4.05.2014

Cientistas propõem o uso de remédios e de outras intervenções para acabar com o sentimento quando ele traz mais sofrimento do que alegria

Cilene Pereira (cilene@istoe.com.br)

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É difícil encontrar alguém que nunca sofreu por amor. E que no auge de sua dor não tenha imaginado como seria ótimo se existisse uma pílula, algo que pudesse ser comprado logo ali, na farmácia, para acabar com o sofrimento. Na opinião de um respeitado time de cientistas, esses remédios existem. Alguns já estão disponíveis, outros em estudo. Juntos, eles formam um arsenal capaz de curar amor – e devem começar a ser usados sempre que necessário. A proposta está sendo feita por pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, uma das mais renomadas do mundo. Por seu teor polêmico, a proposição iniciou um grande debate entre os cientistas sobre a oportunidade de se recorrer a recursos para encerrar um amor – seria mesmo adequado tratar o sentimento como se lida com uma gripe, uma gastrite? – e as consequências éticas que podem advir do uso do que os estudiosos ingleses estão chamando de biotecnologia antiamor.
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No olhar do grupo de Oxford, porém, trata-se de lidar com o tema sob uma perspectiva diferente da convencional. Existe o amor de Platão, de Shakespeare. Fala-se aqui do ideal, do sentimento arrebatador, que nasce sem muita explicação e gera histórias inesquecíveis. E existe o amor entendido pela ciência. Nesse caso, não há espaço para romantismo. A emoção seria produto de respostas fisiológicas desencadeadas no cérebro a partir de um estímulo. Sua geração faria parte do arcabouço de emoções que a espécie humana desenvolveu ao longo de sua evolução com o objetivo de garantir sua sobrevivência. O medo, por exemplo, nos ajudou a ter reações de fuga diante de predadores. O amor, por sua vez, foi o sentimento que garantiu a continuidade da reprodução da espécie. E hoje, defendem os cientistas, é possível interferir nas etapas desse processo com a finalidade de interrompê-lo. “A neurociência está nos apresentando um entendimento novo do amor”, disse à ISTOÉ o pesquisador Brian Earp, de Oxford, coordenador do grupo que estuda os tratamentos para o sentimento. “Portanto, se pensarmos que ele é algo que emerge da química cerebral, começa a fazer sentido falar em cura.”
AMOR-06-IE-2315.jpg SEM LIGAÇÃO
Em suas pesquisas com cobaias, Young conseguiu impedir a criação de laço afetivo
O consenso científico sobre o amor é o de que ele é dividido em três fases. A primeira é chamada de luxúria e caracteriza-se pelo desejo sexual. A segunda é a atração. As duas fases formam a paixão. Elas são associadas aos hormônios estrogênio e testosterona – responsáveis, respectivamente, pelas características femininas e masculinas. Também há o foco no objeto da paixão, podendo ocorrer inclusive pensamentos obsessivos a seu respeito. “Os apaixonados e os pacientes que sofrem de Transtorno Obsessivo Compulsivo dividem um mesmo tipo de pensamento. Os primeiros são focados nos parceiros, e os segundos, em suas obsessões”, disse à ISTOÉ a pesquisadora italiana Donatella Marazziti, da Universidade de Piza, na Itália. Ela é autora de um trabalho exemplar sobre esse aspecto. Primeiro, Donatella selecionou 20 voluntários em pleno estado da paixão e 20 portadores do transtorno. Ela quantificou nos dois grupos a concentração de uma proteína envolvida no transporte da serotonina, substância cerebral relacionada à regulação do humor. Tanto apaixonados quanto pacientes tinham baixa quantidade da proteína, o que significa que havia pouca disposição de serotonina. Um ano depois, seu nível já havia subido entre os amantes. E eles não manifestavam mais obsessão pelo parceiro.
AMOR-05-IE-2315.jpg CAUTELA
Marchant, da Universidade do Arizona, teme o uso abusivo das drogas antiamor
As estruturas cerebrais acionadas nessas duas fases são as que compõem o sistema de recompensa. Ele é ativado quando se vive algo que dá prazer. Ao entrar em ação, há a liberação de dopamina. O composto é a base química que está por trás da alegria que sentimos quando desfrutamos de uma situação prazerosa. Esse sistema é o mesmo acionado nos casos de dependência, como a de drogas ou de álcool. No caso do amor, a recompensa é o prazer proporcionado pelo parceiro. É por essa razão que há o entendimento de que o amor pode se tornar um vício. “Há teorias sobre adição que sugerem que qualquer substância, comportamento ou relacionamento que apresente potencial de recompensa pode desencadear dependência”, diz Earp.
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No artigo que publicaram sobre o tema na revista científica “The American Journal of Bioethics”, os pesquisadores ingleses elencaram várias categorias de remédios que poderiam ser usadas para interromper a evolução da paixão. Os antidepressivos, por exemplo, reequilibram as concentrações de serotonina, reduzem pensamentos obsessivos, interferem na liberação de dopamina – portanto, haveria menos euforia diante do amado – e têm entre seus efeitos colaterais a queda da libido. Outras opções seriam as medicações que impedem a ação da testosterona, provocando diminuição do desejo. Apontam também a naltrexona, usada para tratar a dependência de opioides (receitados contra a dor) e contra o alcoolismo.
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A terceira etapa do amor é a do vínculo. Trata-se aqui do sentimento a longo prazo, sem o impulso da paixão, marcado por sensação de segurança e de proteção ao parceiro. Nessa fase, agem duas substâncias: a ocitocina e a vasopressina. A primeira é um hormônio envolvido na formação de laços afetivos e de fidelidade. “Ele é liberado quando há contato íntimo, um toque carinhoso”, explicou à ISTOÉ o americano Larry Young, diretor da Divisão de Neurociência Comportamental do Centro de Pesquisa Yerkes, da Emory University (Eua). Já a vasopressina atua na formação de vínculos nos cérebros masculinos. “Em outras espécies, ela é responsável por um comportamento associado à proteção de território”, disse Young. “Mas em espécies monogâmicas está relacionada a vínculo, provavelmente porque o cérebro masculino considera a fêmea parte de seu território.” Nessa química, também opera uma molécula chamada CRF, que ajuda a manter a relação por longos períodos. “Quando os amantes estão separados, a CRF os faz ter sentimentos negativos, até depressão”, completou Young.
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O americano é um dos mais proeminentes estudiosos da neurofisiologia do amor. Pesquisa o tema há 20 anos, usando como cobaias um tipo de ratazana cujo comportamento familiar se assemelha ao humano, mantendo longas relações com apenas um parceiro. Nas suas experiências, porém, ele provou que é possível manipular esse comportamento simplesmente agindo sobre as substâncias associadas ao vínculo. “Podemos bloquear qualquer um desses compostos e evitar que as cobaias construam laços ou se sintam mal quando um parceiro vai embora”, afirmou Young. Em um dos experimentos, ele usou um composto para impedir a ação da ocitocina nas fêmeas. Elas não criaram ligação com um parceiro e tornaram-se polígamas. “Teoricamente, drogas semelhantes poderão ser dadas às pessoas para manipular seu amor por seus companheiros”, disse o pesquisador.
O inglês Brian Earp, de Oxford, está otimista quanto à criação de mais recursos anti-amor. “Conforme o conhecimento do mecanismo cerebral por trás do sentimento se aprofundar, a tecnologia antiamor se tornará ainda mais poderosa”, acredita. Não se descarta, inclusive, a manipulação da memória por meio do emprego de técnicas adotadas hoje no tratamento de estresse pós-traumático. Nesse caso, o que se quer é apagar as lembranças ruins associadas ao evento que levou ao trauma. Um dos recursos é o uso do anti-hipertensivo propranolol. E mais opções estão em estudo, envolvendo treinamentos específicos e outras medicações. No caso do amor, os métodos seriam usados para fazê-lo desaparecer. “Pode-se imaginar terapia similar sendo usada para apagar a memória do amor”, afirmou a antropóloga Helen Fisher, da Rutgers University (Eua), também investigadora importante da área.
AMOR-03-IE-2315.jpg MEMÓRIA
Estudiosa do amor no cérebro, Helen acha possível
apagar a lembrança do sentimento
Os pesquisadores defendem o uso de armas como essa para todos os casos nos quais a relação é claramente prejudicial e precisa ter um ponto final. “Imagine uma pessoa em um relacionamento violento. Ela sabe que precisa sair dessa situação, mas seu sentimento de vínculo é tão forte que não consegue”, disse Earp. “Se ela pudesse usar um remédio que possibilitasse uma separação emocional do parceiro, seria um uso possível.” O cientista cita outra circunstância. “Pense em alguém atraído por outra pessoa que não o seu parceiro, mas que quer continuar fiel”, exemplifica. “A tecnologia antiamor pode ajudá-lo a diminuir seus sentimentos de atração pelo outro.” Indivíduos com dificuldade para se recuperar de um rompimento e partir para outra experiência também se beneficiariam. Segundo Earp, em Israel já houve a adoção de uma das armas. Por determinação de rabinos, antidepressivos foram dados a jovens para aplacar sua libido de forma que ficasse mais fácil, no entendimento dos religiosos, seguir as normas da religião sobre o comportamento sexual.
A proposta de curar o amor desencadeou intensas reações na comunidade científica. Após a publicação do artigo do grupo inglês, pensadores de várias partes do mundo iniciaram um debate sobre as repercussões da proposta. A professora Kristina Gupta, da Universidade Georgetown (Eua), foi uma delas. Estudiosa da sexualidade humana, ela vê benefícios na aplicação de tecnologias para aplacar o sentimento. “Acho válido em alguns casos, como para alguém que quer terminar uma relação com um marido violento”, afirmou à ISTOÉ. “Mas é preciso se certificar de que os recursos não sejam usados para eliminar tipos de relacionamentos somente porque não são considerados aceitáveis pela sociedade. Um exemplo são as relações homossexuais”, completou.
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Especialista em filosofia e sexualidade, o canadense Neil McArthur, da Universidade de Manitoba, também reagiu. Ele defende que os recursos seriam úteis quando as pessoas não são aptas a se recuperar de forma sadia após um rompimento. “Como aquelas que começam a manter pensamentos suicidas ou a perseguir seus ex-parceiros”, exemplificou à ISTOÉ. E a exemplo de Kristina, prega a cautela. “Gostaria que esses remédios fossem muito bem regulados e usados em casos extremos.”
McArthur toca em um ponto central das discussões: como garantir que não haveria abuso na aplicação dos métodos antiamor. “Estamos preocupados com essa possibilidade”, afirmou à ISTOÉ o americano Gary Marchant, professor de tecnologias emergentes, lei e ética da Universidade do Arizona. Ele abordou a questão em um artigo publicado no “The American Journal of Bioethics”. “O iminente desenvolvimento de agentes antiamor nos coloca sob o sério risco de atitudes não éticas para manipular sentimentos românticos”, escreveu. Na opinião do especialista, é preciso começar a pensar em uma legislação que proteja, por exemplo, contra a manipulação involuntária do sentimento. “Mas isso será um desafio”, acredita.
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Há outra crítica importante levantada. Intervir para curar o amor embute o risco de tirar do ser humano uma oportunidade de evoluir. “Se tomarmos uma pílula a cada vez que uma relação não der certo, nunca aprenderemos a ver o que fizemos de certo ou errado e como nos tornar pessoas melhores”, afirma o canadense McArthur. “Além disso, pense em toda a maravilhosa arte, música e literatura feitas sobre o amor. Nada disso existiria se esses remédios estivessem disponíveis. A dor da perda nos torna criativos.”
Pondera-se também se a proposta não seria mais um caso de “medicalização” de um sentimento. Ou seja, de tornar um problema médico uma emoção natural. “Isso pode ser bom ou mau”, responde Brian Earp. “O alcoolismo, por exemplo, foi considerado durante muito tempo uma questão moral. Quando começou a ser tratado como um problema de saúde, houve a abertura para a criação de tratamentos. E eles melhoraram a vida das pessoas que estavam sofrendo”, defende o inglês.
Fotos: John Angerson, Divulgação, Kelsen Fernandes/Ag. Istoé

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