4.02.2014

Resistência ao golpe, à ditadura, uma estreita relação entre cultura e educação


Sergio Mamberti“A vida imita a arte”. No 1º de abril de 1964, o adágio que atravessa as civilizações, quase um dito popular, confirmou-se mais uma vez. Exatamente no dia em que deflagravam na vida do país o funesto golpe de 1º de abril a arte estreava em Porto Alegre “O Inoportuno”, com Sérgio Mamberti e elenco, dirigido pelo mestre Antônio Abujamra.
As ricas lembranças de Mamberti daquele dia e suas reflexões nos dias, meses e anos seguintes, marcados tristemente por uma longa duração da ditadura, somam-se a uma consistente concepção, calcada na experiência, da importância fundamental da cultura na formação do nosso povo.
São mais de 50 anos de dramaturgia na trajetória deste que hoje é um dos mais respeitados atores do nosso país. É mais de meios século produzindo, refletindo e militando pela cultura. E mais de uma década de atuação no Ministério da Cultura em prol da sua democratização para a nossa gente.
Mamberti ensina. Ensina com seu exemplo de vida, por meio das histórias que conta, ao revelar os absurdo, aberrações e o horror dos anos de chumbo em nosso país. Ensina, mais que tudo, que a separação entre cultura e educação, uma perversa herança daqueles tempos, não pode ser admitida. E ensina que a luta continua.
Esta sua entrevista exclusiva a este blog nos dá a dimensão exata da imensa resistência da classe artística brasileira naquele longo período ditatorial. “Se as pessoas virarem as costas para isso, é sinal de que perdemos a batalha. A gente escreveu dentro dessas linhas. A coerência nossa está num outro nível que passa pela emoção”.
Aqui nessa entrevista ele a transmite com uma advertência: “Essas prisões agora do mensalão, a forma como tudo foi conduzido, deixa claro que aquelas elites que deram o golpe e apoiaram a ditadura ainda tem um poder muito forte no Brasil”. Com vocês, Sérgio Mamberti:
Onde você estava no dia do Golpe, 1º de abril?
[ Sérgio Mamberti ] Eu tinha ido a Porto Alegre. Nós estávamos fazendo um espetáculo em São Paulo chamado “O Inoportuno”, dirigido pelo Antônio Abujamra, e íamos estrear no dia 31 de março na capital gaúcha.
Você já era do PCB?
[ Mamberti ] Sim, eu já era filiado. E estava indo estrear a peça e, também, ia participar do Congresso do partidão, em meio ao clima das reformas de base do Jango. Eu estava lendo as teses do Congresso porque a gente tinha de participar, votar, dar opinião.
Já havia acontecido o comício do 13 de Março. Eu não pude ir, mas uma grande amiga, a atriz Glauce Rocha, que não era do PCB, mas havia sido casada com um das lideranças do partido, foi. Houve um momento em que houve o risco de haver uma turbulência lá e a Glauce acalmou o pessoal.
Logo depois do golpe, ela estava em casa com o marido e a polícia chegou. Ele tinha cadernetas com o nomes das pessoas. Do banheiro eles foram queimando tudo. A Glauce foi entretendo a polícia, para que ele pudesse sair pelos fundos. Ela morreu aos 39 anos de um ataque cardíaco. Uma mulher fantástica, uma amiga muito próxima. Uma perda.
Como as coisas se desenrolavam em Porto Alegre naquele 31 de março/1º de abril?
mambertidir[ Mamberti ] Nós já estávamos em Porto Alegre e aí começaram os rumores do Golpe. O (então deputado Leonel) Brizola estava lá e começou a alertar a população que era muito politizada.
A visão que nós tínhamos era a de que o Golpe seria impossível porque o III Exército estava com a gente. Como o III Exército havia garantido que Jango assumisse (em 1961), nós estávamos confiantes nisso. Mas, veio o golpe.
Estávamos lá e aquela movimentação toda. Aí o (Antonio) Ghigonetto que era o diretor assistente do Abujamra e estava nos ensaiando dizia: “nós vamos ter o ensaio porque vamos estrear hoje à noite, vamos fazer ensaio geral”. E eu dizia: “mas como, se está tendo o golpe?”. E ele me acalmava: ” não, isso é tudo coisa que não está absolutamente esclarecido. A possibilidade é muito remota. Isso aí é sensacionalismo de notícias. Nós temos uma obrigação profissional, vocês não me saiam do teatro!”
A gente queria era ir para a praça, porque o Brizola já estava reunindo as pessoas lá. Aí, nós estávamos no meio do ensaio e na ladeira que dá do Teatro São Pedro, os brigadeanos (Brigada Militar, PM gaúcha) começam a vir. E o povo reunido para tomar o Palácio Piratini porque o governador Ildo Meneghetti, de direita, já tinha se mandado. Então, a gente estava lá ensaiando e os brigadeanos começaram a atirar para o alto. Nós no teatro, apagamos as luzes, todo mundo se abaixou… E eu para o Ghigonetto, “eu não te falei?”, “eu não te falei?”. A gente tudo encolhido, olhando pela porta, aquela coisa…
Os brigadeanos foram embora e aí a gente seguiu junto com o povo para ver a tomada do palácio. Voltamos para a praça e o prefeito Sereno Chaise deixou montar na frente da prefeitura uma mesa, para a gente fazer a inscrição e formar um exército de resistência. Eu me inscrevi. Nunca tinha feito serviço militar, mas alguma coisa eu podia fazer. E assim nós instauramos a legalidade em Porto Alegre.
Foi montada a Rádio da Legalidade e nós começamos a mandar mensagens para São Paulo. “Companheiros do Teatro Oficina, companheiros do Arena, companheiros do teatro sei lá o quê, esse golpe é uma farsa e tal”… Foi todo um processo para a gente, de certa maneira, criar condições para que pudéssemos fazer a resistência naquele momento.
Quanto tempo isso durou?
[ Mamberti ] Nós fomos almoçar e quando voltamos dois soltados estavam na porta da prefeitura e eles não nos deixaram mais entrar. Eu disse a eles: “nós estamos na rádio, só fomos tomar um lanche”. E eles: “não pode mais entrar”. O III Exército já tinha apoiado o golpe. Aí eu perguntei pra ele: “escuta aqui, meu filho, afinal de contas, que de que lado vocês estão?” Um olhou para o outro, com uma cara meio sem graça porque eu estava ali, e ele me respondeu: “ah, não sei não senhor, nós ainda não recebemos ordens”. Aí toda aquela ilusão de que tínhamos um Exército se espatifou. A sensação era “Meu mundo caiu”, porque todo mundo falava que os comunistas tinham uma estrutura de resistência e tal… Mas, não tinham nada. Nós estávamos totalmente despreparados. Nós tínhamos uma luta. E o Jango realmente foi um homem muito corajoso, deve ser feita uma reavaliação do seu papel.

“Não vamos lá, porque quem for eles vão prender”

Então, nós começamos a ouvir nas rádios que nós não ousássemos resistir – uma mensagem clara para o exército de resistência que estava sendo formado pelo Brizola. “Não resistam, os porta-aviões norte-americanos estão no estuário (do rio Guaíba, entrada da capital gaúcha), se vocês resistirem Porto Alegre será bombardeada”. Isso eu ouvi no rádio, ninguém me contou. Eles estavam em Santos e, certamente, se a gente resistisse, eles iriam bombardear. A presença militar americana existiu, gente! Não foi uma ficção. Aliás, isso foi comprovado inclusive pelo governo norte-americano.
De repente, começaram os boatos de que o Brizola estava morto e seu corpo estava em tal lugar. As pessoas desconfiaram que era uma isca. “Não vamos lá, porque quem for eles vão prender”.
Como ficou o clima em Porto Alegre?
[ Mamberti ] Muita gente já estava sendo presa e a gente não sabia. Estava um clima de que todos corríamos riscos. Ainda mais nós que éramos fichados no PCB. Eu entrei em um estado de profunda depressão. Não no sentido de ficar prostrado, mas de questionamento: “o que eu vou fazer da minha vida?”
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A ideia que tínhamos de ditadura era a de Portugal. Tínhamos uma relação muito forte com a resistência dos portugueses contra (o ditador Antônio Oliveira) Salazar. Nós sabíamos que era barra pesada. E eu pensava: “meu deus, toda a minha vida foi estruturada em função de uma visão das transformações sociais…” De qualquer forma, tivemos informações de que o congresso do partido ia acontecer, mesmo clandestino, e eu continuei estudando no hotel.
Dois ou três dias depois, o Ildo Meneghetti, o governador que havia fugido, voltou vitorioso a Porto Alegre. De repente, eu vejo o povo todo de Porto Alegre nas ruas. Pensei, “eu não acredito, não é possível que esses gaúchos vão agora receber esse filho da mãe com homenagens…”
E foi maravilhoso. O cara lá (da praça do Palácio) disse: “Ildo Meneghetti, o carro está chegando, carro aberto, o povo aguarda Ildo Meneghetti…”. E aí veio uma sonora vaia. As pessoas nas janela dos prédios começaram a jogar papel higiênico e bosta – bosta mesmo – pela janela. Foi lindo. “Ildo Meneghetti está chegando”, e um segundo depois… “Ildo Meneghetti chegou ao Palácio”.
Vocês estrearam a peça?
[ Mamberti ] Três ou quatro dias depois do golpe. No dia da estreia, eu estou no meu camarim e vem uma pessoa da produção dizendo que tinha um carro preto lá embaixo, na entrada dos atores. “Tem uma pessoa aqui dizendo que precisa falar muito com você”. “Pronto”, eu pensei: “Vou inaugurar minha carreira de prisioneiro”. Todo mundo em volta e o elenco pergunta: “você vai?”. E eu: “vou fazer o quê? Se eu não for, eles vêm aqui e não vou deixar mexerem com vocês aqui”. Eu me despedi do pessoal como quem vai para a boca do lobo.
Daí chego na rua e o carro estava lá… Um cara abre a porta e me enfia dentro do carro. Eu entro e tropeço numa pessoa que estava deitada no chão e que pega na minha perna. “Quem está aí”, eu gritei assustado, achando que era um policial. A pessoa deitada era um cara todo de capote e de chapéu. Aí ele diz: “Sou eu”. E eu reconheci o Fernando Peixoto, diretor de teatro em São Paulo, também do partido. “Sou eu, o Fernando Peixoto. Eu estou incógnito!” Eu comecei a rir e ele também. “Que coisa patética!”, diziamo-nos.
“Serginho, vocês com aquela porra daquela rádio da legalidade, deduraram todo mundo. Companheiro tal, Companheiro tal”, ele dizia. Olha, foi uma situação… Isso é um exemplo de como a gente era completamente idealista. Não tínhamos nenhum esquema, nada. A gente foi de peito aberto. A resistência real começou depois.
Quando vocês voltaram para São Paulo?
[ Mamberti ] Depois da temporada de quatro dias, conforme o programado, nós voltamos para São Paulo.Voltamos de de ônibus e eu trazia uma série de jornais e as teses do congresso do partido. Tudo. Eu não ia me desfazer daquilo. Aí, quando chegou na fronteira gaúcha com Santa Catarina, os caras todos com metralhadoras entraram no ônibus. Eu pensei nas minhas coisas que estavam no bagageiro. O pessoal me olhava, “filho da puta, você é o comunista…”. Mas, por sorte eles só investigaram as bagagem de mão e nós passamos. Foi um horror aquilo. Um medo imenso naquela noite diante daquelas pessoas. Tem um lado patético e ridículo, porque os caras não eram pessoas preparadas. Mas, se por um lado era cômico, do outro era muito pior, porque eles eram amadores.
E a participação da sociedade civil?
O documentário Cidadão Boilesen trata dessa participação da sociedade civil que, na minha opinião, é o que emperra a questão da Comissão da Verdade hoje. (Boilesen foi um empresário dinamarquês naturalizado brasileiro, Henning Albert Boilesen presidente do Grupo Ultragás, acusado de ser torturador e de assistir a sessões de tortura, assassinado por militantes do MRT e da ALN – Ação Libertadora Nacional). A sociedade civil não só contribuiu como participou efetivamente do golpe. A maioria das pessoas pensa em apoio apenas estratégico, mas não foi isso. Empresários, banqueiros participaram mesmo. Inclusive, no Tribunal Tiradentes III, o professor Fábio Comparato utiliza um termo muito apropriado, ele fala de “golpe empresarial-militar”, não mais só golpe militar. Isso tem de ser identificado e lembrado porque para a gente na época, o golpe era apenas militar.
A sociedade estava totalmente mobilizada, iludida e enganada pelos jornais e pela imprensa da época. Apavorada com a ideia de comunismo e por boatos que diziam que as pessoas teriam de “dividir a casa e não sei mais o quê”, e que “comunista matava criancinha”. Era o que se dizia na época e as pessoas realmente acreditavam.
Você tinha a impressão, pelas notícias, que havia comunista debaixo da sua cama…
[ Mamberti ] É, e que eles estavam todos armados.
E chegando de volta São Paulo?
[ Mamberti ] Aí veio a notícia de que haviam incendiado a UNE, de que as pessoas já estavam sendo presas. Foi uma devastação o que eles fizeram. O ex-deputado Gregório Bezerra, um comunista histórico no país, um homem de idade, corajoso, por quem nós tínhamos um grande amor, foi arrastado por uma corda no meio da rua no Recife. Para humilhar mesmo. Gregório Bezerra é um heroi nacional. E a criminalização feita com o movimento das Ligas Camponesas? O Eduardo Coutinho que faleceu recentemente estava lá filmando o belíssimo Cabra Marcado para Morrer. Eles tentaram prendê-lo e tal.
Em São Paulo, a gente começou a se mobilizar. Eu lembro que a Vivian [Mahr], minha mulher, que não era do PCB, no dia 31 de março, acompanhou toda essa movimentação e foi ao Teatro de Arena onde ela tinha trabalhado. Chegou lá e disse para o (Gianfrancesco) Guarnieri, que era do PCB: “Guarnieri, acho que não posso ter mais dúvidas, eu quero me filiar ao Partido”. Ele olhou para a Vivian e falou: “o momento não é oportuno”.
mamberti4Certa vez, a Vivian foi com a Dina Sfat e a Joana Fomm para o Rio. A gente tinha uma roupa que o pessoal chamava de roupa da UNE – calça lee bege e camisa tipo Hering – e lá foram elas para a Fiorentina, um lugar onde todos se encontravam. Aí o Gláucio Gil chegou para elas apavorado: “meninas, vocês estão loucas? Vocês estão de uniforme da UNE?”. Era esse o clima e houve uma mobilização muito grande da classe artística. Nós fazíamos reuniões do PCB no Rio de Janeiro, lideradas pelo Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho] e pelo Ferreira Goulart, com 80 pessoas. Fazíamos aquilo nos teatros, depois dos espetáculos, quando fechávamos tudo.
Nós realmente achávamos que aquilo (golpe/ditadura) ia durar pouco. A liderança cultural do país resistiu bravamente – e não eram só comunistas, mas todos.Paulo Autran, Cacilda Becker, Fernanda Montenegro… Até porque a questão das liberdades era fundamental e os artistas é que tinham condições de ter comunicação e difundir isso para as pessoas. Em tudo o que acontecia, nós estávamos lá. Eu mais em São Paulo. Na passeata dos Cem Mil (1968), que se tornou uma coisa mítica no Rio de Janeiro, eu não pude ir. O Rio sempre foi o espaço para o mundo, quando batia tambor lá repercutia-se nacional e internacionalmente.
E havia uma resistência nas próprias peças. Já havia censura?
Sim, ela existiu o tempo inteiro. Era tudo no simbólico que a gente trabalhava. Por exemplo, em 1965, nós fizemos uma peça chamada Electra. Electra é a personagem vingadora, a que quer enterrar o corpo insepulto – que é o caso dos mortos e desaparecidos hoje. A gente fez a peça sobre esse mito e a Gláuce era a Electra.
Na época, o Brasil estava mandando tropas para a República Dominicana, um regime do povo que estava sendo exterminado pelos Estados Unidos (o 1º marechal preidente da ditadura, Castelo Branco, apoiou esta ação dos EUA e enviou tropas). Havia um certo cuidado do PCB porque eles estavam fazendo um acordo com o Costa e Silva (ministro da Guerra-Exército e sucessor de Castelo Branco) para salvar o pessoal do partido e os que estavam na clandestinidade. Foi quando eu me afastei um pouco do partido.
E, aí, à essa altura o elenco que não era do PCB decidiu fazer um manifesto contra o envio dessas tropas. E eu disse: “vou participar”. Os atores fizeram e assinaram o manifesto e a gente ia ler no palco, para a platéia. Havia um público muito solidário, as pessoas acreditavam na gente. Aí a Vivien, grávida, resolveu ler o manifesto: “eu leio, vai ver que eles querem prender alguém e não vão querer prender uma grávida. Assim ninguém interrompe a carreira da peça”. Então, a Isolda (Cresta, atriz) não deixou. “Não, você não vai fazer isso. Você está grávida, não sabe quem é essa gente, eu vou ler. Se não acontecer nada comigo, você lê amanhã”.
Resultado: o DOPS levou a Isolda. Eles ficaram no Teatro do Rio (hoje, Teatro Cacilda Becker) e a Gláuce chegou para um inspetor que conversava com a gente, o inspetor Mário: “cadê Isolda?” Ele respondeu: “Vocês não resistam, façam o espetáculo normalmente, palavra de amigo”. E a Gláuce: “quem disse que nós queremos ser seus amigos? Nós não somos seus amigos. Cumpra com a sua parte e nós cumprimos com a nossa. Sem Isolda não tem espetáculo”.
A gente ficou esperando a Isolda voltar até a hora do espetáculo começar e nada. Aí ele (o inspetor Mário) contou para nós: “ela não vai ser liberada. Toma cuidado, esse pessoal é barra pesada, vocês estão defendendo…”. Chegou a hora do espetáculo, nós subimos no palco e não falamos nada que a Isolda estava presa. Os caras do DOPS estavam todos nas laterais do teatro. A Gláuce começou dizendo “como os senhores podem ver, nós estamos prontos aqui para fazer o espetáculo, mas não vamos fazer por motivos alheios à nossa vontade”. E aí ela abriu os braços mostrando os agentes do DOPS. Neste dia, a Françoise Dorleac (morreu aos 25 anos, em acidente de carro em Nice), irmã da Catherine Deneuve, estava assistindo ao espetáculo. O povo levantou e nos aplaudiu depois.

“Onde está o Sófocles?”

Depois o inspetor contou que a Isolda estava no DOPS. Aí na mesma noite nós chamamos os jornais, artistas, estudantes e fomos todos para a porta do DOPS exigir a libertação da Isolda. Então a minha sogra, uma senhora extraordinária, que estava com a gente sumiu. Cadê ela, a gente procurando e dali a pouco, umas quatro da manhã, sai a minha sogra do DOPS com a Isolda do lado. Ninguem sabe como, ela tinha conseguido entrar. Eles tinham colocado a Isolda em uma cela escura e havia baratas que ficavam subindo pelas pernas dela. Uma coisa horrorosa.
mamberti6Aí aconteceu uma coisa que virou história. E eu sou testemunha, eu assisti. Um cara do DOPS chegou para nós e disse: “escuta aqui, a dona Isolda é subversiva, todos vocês são, mas eu quero saber quem é esse Sófocles. Onde ele está?” Então, a Gláuce respondeu: “eu acho um pouco difícil você achar o Sófocles, porque ele já morreu há dois mil anos”. Isso virou uma piada geral.
No domingo, o inspetor Mário que havia dado todas as dicas para nós, chegou no teatro: “pelo amor de deus, meu filho está sendo ridicularizado na escola, digam para ele – ele trouxe o menino – que não fui eu quem quis prender o Sófocles”. Então, nós dissemos, “não, não foi teu pai. Teu pai foi um cara muito legal com a gente e tal…” E o menino se abraçou com o pai, chorou e tudo. Essas coisas aconteciam. O inspetor Mário dava informações, avisava, “cuidado, vão prender fulano…”
Vocês recebiam ameaças?
[ Mamberti ] O processo de resistência foi muito forte e a gente nessa época já estava na rua. A gente recebia ameaças, cartas. Em 1968, eu fiz Navalha na Carne, do Plínio Marcos, no Teatro Oficina, quando teve o ataque do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), aqui na rua dos Ingleses (Bixiga, São Paulo), no Teatro Ruth Escobar, onde estava em cartaz o espetáculo Roda Viva, um musical do Chico Buarque.
Na época, a Vivien estava grávida do nosso 3º filho e a gente pegava a minha cunhada que trabalhava no Roda Viva no teatro aqui do lado. Naquele dia (18 de julho de 1968), a Vivian estava um pouco sonolenta e eu fui buscar a minha cunhada. Conforme fui chegando perto do teatro, eu vi aquela gente correndo e reconheci a Marília Pera (atriz de Roda Viva) sendo arrastada pelos cabelos. Eles jogaram ela no meio da rua e foram embora. Aquilo foi monstruoso.
Uma operação paramilitar chamada Quadrado Morto em oposição ao Roda Viva, invadiu o local do espetáculo. Em três minutos, eles destruíram o teatro. Pegaram os homens e colocaram num camarim e fizeram um corredor em meia lua com as mulheres. Uma amiga foi arrastada pelos seios. A minha cunhada alegou que estava grávida e um cara não deixou que batessem nela. A mulher do Paulo César Pereio estava de costas e os caras deram uma bordoada nela. Ela ficou em estado de choque – “por que? por que?”…Nas costas dela, no lugar que o cassetete bateu, formou-se um vergão na forma do cassetete mesmo, tamanha a força com que bateram. Eu pensei que tivesse quebrado algum osso, mas era o vergão. Vejam a força e a violência.
O maquinista do teatro estava com a bacia quebrada porque ele tentou defender o material cênico – tinha som e tudo – e os caras o quebraram. Pegaram as (guarnições que separavam) filas dos teatros e foram jogando uma por cima da outra. Acionaram os extintores de incêndio, aquilo era espuma só. Foi tão rápido, que as pessoas mal tiveram tempo de ver o tamanho do estrago. No dia seguinte, eles publicaram no jornal uma matéria paga, “Operação Quadrado Morto, participaram tantas pessoas, não sei o quê”. Tudo organizado pelo Exército.
CartazRodaVivaEm meio a confusão, um carro pára e me chamam. Era o Rodrigo Santiago (ator de Minas, que fez história no teatro e nas novelas da TV brasileira) que fazia “Roda Viva” com a Marília Pêra. O Rodrigo estava escondido lá dentro do carro. Ele estava sem roupa, mas um pessoal pegou o Rodrigo, deu um paletó para ele e o ajeitaram ali. A Marília quando perguntamos “Marília o que foi?”, ela teve um acesso de riso histérico, de nervoso. Eu saí dali e fui imediatamente para o programa do Carlos Imperial para denunciar.
Já tínhamos montado um esquema para denunciar publicamente que as forças da obscuridade tinham atacado a gente. Fomos na mesma hora. Carlos Imperial abriu o programa na Tupi (para a denúncia ser feita) e no dia seguinte, organizamos uma resistência com os estudantes no Teatro. A polícia tinha oferecido segurança, mas ninguém confiava.
Os estudantes faziam a segurança?
[ Mamberti ] Sim. Nós montamos um esquema de segurança com os estudantes. Minha ligação com o Zé Dirceu vem daí. Todas as lideranças nos ajudavam nesse processo. No dia seguinte, da invasão do Roda Viva, os estudantes ficaram com a gente no back stage, com pedaços de pau, barra de ferro, pedras, caso precisasse nos defender. Era o nosso arsenal. Pedimos, também, para que o público passasse a lotar todas as casas. Eles também eram a nossa segurança. Durante um mês e meio, todas as peças em São Paulo lotaram. Vejam a comunicação que nós tínhamos com o povo.
Naquele mesmo ano, a Norma Bengell, que era extremamente conhecida, estava interpretando “Cordélia Brasil”, do Antônio Bivar. Ela estava caminhando rumo ao teatro quando foi sequestrada e levada para Porto Alegre ou Santa Catarina. Isso aconteceu logo depois da invasão do Roda Viva. Norma estava num hotel na Xavier de Toledo e foi pega em frente a Biblioteca Mário de Andrade (centro de São Paulo). Era muito amiga minha. Ela ia em todas as passeatas, uma mulher de grande coragem.
A imprensa dava espaço para as denúncias?
[ Mamberti ] O jornal O Estado de S. Paulo que a princípio havia aderido ao golpe, começou a ficar contra a censura, porque eles viram que o Golpe não seria rápido. Até o governador (golpista, Carlos) Lacerda ficou contra o Golpe depois.
Como vocês driblavam a censura, Mamberti?
[ Mamberti ] A essa altura (1968) a gente já tinha grandes problemas com a censura. Agora, ao contrário do que todos possam pensar, foi um período dos mais criativos porque mesmo com toda a censura, a gente não se inibiu. Navalha na Carne foi censurada e depois liberada.  Às vezes, a gente botava uns palavrões e tal – umas iscas – para que eles não vissem o que a gente não queria que fosse cortado. Era uma técnica que a gente usava e alguns censores até nos aconselhavam a isso. O Coelho Neto, que era um cara nosso que estava trabalhando na censura, dizia pra gente fazer isso.
Nesse momento, 1968, eles não conseguiam mais dominar do jeito que tinham proposto o golpe. Estava tudo completamente desacreditado. A revolução (a verdadeira) era popular e o teatro era a vanguarda desse processo. O Eros Grau que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) reunia-se com a gente no Teatro de Arena, no bar Redondo. Até hoje, eu não entendi porque uma pessoa como ele, com quem eu mantive uma relação pessoal, votou contra a revisão da Anistia (em 2010).

Cultura & Educação

Havia um pacto com a sociedade pelas liberdades democráticas. E aí começa o processo mesmo de enfraquecimento do poder autoritário. Quando o Golbery (general Golbery do Couto e Silva, fundador do SNI logo após o golpe) percebe que a resistência vinha da estreita relação de cultura e educação, aí vem a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) que, na prática, separou completamente Educação e Cultura. A educação e a cultura não se separou em 1985, quando o ministério (criado pelo governo Sarney) separou. Foi ali, no início do golpe e durante a ditadura militar que isso aconteceu.
Soma-se a isso o aperfeiçoamento do videotape que permite que se formem as grandes redes de TV. Antes era “ao vivo”. Com o videotape passa-se a ter uma informação só. O golpe de 68, o AI-5, o chamado golpe dentro do golpe, se consuma, claramente, a partir desses dois atos importantíssimos no começo da década de 70, o surgimento das redes nacionais e a LDB. A Lei de Diretrizes e Bases é de 1972 e as redes nacionais de TV se consolidam a partir de 1973. Esses são dois marcos, em pleno anos de chumbo mesmo. Aí vem o milagre brasileiro e nas novelas você só vê gente loira, branca, enquanto as pessoas estavam morrendo nas cadeias e a luta armada acontecendo.
Como vocês reagiram a isso?
[ Mamberti ] A gente começou a guardar as pessoas. Eu recebi nesta casa aqui que vocês estão, a (atriz) Heleny Guariba, quando ela saiu da prisão. Ela me contou tudo o que passou, chegou a ver criança sendo amamentada e levando choque. De repente, ela diz: “Sérgio, eu não estou me sentindo segura na sua casa, nem você está em segurança”. Estava um dia de chuva, escuro já, e a gente foi andando pela cidade. Aí ela me contou que havia visto o corpo do Bacuri (Eduardo Collen Leite, o Bacuri, militou em organizações de esquerda que resistiram à ditadura militar e foi assassinado sob tortura dentro dos órgãos de repressão – sua morte é considerada a mais cruel e violenta de todas as vítimas do regime militar). Uma coisa tão violenta que ela viu no corpo dele. O que ele sofreu de mutilações… “Eu me recusei a dizer que ele era o Bacuri”, ela contou. E eu perguntei se ela ia continuar na luta armada. “Eu vou. Não tenho mais alternativa. Já estou envolvida demais nesse processo. Eu tenho o meu compromisso”. Um mês depois ela foi para o Rio e sumiu. Possivelmente, morreu na Casa da Morte de Petrópolis.
Eu tinha, também, um amigo chileno que havia voltado ao Chile para trabalhar com cinema e ficamos um tempo sem ter notícias dele. Ele havia deixado uma pasta com roteiros aqui em casa. Em 1973 (depois do golpe do general Augusto Pinochet que derrubou o presidente Salvador Allende), um dia, de madrugada, toca a campainha. Sempre que tocava, a gente tremia. Eu ia, ali até aquela janelinha do banheiro espirar. Vivien e eu estávamos deitados. “Quem é?”. E ele, “sou eu, fulano de tal?”. “Sim!…” Minha mulher e eu nos levantamentos e o abraçamos. Ele contou como foi preso, como ficou num cubículo no Estádio Nacional no Chile e levantou o cabelo. Ele usava um cabelo comprido. Os caras cortaram o cabelo dele a baioneta e tiraram junto pedaços da pele. Ele estava indo para o Canadá e chegou a nossa casa de madrugada porque sabia que estava sendo seguido pela polícia do Chile aqui no Brasil.
Era a Operação Condor?
[ Mamberti ] Era Operação Condor, claro. Por isso o (jurista) Fábio Konder Comparato, no Tribunal Tiradentes III, no Tuca (PUC-SP) há poucos dias falou que a Operação Condor matou 60 mil pessoas na América Latina e que os Estados Unidos participaram disso… Essa história não está contada ainda.
Quando eu conheci a (uruguaia) Lilian Celiberti, lembrei quando ela foi sequestrada no Rio Grande do Sul pela polícia brasileira e entregue a polícia política uruguaia. Ela e o companheiro dela, Universindo Dias (falecido há poucos ano). São histórias que estão aí. Foi comovente. Eu disse a ela: “parece que te conheço a vida inteira, porque ficamos tão solidários a você…”.

Próximo aqui de casa, o pessoal da luta armada se escondia nas pensões. Eu e o meu irmão, Cláudio Mamberti, guardamos muita gente. E acontecia cada coisa.

Certa vez, o Peri Igel (alto executivo da Ultragás), que havia sido patrocinador de uma peça da Ruth Escobar, entra com uns caras de metralhadora nos bastidores do Teatro dela. Nós estávamos fazendo O Balcão (do teatrólogo “maldito” francês Jean Genet). A Ruth, com muita coragem, vivia libertando um monte de gente da cadeia. O Peri entrou aos berros no camarim dela. O Boilesen (também da Ultragás) já havia sido morto e ele dizia: “Ruth, querem me matar! Mataram o Boilesen, mas queriam é me matar. Você sabe quem foi”. E a Ruth: “eu não sei”. O Peri e o Boilesen eram da Ultragás, que financiava a ditadura. A Ruth respondia que não sabia. Eles brigando dentro do camarim e a peça rolando no palco. Aí, me pedem: “Sérgio, arranja um jeito de tirar a Ruth de lá”. E lá fui eu, bater na porta, os caras todos armados. “Ruth, está na hora de você entrar em cena”. Abre a porta, o Peri sai furioso e sai todo mundo atrás dele.E não era coisa nenhuma hora dele entrar…foi o que me ocorreu fazer.
Além das dramáticas, muitas outras coisas cômicas também aconteciam. Certa vez, estávamos fazendo uma peça chamada Frank VI, eu e a Beatriz Segall. Eu era o Frank VI e ela a minha esposa. Eu era líder de uma organização bancária e quando uma pessoa chegava para depositar seu dinheiro no banco, quem tinha a arma era o caixa. Aí, um cara, fora do Teatro, nos assalta, aborda a Beatriz com uma arma nas mãos e ela, obviamente, pensou que era um dos atores da peça. E o cara “eu quero é o dinheiro da bilheteria”… Nós tivemos, então, de abrir o cofre para o cara ver que nós não tínhamos o dinheiro. Depois acabamos contando para o público o que tinha acontecido. Era uma época em que tudo podia acontecer. Nós resistimos bravamente.
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Como foi trabalhar no período do Médici?
[ Mamberti ] Ali foi treva mesmo. Depois do AI-5, a coisa se radicalizou de tal maneira… Houve fechamento do Congresso e a opção pela luta armada. Nisso houve uma separação. Eu não estava convicto de que a luta armada iria resolver. Ao mesmo tempo, eu achava que eles (os da luta armada) eram companheiros revolucionários. A gente escondia, criava um mini apoio porque eles estavam arriscando a vida o tempo todo.
A gente tinha uma relação. Eu trabalhava na TV Record. E quem fazia a segurança da Record? O delegado Sérgio Paranhos Fleury com todos os seus agentes. De manhã a gente chegava para trabalhar e eles estavam na porta. O Fleury com a perna cheia de picada de droga. Ele não aguentava a barra pesada e enfiava a cocaína…os caras todos armados na porta.

As mesmas forças que derrubaram
o Jango são as que hoje estão aí

A morte do Marighella foi comemorada por eles no café da manhã da gente. Eu conheci todos eles. Eles ficavam na Record porque era uma emissora muito poderosa e eles tinham uma relação pessoal com os Machado de Carvalho. Todas essas empresas estavam minadas. Era uma relação de intimidade. Com os empresários também e é isso que eles não querem que venha à tona (a relação de proximidade deles com o golpe e a ditadura). É um desafio para nós, porque enquanto isso não for desvendado…Essas mesmas forças foram as que derrubaram o Jango. São as que hoje estão aí. A gente parece que não aprende.
Eles (o pessoal do Fleury) iam pegar o Lamarca e obrigaram o maquiador da Record a fazer perucas, bigodes falsos… O maquiador estava apavorado: “agora vão descobrir que eu fiz os disfarces, eu estou frito”. Um dia o Campão (um agente da equipe de Fleury) chegou para mim e disse: “tem um companheiro de vocês que vai ser preso”. Eu disse a ele: “vocês precisam entender que o nosso processo é ideológico, não temos participação da luta armada, artista é fundamentalmente transgressor.” E ele: “mas esse cara está auxiliando sim. Ele é pombo-correio. Avisa a esse cara que ele vai ser preso. É um cara que viajou para a Europa recentemente”.
Aí eu fiquei pensando… quem tinha viajado? Só o Zé Celso e o (Augusto) Boal. Aí eu pensei: ele deve ter falado pra eu avisar e se eu for avisar eles vão seguir e pegar. Mas, não posso deixar de avisar. Eu consegui uma ponte com o Zé Celso e ele disse que (a ameaça de prisão) não tinha nada a ver com ele. Fiz o mesmo com o Boal, por meio de alguém, indiretamente, e me disseram que não tinha nada a ver com ele. Dois dias depois o Boal foi preso. Havia dois caras do DOPS fazendo uma oficina com ele. Ele estava dando aula e o cara disse: “eu queria passar na sua casa para conversar”. Então pegaram-no e o levaram para prisão. Eram alunos infiltrados. Teve a menina famosa a Maçã Dourada que namorou com todo mundo.
E os jornais naquela época?
[ Mamberti ] Em 1968, nós devolvemos o prêmio Saci porque o Estadão, que já então estava contra a ditadura, achava que as peças do Plínio Marcos tinham um conteúdo ultrajante. Aí o Walmor Chagas propôs e a única maneira de mexer com o Estadão era essa. A gente entregou os Sacis junto com a Fernanda Montenegro e entregamos um Saci simbólico na redação do Estadão.
Não podemos esquecer que o Estadão era um jornal de direita, mas a maior parte da redação era de esquerda e eles respeitavam isso. Eles tinham um respeito especial. Não abandonavam jornalistas presos.
Mamberti, você lembra de alguma peça, em especial, que te marcou muito?
Os fuzis da sra. Carrara. Quando eu me formei na Escola de Arte Dramática, fui fazer parte de um grupo do Mackenzie para poder fazer parte do Festival do Pascoal Carlos Magno, em Porto Alegre. Nós levamos a peça mais revolucionária do Festival, Os Fuzis da Senhora Carrara, totalmente inspirada num posicionamento (revolucionário). O Teatro de Arena estava montando a peça aqui em São Paulo e nós fomos, nós a levamos para o festival lá em Porto Alegre.
Eu fui junto com a Patricia Galvão, a Pagu, Plínio Marcos…O José Serra que era ator, depois foi liderança estudantil e hoje é político, estava no ônibus. Ele era da Juventude Universitária Católica (JUC). Até hoje, quando nos encontramos, ele me lembra de um episódio. A gente criticava muito o hino nacional e o Serra conta que no dia em que o Brizola convocou todo mundo para levantar e cantar o hino nacional (na Campanha da Legalidade, em 1961, para garantir a posse de Jango, vetada pelos militares) , eu o peguei pelo braço e disse: “não, você não vai cantar esse hino reacionário!”. Até hoje nós rimos desse fato.
No palco do teatro, era eu e a Iara Amaral e quando terminava o espetáculo no festival de Porto Alegre, nós terminávamos com os fuzis nas mãos e cantávamos as canções da revolução espanhola…. Terminava o espetáculo, a plateia inteira cantando junto e nós com os fuzis. Eles (o público) pegavam a gente e nós saíamos nas ruas de Porto Alegre, com os fuzis nas mãos. Tinha operários e camponeses. Isso em 1962. Foi uma coisa emocionante.
Muitos como eu estávamos influenciados pela revolução cubana. O Fidel esteve aqui com o Guevara e eu conheci os dois. Tenho um amigo, inclusive, que diz que eu o apresentei ao Guevara. Eu perguntei para o Silvio Bandi que é um cara que tinha uma proximidade e ele lembra de um almoço no Filet do Moraes, onde estavam o Guevara e a mãe dele. Esse amigo meu falou que a coisa mais linda na vida dele foi quando eu o apresentei para o Guevara. E eu não me lembro de nada. Eu apaguei isso. Até lembro do Fidel e do Guevara, claro, mas eles eram que nem a gente.
E o pessoal da música, Mamberti?
Falando nisso, eu aproveito para  lembrar que está passando um musical muito bonito sobre a história da Elis – “Elis, a musical”. No início de abril de 1964, nos dias do golpe, a Elis assistiu O Inoportuno em Porto Alegre e adorou. Eu a vi, então, estourar como cantora e se transformar no que ela foi.
Vi, também, o primeiro dia em que a Bethânia trouxe Caetano para o palco do teatro e disse “meu irmão Caetano”. A Nara Leão havia tido um problema nas cordas vocais e tinha de fazer uma operação. Ela disse para mim: “Eu vou sair do (show) Opinião (no Teatro de Arena)”. E eu? “não!” Então, a Nara me falou, “Serginho, o Opinião é maior do que eu”. “Mas, Nara você é o espírito disso”. E ela contou que tinha ido a Bahia e conhecido uma cantora maravilhosa. “Em uma semana vocês vão me esquecer porque ela é muito maior do que eu. Vocês vão ver o talento dessa mulher. É extraordinária”. E no dia, entrou Bethânia, de uniforme da UNE, cantando “É de manhã, é madrugada…”
No pós-golpe tinha a tristeza do exílio também, né?
Sim. Carlos Azevedo casado com uma prima minha, da Revista Realidade é um exemplo disso. Eles fizeram uma denúncia contra o (delegado Sérgio Paranhos) Fleury, quando a polícia se aparelhou mesmo para praticar as torturas. Aí, das duas uma: ou eles teriam de sair do país ou partir para a clandestinidade. E eles resolveram ficar na clandestinidade. Mudaram seus nomes e eu fiquei 10 anos sem vê-los. Só tinha notícias por meio de uma tia que os recebia. Foi só com a anistia que pude reencontrá-los. Certa vez me questionaram: “mas o Zé Dirceu foi muito cruel porque mudou de identidade, até plástica fez e não falou nem para a mulher dele…” Eu contei essa história de minha família e a pessoa comentou que isso tudo não ficava claro (no caso do Zé), que parecia realmente um ato cruel e de insinceridade. Mas, o fato é que a sociedade civil não imagina o que foi um processo ditatorial. Pessoas podiam ser mortas. E isso afetava todos os níveis da vida.
Lembro de uma vez, quando eu morava no Rio, ainda em 1966, chegou em casa um marinheiro, Adeuzito Bezerra. Ele não saia do quartinho de empregada. Fazia as refeições com a gente, mas não podia sair de jeito nenhum dali. Foram três meses assim. Um dia, eu acordei e cadê o Adeuzito? Perguntei para a minha empregada e ela: “não sei, seu Sérgio, eu cheguei de manhã, a porta do quarto estava aberta e ele não estava. O que tinha acontecido? Fiquei pensando…” Lá pelas 8h30, ele apareceu. “Não aguentei, eu estava sufocado, eu tive de sair”. Ele contou que deu um desespero nele à noite e ele acabou saindo para tomar um banho de mar. Ele estava sufocado. Aí, eu tive de comunicar as pessoas responsáveis por ele e ele precisou sair de nossa casa. Um belo dia, pouco tempo depois, eu leio no jornal: “Avião sequestrado no Chile”. E o cara que sequestrou era o Adeuzito. Ele tinha estado em Cuba e estava no Brasil se preparando para encontrar o Che Guevara. Conseguiu voltar para Cuba. Anos depois, o Orlando Sena (roteirista de cinema) contou que era da cidade do Adeuzito e que ele havia participado da Revolta dos Marinheiros (10 dias antes do golpe de 64, no Automóvel Clube, no Rio).
Muita gente afirma que a prisão do Zé e do Genoino é uma desforra daqueles tempos. Como você avalia isso?
mambert2Essas prisões agora do mensalão, como tudo foi conduzido, deixa claro que aquelas elites que deram o golpe e apoiaram a ditadura ainda tem um poder muito forte no Brasil. Essa história toda estourou uma semana ou quinze dias depois que o então presidente Lula havia inviabilizado a instalação da ALCA (proposta e defendida pelos EUA). No ambiente em que eles não podem mais agir militarmente, a estratégia é a demoralização das lideranças. O que foi o mensalão se não a desmoralização histórica das lideranças?
Eles se infiltram das maneiras mais insidiosas. Só o que ouvimos falar… Não agem militarmente agora, mas desmoralizam as lideranças. Vejam o que aconteceu na Venezuela? As coisas estão centralizadas em Caracas e nas províncias que tinham resistência ao chavismo. Não é tudo aquilo que eles falam. Existe toda uma cobertura totalmente manipulada.
Certa vez, eu conversei com um diretor de teatro do Iraque. Ele contou que depois dos bombardeios norte-americanos – porque, primeiro eles bombardearam -, chegaram as tropas e, com elas, um caras vestidos de ninjas começaram a incendiar os teatros, as bibliotecas. E aí saquearam os museus. Na Síria agora, eles estão fazendo a mesma coisa, saqueando os museus. A mesma coisa que os bárbaros faziam – ou seja, tirar a identidade cultural dos países que invadem e ocupam ou querem ocupar. A raiz da resistência a isso é educação e cultura.
E nós estamos descuidando nisso. Existe, inclusive, um afastamento do PT em relação às suas tradições.
Isso te deixa cético?
Cético não, mas preocupado. O processo de eleição do Fernando Haddad aqui em São Paulo não teve participação da sociedade civil. E só através da participação da sociedade civil é que nós nos firmamos. Claro que precisávamos de um técnico de marketing. Isso é tecnologia de informação, mas a tecnologia de informação não pode ditar os rumos políticos. E a nossa característica é a formação. Você não pode substituir a TV e a internet pela participação efetiva. Não podemos confundir isso. As redes sociais mobilizam, mas tanto para o bem como para o mal. É uma ferramenta, isso é muito perigoso.
A convenção da diversidade cultural aprovada agora estabelece claramente que a relação fundamental é cultural e que a educação é um traço hierárquico da cultura. É uma discussão que está muito amadurecida. A educação sozinha é adestramento. É formação de mão de obra. Você não pode colocar apenas “Educação! Educação!”, a não ser que você fale de educação do ponto de vista cultural como era o caso do Paulo Freire.
Infelizmente, a única administração que efetivamente abraçou a proposta, o método Paulo Freire foi a da Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo. Eu não vejo a proposta educacional dele – mesmo que seja citada no ministério – como uma estrutura. Porque o Paulo constrói a educação a partir da ecologia cultural que forma o indivíduo. O cara aprende a ler, no campo, por exemplo, falando da semente, da terra, de acordo com a cultura dele. E isso o cara vai ampliando. A relação entre a cultura e a educação é o que produz a transformação cultural e a Convenção da Diversidade Cultural diz que o ciclo de desenvolvimento hoje não pode mais ser sustentado apenas sob o ponto de vista econômico. Esse ciclo precisa considerar esses fatores culturais. O que são eles? O homem.

“A grande obra é inventar e reinventar gente”

O Betinho dizia que cultura é gente e que a grande obra é inventar e reinventar gente. O PT se reinventou o tempo inteiro. A gente fazia campanha indo pra rua, com camiseta, botton. Não há dúvida nenhuma que a chegada dos marqueteiros foi importante, mas não podemos substituir uma coisa por outra.
Quando eu estava na Secretaria da Cultura (do MEC, em Brasília), nós fizemos o primeiro projeto, o Mais Cultura na Educação. Ele foi assinado pelo ministro Fernando Haddad e o ministro Aloisio Mercadante implementou depois de um ano e meio. Existe uma incompreensão disso. Temos de ter matemática, ciência e tecnologia, mas não podemos pensar só em termos… No Renascimento, havia uma concepção da cultura como um guarda-chuva geral que abrangia tudo, ciência, matemática etc. A gente não pode ver as coisas de forma separada.
Quem setorializou tudo? A civilização americana onde tudo é especializado. Você vai na Medicina e o cara é um grande especialista do coração, mas não sabe nada de gastro. Então você sara de uma coisa e fica doente em outra. O que é a medicina oriental? Ela parte de uma visão integral.
O Acordo MEC-USAID impôs isso aqui, especializou tudo, tirou a visão integral do processo educacional ainda no início da ditadura…
Exatamente. Mas, ainda naquele tempo, a Globo para se firmar, precisou trazer o pessoal do PCB – Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnierri, Gianetti, Carlito Maia, Carlos Zara, o Valter Jorge Durst, o Lauro César Muniz… Todos nós éramos do partido e aí começamos a fazer novela com conteúdo político, social e nacional. Aí a Globo se firma não apenas na questão técnica, mas com esse conteúdo pode se impor culturalmente naquele período.
Você acha que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) vai chegar a algum lugar?
Foi mais longe do que antes. Mas, eu sinto que eles caminham com muita dificuldade. Os arquivos da Forcas Armadas nunca são abertos. Há aí na área um pacto de silêncio. Mas o Exército tem informações importantes certamente. E existem esses sigilos oficiais não sei pra quê. Só para preservar o status quo.
Qual a importância de toda essa memória de luta, Mamberti?
Se as pessoas virarem as costas para isso, é sinal de que perdemos a batalha. A gente escreveu dentro dessas linhas. A coerência nossa está num outro nível que passa pela emoção.

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