Funcionários do Poder Judiciário de vários Estados acusam juízes de praticar humilhações e perseguições. Como servidores públicos não podem ser demitidos, as contendas viram batalhas judiciais
Fabíola Perez (fabiola.perez@istoe.com.br)
Dos juízes
espera-se equilíbrio, serenidade e, sobretudo, justiça nos atos e
tomadas de decisão. Parte dos servidores do Poder Judiciário, porém, tem
se deparado com magistrados autoritários e prepotentes, que perseguem e
assediam moralmente os funcionários. Uma pesquisa inédita no País,
realizada pelo Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado do
Rio de Janeiro e obtida por ISTOÉ, é um indicador do ambiente ruim dos
tribunais brasileiros. A enquete revelou que 44,5% dos servidores do
Tribunal de Justiça do Estado entrevistados afirmam já ter sofrido algum
tipo de assédio moral. “Começamos a perceber um número cada vez maior
de servidores afastados por problemas psicológicos”, afirma Alzimar
Andrade, coordenador-geral do Sind-Justiça. “Esse quadro é agravado
porque os juízes assediadores se sentem em uma classe superior, repleta
de poder, e têm uma espécie de garantia de não punição.” O levantamento
também apontou que 45% dos funcionários ouvidos disseram que já foram
ofendidos ou humilhados no atendimento a advogados ou a partes de um
processo (leia abaixo).
O assédio no serviço público tem
peculiaridades. Em uma empresa privada, o chefe descontente pode demitir
o trabalhador, algo que não ocorre com funcionários concursados. “O que
se negocia são os benefícios e a independência interna do servidor”,
afirma o professor de sociologia do direito da Fundação Getúlio Vargas
(FGV) do Rio de Janeiro Fernando Fontainha. Isso permite, por exemplo, a
perseguição de um profissional até que ele decida se exonerar da vida
pública. Frequentemente, trava-se uma guerra judicial entre as partes,
como ocorreu com a funcionária do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
Flávia Felício Silva, 42 anos. Ela afirma ter sido perseguida pelo juiz
Roberto Ribeiro de Paiva Júnior enquanto trabalhou como escrivã judicial
na Comarca de Uberlândia em 2007. “Além do meu trabalho, eu era
obrigada a fazer despachos para o juiz, que é atribuição dos
estagiários, e trabalhava das 7h às 22h”, relata. Flávia conta que
engordou 30 quilos em quatro meses e, quando chegou ao limite, foi
conversar com o juiz. “Ele disse que ninguém falava ‘não’ para ele e que
eu veria quem mandava”, conta.
BATALHA
Flávia e o juiz Roberto Ribeiro de Paiva Júnior travaram uma guerra judicial:
ele entrou com cinco processos administrativos contra ela e todos foram arquivados
Flávia e o juiz Roberto Ribeiro de Paiva Júnior travaram uma guerra judicial:
ele entrou com cinco processos administrativos contra ela e todos foram arquivados
Naquele momento, segundo Flávia, os
maus-tratos vieram à tona. Ela foi proibida de entrar no gabinete de
Paiva Júnior. “Eu ouvia dele que eu fedia e era gorda e irresponsável”,
diz. Por ter cometido uma falha em um processo que resultou em prejuízo
financeiro para as partes, ela tomou uma suspensão de cinco dias. Diante
disso, a servidora entrou com um mandado de segurança contra o juiz e a
atitude do magistrado foi considerada inconstitucional pelo TJ-MG. O
caso virou uma disputa judicial. Flávia fez uma representação contra
Paiva Júnior na Corregedoria-Geral do Estado e o juiz entrou com cinco
processos administrativos contra ela, todos arquivados. A Corregedoria,
por sua vez, determinou que o juiz a tratasse com dignidade. Em 2009,
Flávia foi transferida de vara. Procurado por ISTOÉ, o Fórum de
Uberlândia informou que o juiz está de férias.
Tratamentos humilhantes repetitivos podem
comprometer a identidade, as relações afetivas e a capacidade de se
adequar ao ambiente de trabalho, muitas vezes sem que a pessoa tenha
consciência. No Rio de Janeiro, o caso da oficial de Justiça Márcia
Elisa Barroso, 38 anos, chegou ao extremo. A funcionária atirou-se do
sexto andar do seu prédio, em novembro passado, após ter sido removida
de local de trabalho contra a sua vontade, o ápice de uma série de
problemas, segundo ela. Márcia fazia parte de um grupo de 12 servidores
que, em 2011, abriu um processo administrativo para denunciar o assédio
moral praticado pela chefia da Central de Mandados do Fórum de
Alcântara, em São Gonçalo, e pedir remoção coletiva. “Todos sofriam com o
tratamento da diretora da Central e a juíza nos acusava de fazer
motim”, diz. Segundo Márcia, o tempo era restrito para cumprir o número
de mandados exigidos, a diretora colocava os funcionários uns contra os
outros no momento de definir plantões e quando alguém não dava conta do
trabalho ela humilhava e gritava com a pessoa na frente de toda a
equipe.
Em julho de 2012, Márcia passou a trabalhar
em Niterói, mas em novembro passado foi novamente transferida para São
Gonçalo. “Entrei em profunda depressão”, diz ela, que não se lembra
direito do dia em que resolveu pular da janela. A servidora sofreu
traumatismo craniano, uma série de fraturas, ainda está de licença
médica e atualmente precisa de um andador para se locomover. O TJ-RJ
nega que tenha havido assédio moral. A juíza Renata de Souza Vivas
Pimentel, da Central de Mandados de Alcântara, afirmou que a remoção
ocorreu em razão da abertura de um presídio na região, o que aumentaria a
demanda de trabalho no Fórum local.
GRUPO
Márcia e outros 11 servidores abriram um processo administrativo para
denunciar o assédio moral praticado no Fórum de Alcântara, em São Gonçalo (RJ)
Márcia e outros 11 servidores abriram um processo administrativo para
denunciar o assédio moral praticado no Fórum de Alcântara, em São Gonçalo (RJ)
No Poder Judiciário, a disparidade de
forças parece mais evidente. “O servidor vive um embate com uma pessoa
que possui muito mais poder”, diz Roberto Dias, professor de direito
constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). “Assim, quando o funcionário vai atrás de seus direitos, ele
corre o risco de ser malvisto pelos outros juízes e prejudicar a
continuidade de sua carreira pública.” A chefe de cartório Nara Pereira,
52 anos, hoje trabalha em Criciúma (SC), mas ainda teme que sua
carreira seja prejudicada pelo juiz Lírio Hoffmann Júnior, com quem
trabalhou no Fórum de Orleans (SC). Em 2012, ela apresentou uma
representação contra ele na Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do
Estado, alegando maus-tratos e perseguições no ambiente de trabalho.
Os desentendimentos começaram logo no
início da relação profissional. “Ele começou a incitar os estagiários
contra mim e a me desautorizar diante deles. Também queria que eu o
ajudasse a prejudicar seus desafetos”, conta. “Percebi que se tratava de
assédio moral quando fui trancada em uma sala e uma servidora falou que
eu estava sendo observada.” Nara relata ainda que a funcionária lhe
disse que sua função era dar andamento nos processos para acelerar a
promoção do juiz. Na denúncia à Corregedoria, Nara acusou Hoffmann de
ameaçar abrir uma ação administrativa contra ela, o que de fato ocorreu.
De acordo com o desembargador do TJ-SC, Ricardo Roesler, a
representação aberta por Nara foi “arquivada por inconsistência de
provas e o processo disciplinar continua em tramitação na presidência do
Tribunal de Justiça”. Hoffmann afirmou desconhecer alegações sobre
assédio moral. “Nossa relação de trabalho era boa, mas não posso dar
mais informações sobre o que motivou o processo administrativo”, disse o
juiz.
Numa área célebre pela morosidade e com uma
demanda de maior rapidez da sociedade, as disputas tendem a se
acentuar. “O índice de servidores públicos com problemas de saúde é cada
vez mais elevado”, diz Paulo Blair de Oliveira, professor da
Universidade de Brasília (UnB) e juiz do trabalho há 20 anos. “Por que o
tema assédio se tornou tão premente agora? Porque a sociedade exige uma
solução com velocidade digital para as suas solicitações e o Judiciário
ainda trabalha em ritmo analógico.”
Foto: Kelsen Fernandes/Ag. Istoé; L. Adolfo
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