O DIA, assim como ‘O Globo’, ‘JB’, ‘Estado de S. Paulo’ e ‘Folha de S. Paulo’, também apoiou o golpe de 1964 que depôs o presidente João Goulart. Historiador da PUC-SP afirma que os jornais da época endossaram a ideia de setores minoritários, mas poderosos, que influenciavam a sociedade brasileira
Rio - Os cariocas que foram às bancas na manhã
de 31 de março de 1964 se depararam com o título em letras garrafais na
primeira página do DIA
, ao estilo das manchetes policiais: “Exército e Marinha unidos no mesmo
objetivo: disciplina!” O jornal mostrava assim o seu apoio ao golpe
militar, que poucas horas depois expulsaria da presidência João Goulart
para iniciar um período negro de 21 anos na História do Brasil. Como
O DIA
, a ampla maioria da imprensa brasileira apoiou a quartelada. “Desde
ontem se instalou no País a verdadeira legalidade”, defendeu o editorial
do ‘Jornal do Brasil’, em 1º de abril. Já o editorialista do ‘Globo’,
no dia 2, declarou o Brasil salvo da “comunização” e sugeria aos
brasileiros “agradecer aos bravos militares que os protegeram dos
inimigos”. No Rio, apenas a ‘Ultima Hora’ defendeu Jango.
Passados 50 anos do golpe, o tom dos jornais ao tratar do tema é justamente o oposto. Desfiam uma série de críticas e denúncias contra a supressão dos direitos civis, a tortura e os assassinatos praticados pelo governo militar. Tudo como se a imprensa nunca tivesse ficado ao lado do regime que se instaurou. Analisar mudança tão radical pode ajudar a desmistificar o papel dos meios de comunicação na cobertura política brasileira. “A grande imprensa construiu uma memória para si que não corresponde à realidade”, define a historiadora Beatriz Kushnir, autora do livro “Cães de Guarda”, sobre o papel do jornalismo na ditadura. “As redações aderiram maciçamente ao golpe, pedindo a saída de Jango. Tempos depois, passaram a conviver com a censura, mas muitas empresas jornalísticas continuaram a ter ligação com o governo militar.”
Enquanto se passava por intérprete da insatisfação nacional, a imprensa tinha informação para saber que a população não estava contra Jango. Eram duas pesquisas do Ibope. Uma delas, sem contratante identificado, foi realizada entre 9 e 26 de março de 1964, em oito capitais. Uma das questões era sobre a necessidade da reforma agrária defendida pelo presidente: em todas as cidades, a maioria dos entrevistados aprovou a medida. A maior se deu no Rio, com índice de 82%. Em resposta a outra pergunta, pessoas ouvidas em cinco das oito capitais disseram que elegeriam Jango caso ele tentasse a presidência em 65.
Essa pesquisa não chegou a ser publicada nos jornais daquele ano. Foi resgatada do esquecimento há pouco por Luiz Antonio Dias, professor de História da PUC-SP, prestes a lançar o livro “O Jornalismo e o Golpe de 1964: 50 Anos Depois”. “Os jornais, na verdade, endossavam as ideias de setores minoritários da sociedade, mas poderosos”, analisa Dias. Outro levantamento, feito em São Paulo entre 20 e 30 de março, a pedido da Fecomércio, revelava que 72% dos pesquisados achavam o governo Jango de razoável a ótimo. Entre os mais pobres o índice subia para 86%. (Igualzinho o governo Dilma agora)
O professor acredita, porém, que os integrantes de vários desses veículos de comunicação certamente não imaginavam que João Goulart seria sucedido por um regime tão truculento. “Com a censura e a escalada de arbitrariedades, muitos jornalistas passaram a enfrentar o governo militar e sofreram consequências trágicas, como foi o caso de Vladimir Herzog (profissional paulista assassinado em 1975, por enforcamento, numa prisão do DOI-CODI, em São Paulo).” A longa temporada de atuação dos censores deixou marcas profundas. “Aprendemos a ter ódio e nojo da censura e das ideologias pervertidas que tentam enfraquecer a liberdade de expressão”, acredita Aziz Filho, atual diretor de redação do DIA.
Do apoio ao repúdio à ditadura, a análise da atuação dos jornais nesse período pode render boas lições para quem vê a política através da imprensa. “O que está publicado não é a verdade dos fatos, mas apenas uma determinada visão dos fatos”, explica Beatriz Kushnir. Vinda do passado, a lição que fica para o presente e para o futuro é a de ter leitura crítica sobre tudo o que os jornais publicam – inclusive essa reportagem que você acaba de ler agora.
Censura bem antes do AI-5
Um erro comum é marcar o início da censura à imprensa apenas em 1968, depois do anúncio do Ato Institucional número 5, que restringiu ainda mais as liberdades no Brasil. Alguns anos antes, vários jornais que se opuseram ao governo militar foram invadidos e tiveram suas instalações destruídas. Isso aconteceu com periódicos de médio porte, mas também com grandes veículos de imprensa, como os extintos jornais ‘Ultima Hora’ e ‘Correio da Manhã’, ambos do Rio de Janeiro.
Depois de 68, a censura tornou-se sistemática e em muitas redações os representantes do governo acompanhavam o fechamento dos jornais para determinar o que podia ou não ser publicado. “Lembro de dois coronéis fardados que ficavam na redação no papel de censores”, lembra o jornalista Luarlindo Ernesto, do DIA , que na época trabalhava no jornal ‘O Globo’. “Várias vezes chegavam com uma relação de assuntos que não poderiam ser publicados.”
O teor dos temas proibidos ia desde manifestações de insatisfação política a delitos de vários tipos praticados por membros das Forças Armadas – incluindo crimes passionais. Alguns jornalistas que desobedeciam à censura foram detidos e levados para a prisão da Ilha das Flores. Depois de algum tempo, a ditadura adotou o método de enviar às redações ordens escritas, com detalhes sobre o conteúdo recomendado. Eram os chamados “bilhetinhos.” À frente do Jornal do Brasil, Alberto Dines, por exemplo, contou ter recebido 288 ordens desse tipo, de setembro de 1972 a dezembro de 1974.
Em muitas ocasiões, os meios de comunicação tentaram driblar as limitações impostas pela censura. Ao noticiar a publicação do AI-5, por exemplo, o JB aproveitou a coincidência de uma data comemorativa para estampar na primeira página: “Ontem foi o Dia dos Cegos.” Em outro espaço, usou a previsão da meteorologia para destilar mais ironia: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O país está sendo varrido por fortes ventos. Mínima – 5 graus, no Palácio Laranjeiras. Máxima – 37, em Brasília.” Na chamada imprensa alternativa, O Pasquim foi o campeão de desobediência. Ficou famosa a entrevista com Leila Diniz em que os palavrões foram substituídos por asteriscos e cifrões.
Apesar desse tipo de estratégia, a historiadora Beatriz Kushnir avalia que as empresas jornalísticas não foram tão firmes como deveriam ter sido no repúdio à censura. “Se essa resistência tivesse sido tão grande, os 220 censores que tinham a missão de controlar toda a imprensa brasileira não conseguiriam dar conta das suas tarefas”.
‘Correio’ é exemplo da guinada
Um caso extremo nessa trajetória da imprensa, que passou da defesa do governo militar à oposição ao regime, é o que aconteceu com o extinto jornal carioca ‘Correio da Manhã’, cuja primeira página é reproduzida nesta edição. Dois de seus editoriais contra o governo Jango são lembrados até hoje como os principais exemplos de apoio ao golpe.
“Não é tolerável esta situação calamitosa provocada artificialmente pelo Governo, que estabeleceu a desordem generalizada (..)”, esbravejava o veículo em 31 de março, no texto intitulado ‘Basta!’. No dia 1° de abril, o editorial ‘Fora!’ traçava para Jango o perfil de um inconsequente. “É o maior responsável pela guerra fratricida que se esboça no território nacional”. O golpe foi comemorado nas páginas do ‘Correio’.
Quando, gradativamente, os direitos civis foram sendo retirados, o jornal passou a se opor à ditadura. Por causa disso, foi perseguido, teve a sede atacada a bomba, invadida e interditada. Uma das edições foi confiscada e a proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, ficou presa por mais de dois meses. Diante da asfixia política e financeira, o jornal por onde passaram Lima Barreto, Antonio Callado e Carlos Drummond de Andrade foi arrendado a um grupo de empreiteiros simpáticos aos militares e tornou-se alinhado com o governo. Acabou fechando seis anos depois.
Passados 50 anos do golpe, o tom dos jornais ao tratar do tema é justamente o oposto. Desfiam uma série de críticas e denúncias contra a supressão dos direitos civis, a tortura e os assassinatos praticados pelo governo militar. Tudo como se a imprensa nunca tivesse ficado ao lado do regime que se instaurou. Analisar mudança tão radical pode ajudar a desmistificar o papel dos meios de comunicação na cobertura política brasileira. “A grande imprensa construiu uma memória para si que não corresponde à realidade”, define a historiadora Beatriz Kushnir, autora do livro “Cães de Guarda”, sobre o papel do jornalismo na ditadura. “As redações aderiram maciçamente ao golpe, pedindo a saída de Jango. Tempos depois, passaram a conviver com a censura, mas muitas empresas jornalísticas continuaram a ter ligação com o governo militar.”
Para justificar a parceria com os
golpistas e a oposição às anunciadas Reformas de Base, a argumentação
era de que os jornais traziam impressos em suas páginas os clamores de
grande parte da sociedade. “A Nação não mais suporta a permanência do
Sr. João Goulart à frente do Governo”, bradava o editorial de 1° de
abril, do extinto ‘Correio da Manhã’, sob o título “Fora!”. E
continuava, como se fosse o porta-voz de todos os brasileiros: “Só há
uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: saia.” Na capital paulista, a
imprensa seguia o mesmo padrão. “Magalhães: hierarquia e disciplina
estão em perigo”, estampou, na véspera do golpe, a Folha de S. Paulo,
nas páginas 2 e 3, referindo-se ao discurso do governador mineiro, um
dos principais opositores de Jango.
Os textos do DIA
não chegavam ao nível de histeria de ‘O Globo’, ‘Correio’, ‘Folha’,
‘Estado de S. Paulo’ e ‘JB’, mas gradativamente o jornal foi abrindo
espaço para matérias a favor dos que pretendiam derrubar João Goulart.
Apesar disso, ainda manteve corajosamente na capa de 1º de abril um
recado do presidente que seria deposto: “É uma insensatez pretender
reprimir pela força as aspirações populares”. A partir daí, passou a
endossar a ideia da guerra contra a ‘comunização.’Enquanto se passava por intérprete da insatisfação nacional, a imprensa tinha informação para saber que a população não estava contra Jango. Eram duas pesquisas do Ibope. Uma delas, sem contratante identificado, foi realizada entre 9 e 26 de março de 1964, em oito capitais. Uma das questões era sobre a necessidade da reforma agrária defendida pelo presidente: em todas as cidades, a maioria dos entrevistados aprovou a medida. A maior se deu no Rio, com índice de 82%. Em resposta a outra pergunta, pessoas ouvidas em cinco das oito capitais disseram que elegeriam Jango caso ele tentasse a presidência em 65.
Essa pesquisa não chegou a ser publicada nos jornais daquele ano. Foi resgatada do esquecimento há pouco por Luiz Antonio Dias, professor de História da PUC-SP, prestes a lançar o livro “O Jornalismo e o Golpe de 1964: 50 Anos Depois”. “Os jornais, na verdade, endossavam as ideias de setores minoritários da sociedade, mas poderosos”, analisa Dias. Outro levantamento, feito em São Paulo entre 20 e 30 de março, a pedido da Fecomércio, revelava que 72% dos pesquisados achavam o governo Jango de razoável a ótimo. Entre os mais pobres o índice subia para 86%. (Igualzinho o governo Dilma agora)
O professor acredita, porém, que os integrantes de vários desses veículos de comunicação certamente não imaginavam que João Goulart seria sucedido por um regime tão truculento. “Com a censura e a escalada de arbitrariedades, muitos jornalistas passaram a enfrentar o governo militar e sofreram consequências trágicas, como foi o caso de Vladimir Herzog (profissional paulista assassinado em 1975, por enforcamento, numa prisão do DOI-CODI, em São Paulo).” A longa temporada de atuação dos censores deixou marcas profundas. “Aprendemos a ter ódio e nojo da censura e das ideologias pervertidas que tentam enfraquecer a liberdade de expressão”, acredita Aziz Filho, atual diretor de redação do DIA.
Do apoio ao repúdio à ditadura, a análise da atuação dos jornais nesse período pode render boas lições para quem vê a política através da imprensa. “O que está publicado não é a verdade dos fatos, mas apenas uma determinada visão dos fatos”, explica Beatriz Kushnir. Vinda do passado, a lição que fica para o presente e para o futuro é a de ter leitura crítica sobre tudo o que os jornais publicam – inclusive essa reportagem que você acaba de ler agora.
Censura bem antes do AI-5
Um erro comum é marcar o início da censura à imprensa apenas em 1968, depois do anúncio do Ato Institucional número 5, que restringiu ainda mais as liberdades no Brasil. Alguns anos antes, vários jornais que se opuseram ao governo militar foram invadidos e tiveram suas instalações destruídas. Isso aconteceu com periódicos de médio porte, mas também com grandes veículos de imprensa, como os extintos jornais ‘Ultima Hora’ e ‘Correio da Manhã’, ambos do Rio de Janeiro.
Depois de 68, a censura tornou-se sistemática e em muitas redações os representantes do governo acompanhavam o fechamento dos jornais para determinar o que podia ou não ser publicado. “Lembro de dois coronéis fardados que ficavam na redação no papel de censores”, lembra o jornalista Luarlindo Ernesto, do DIA , que na época trabalhava no jornal ‘O Globo’. “Várias vezes chegavam com uma relação de assuntos que não poderiam ser publicados.”
O teor dos temas proibidos ia desde manifestações de insatisfação política a delitos de vários tipos praticados por membros das Forças Armadas – incluindo crimes passionais. Alguns jornalistas que desobedeciam à censura foram detidos e levados para a prisão da Ilha das Flores. Depois de algum tempo, a ditadura adotou o método de enviar às redações ordens escritas, com detalhes sobre o conteúdo recomendado. Eram os chamados “bilhetinhos.” À frente do Jornal do Brasil, Alberto Dines, por exemplo, contou ter recebido 288 ordens desse tipo, de setembro de 1972 a dezembro de 1974.
Em muitas ocasiões, os meios de comunicação tentaram driblar as limitações impostas pela censura. Ao noticiar a publicação do AI-5, por exemplo, o JB aproveitou a coincidência de uma data comemorativa para estampar na primeira página: “Ontem foi o Dia dos Cegos.” Em outro espaço, usou a previsão da meteorologia para destilar mais ironia: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O país está sendo varrido por fortes ventos. Mínima – 5 graus, no Palácio Laranjeiras. Máxima – 37, em Brasília.” Na chamada imprensa alternativa, O Pasquim foi o campeão de desobediência. Ficou famosa a entrevista com Leila Diniz em que os palavrões foram substituídos por asteriscos e cifrões.
Apesar desse tipo de estratégia, a historiadora Beatriz Kushnir avalia que as empresas jornalísticas não foram tão firmes como deveriam ter sido no repúdio à censura. “Se essa resistência tivesse sido tão grande, os 220 censores que tinham a missão de controlar toda a imprensa brasileira não conseguiriam dar conta das suas tarefas”.
‘Correio’ é exemplo da guinada
Um caso extremo nessa trajetória da imprensa, que passou da defesa do governo militar à oposição ao regime, é o que aconteceu com o extinto jornal carioca ‘Correio da Manhã’, cuja primeira página é reproduzida nesta edição. Dois de seus editoriais contra o governo Jango são lembrados até hoje como os principais exemplos de apoio ao golpe.
“Não é tolerável esta situação calamitosa provocada artificialmente pelo Governo, que estabeleceu a desordem generalizada (..)”, esbravejava o veículo em 31 de março, no texto intitulado ‘Basta!’. No dia 1° de abril, o editorial ‘Fora!’ traçava para Jango o perfil de um inconsequente. “É o maior responsável pela guerra fratricida que se esboça no território nacional”. O golpe foi comemorado nas páginas do ‘Correio’.
Quando, gradativamente, os direitos civis foram sendo retirados, o jornal passou a se opor à ditadura. Por causa disso, foi perseguido, teve a sede atacada a bomba, invadida e interditada. Uma das edições foi confiscada e a proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, ficou presa por mais de dois meses. Diante da asfixia política e financeira, o jornal por onde passaram Lima Barreto, Antonio Callado e Carlos Drummond de Andrade foi arrendado a um grupo de empreiteiros simpáticos aos militares e tornou-se alinhado com o governo. Acabou fechando seis anos depois.
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