voltar para casa, diz aquele clichê: “Preciso de umas férias para descansar das férias.”

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