3.30.2014

TEATRO DE RUA PARA 31 DE MARÇO DE 64



Cinquenta anos depois, balanço fatalista do golpe militar ajuda a adormecer e confortar consciências diante de um ataque a democracia


 Cinquenta anos depois, fico espantado ao reparar que o golpe  de 64 chega a ser visto como simples  fatalidade.

 José Serra era presidente da UNE e discursou no comício de 13 de março.  Conforme registra Jorge Ferreira em sua biografia de João Goulart, numa intervenção “inflamada”, Serra exigiu a extinção da “política de conciliação” que as organizações revolucionárias enxergavam em Goulart, acusado de “populista” e “reformista” pela maioria delas.  
Em seguida, conta o historiador,  “Serra atacou, em tom agressivo e contundente, aqueles que defendiam o fechamento do Comando Geral de Trabalhadores e exaltou, como uma realidade animadora do quadro político brasileiro, a mobilização dos sargentos e militares de baixa patente, “que emerge para as lutas populares.”
 Hoje, Serra acha que em 31 de março o golpe “tornou-se inevitável.”
 Arnaldo Jabor, que era da agitação cultural da UNE, diz que o golpe foi uma “porrada necessária.”
 Não vamos julgar ninguém. Cada um que defenda seu ponto de vista, como achar melhor. Todos temos direito de repensar nossas vidas, avaliar, examinar mais uma vez.
Só não farei aqui a lista de meus erros e enganos porque dizem que deve-se evitar textos longos na internet. Pelo tamanho, prefiro este aqui. . 
Esta noite sonhei com teatros políticos que se fazia sob a ditadura militar, quando havia censura, cadeia, tortura – mas tinha uma turma que insistia em ficar dizendo o que era proibido e mostrar o que deveria ser escondido. Tudo mambembe, tão inevitavelmente esculachado porque parecia até que era de propósito.  Claro que são cenas de ficção. 
Você chegava na assembleia na faculdade, eles estavam lá. Chegava no sindicato, também. Às vezes iam para a rua, imagine.
Era divertido – apesar de meio pobre e, no fundo, um pouco triste. O Brecht possível, vamos combinar. Brecht, portanto.
 Fico imaginando uma peça onde  o “inevitável” tenta   convencer um personagem de chapéu, voz grossa e sotaque carregado –  Miguel Arraes -- que estava tudo mundo errado, que ninguém no Brasil acreditava na democracia,  o golpe ia vir de qualquer jeito. Os dois se encontram no gabinete do governador. 
O inevitável fala tanto que Arraes desconfia, coçando o bigode: o golpe está em andamento mas a tese de doutorado já tinha fica pronta, murmura. 
Os argumentos do inevitável parecem bonitos, até lindos, de gente que tem vários exemplos na ponta da língua  mas o homem de chapéu não tira o chapéu para eles. Pergunta como assim, quem mandou aquelas tropas para meu palácio, que no fundo é do povo que me elegeu?
 Ele diz para o “inevitável” que não concorda. Fala que não iria fazer aquilo porque, no fim, não é coisa que se faça. Também pergunta:
-- Como sabemos que uma coisa é inevitável antes de tentar evitar?
Em seguida, Arraes faz menção de iniciar seu discurso pelo rádio onde condena o golpe e o "inevitável" faz um gesto inconcluso. Será que tentaria impedir que fizesse um pronunciamento inútil, segundo sua análise? Não sabemos. 
 Aí aparece outro personagem, o “porrada necessária”. (Seu traje é semelhante aos espermatozoides daquele filme sobre sexo do Wood Allen, só que ele carrega algumas de  armas de brinquedo além do paraquedas).
Ele também tenta convencer o homem de chapéu. Mas este se mantém irredutível e eles desistem. A tropa não desiste, é claro, e mantem o palácio do homem de chapéu cercado.
 Na cena seguinte, o “porrada necessária” se encontra com um sujeito gordinho, bigode pequeno, cabelo com a risca do lado direito, o que  chama a atenção porque  todo mundo faz a risca do lado esquerdo. Rubens Paiva. 
 Imagine um diálogo do “porrada necessária”  com Rubens Paiva – aquele que foi para o rádio orientar os trabalhadores para procurar os sindicatos, os estudantes para ir a UNE do “inevitável.” Claro que o “porrada” só pensa naquilo que ele acha “necessário.” Quando os estudantes chegam à  sede da UNE há um alto-falante dizendo: “Era inevitável, era inevitável.” Labaredas. 

Aparece um repórter tomando notas. De repente, ele entra num armário e sái vestido de general. Discursa: 
-- A culpa pelo golpe foi do Jango! A culpa foi do Jango!
Em outra cena, chegamos a agosto de 2013. Um cidadão comum – naquelas peças sempre tinha um cidadão comum – abre o jornal  O Globo.
É o mesmo jornal que, em 1961, não queria nem permitir a posse de Goulart após a renuncia de Jânio. Imagine o que fez no 31 de março: saudou a “inevitável porrada necessária.”  Lamentou que fosse porrada, mas disse que era necessária e, portanto, inevitável.
Mas em agosto de 2013 ele publicou um pedido de desculpas. O cidadão comum lê para a plateia o editorial onde o jornal pede desculpas pelo apoio ao golpe:
 “ o apoio foi um erro (...) A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.”
O cidadão comum se vira para o porrada e o inevitável e diz:
Vamos ler o Globo, meninos! O porrada e o inevitàvel vão para o canto, de castigo. A democracia é um valor absoluto!
 A peça ameaça ficar chata – o risco sempre existe – quando aparece Rui Moreira Lima, coronel aviador, condecorado na segunda guerra mundial.
 A cena vai repetir o que ele fez no 31 de março de 64: entrou num caça assim que soube do deslocamento de tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro.
O personagem  entra num aviãozinho de papelão e passa por cima de um grupo de soldados que  avançam pela estrada – em sua maioria recrutas que na peça se vestem como formiguinhas – e todos se dispersaram. Estavam desorganizados, sem comando, sem treinamento. Cumpriam ordens de ir para lá.
Podiam cumprir ordens de ir para cá.
Moreira Lima volta a base aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, esperando pela ordem de resistir. A ordem não veio.
Na mesma região,  avista-se um jipe militar correndo pela mesma estrada que o coronel aviador tinha sobrevoado.
Naquele dia, Castelo Branco estava tão convencido de que o golpe de 31 de março  poderia dar errado – ou seja, era “evitável” -- que tentou convencer o general Mourão a desistir assim que soube que ele havia deslocado tanques de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro.
Olha só: Castelo, o chefe supremo,  articulado com Vernon Walthers e o Exército americano, que iria trazer a IV Frota com víveres e armas para ajudar numa eventual guerra civil, mandou um  conspirador, o general Muricy, encontrar-se com Mourão para lhe dar o recado de que deveria retornar aos quartéis para não colocar tudo a perder.
Por via das dúvidas, Castelo resolveu esconder-se. Estava em companhia de outro oficial, Ernesto Geisel.
O golpe “inevitável,” a “porrada necessária” começou assim. O primeiro presidente militar se escondeu. O quarto presidente também foi para a clandestinidade.
 Em outra cena, com flashes, aparece um general recebendo uma maleta cheia de dólares.  Amaury Kruel, o general que comandava as tropas de São Paulo e no plano militar decidiu para onde a coisa ia, passou o dia 31 de março em silêncio. Quando aderiu ao golpe, definiu a situação. Necessário? Inevitável?
O coro de vozes alerta: isso é uma denúncia que não foi inteiramente confirmada. Havia muita corrupção naquela época, a CIA havia mandado, por ordem do presidente John Kennedy, pacotes e pacotes de dólares para ajudar a oposição contra Goulart.
Conforme um oficial que seguiu os movimentos de Kruel de perto, o lance decisivo ocorreu quando  ele recebeu uma mala de dólares – e mudou de lado. Isso aí. Dólares!
Verdade? Mentira? O coro pergunta e responde:  
Ninguém sabe. Mas a mala de dólares está lá, no armário dos mistérios de um golpe que queria acabar com a subversão e a corrupção, dando um conteúdo surrealista a história inteira. Precisa ser apurada, investigada, explicada.
O cidadão comum pega uma página do New York Times, na edição de 7 de abril de 1964. Lê:
"-- É difícil saber quem está mais satisfeito com a queda do Goulart. Os brasileiros ou o Departamento de Estado do governo americano.”
 A peça está chegando ao fim, o que é bom porque a plateia começa a balançar a cabeça.
Os atores se juntam a beira do palco e declamam um texto assim:
Palavras como “inevitável”,  “ou porrada necessária”, adormecem, é conformam, pacificam, confortam.
Num pedaço chatíssimo, um dos atores fala direto no microfone:
 E aí é bom lembrar que,  50 anos depois, assistimos a manifestações a favor de um novo golpe militar. Ninguém é bobo aqui.
 Vamos dizer daqui a alguns anos que é “inevitável”? “Necessário?”
Vamos verter lágrimas pelos valores absolutos da democracia?, pergunta o ator.
Fecham-se as cortinas que, por sinal, não existem. Quando parece que tudo terminou, uma atriz adolescente entra correndo no palco carregando um cartaz com letras escritas à mão. Aquelas peças as vezes davam a impressão de tratar a plateia como burra mas as vezes isso parecia necessário. O cartaz diz:  
 “Não queremos heróis. Só precisamos de quem diga Não na hora certa.”

Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, 

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