Cracolândia tem 'organização' regras e código de conduta
Entorpecidos pelo consumo,
viciados em crack vivem como se estivessem num universo paralelo, em
comunidades em que o tempo passa num compasso diferente do marcado nos
relógios e que têm as suas regras próprias de solidariedade
Christina Nascimento
Rio - Há um Rio onde meninas de pele dourada
não desfilam à beira-mar, aonde turista não vai e onde nem mesmo a
melhor das imaginações é capaz de transformar em letra de samba. São
11h20, na Nova Holanda, Complexo da Maré, favela ocupada pelo Exército. A
rua está cheia de gente, principalmente crianças. Numa tenda
improvisada, dois casais sentados ao chão riem, visivelmente
entorpecidos. Seguem um ritual que lembra o fumo do narguilé, mas lá, na
roda, estão pedrinhas, que de tão miúdas parecem inofensivas. São
quatro, cinco, fumadas em sequência, num copo de água vazio. A média é
de 16 por dia. Ali, na miséria, dia e noite não se separam. A fissura pelo crack, tema de série que O DIA
começa hoje, é o que dita o compasso do tempo. “Ainda não dormi. Estou
virado. Por ela, pela droga”, conta X., 37 anos, ao ser abordado por uma
equipe de acolhimento da prefeitura.
Sem casa e sem família, só a fumaça da droga
Foto: Maíra Coelho / Agência O Dia
Os olhos se destacam no rosto sujo.
As mãos, cheias de anéis, estão imundas e envelhecidas, assim como o
rosto, que aparenta ser de um homem de 50 anos. No peito, carrega um
cordão com chupetas. O acessório é um signo de paternidade. Quem tem
filhos tem o objeto num bolso do short esfarrapado, num alfinete
pendurado na camisa encardida, independentemente dos laços rompidos.
“Está vendo? São quatro, um para cada filho. É
para lembrar deles, que ficaram com as mães”, conta X., que contraria o
senso comum e mostra lucidez e consciência sobre sua própria realidade. Ele é ‘casado’, “não sabe há quanto tempo”, com
Y., 24 anos, fisionomia de 40, dona de sorriso quase sem dentes e de
uma chupeta. Os dois moram na cracolândia da Rua Flávia Farnese, a dois
quarteirões da Avenida Brasil. Seguem o padrão de comportamento do
acampamento de tendas, barracos de papelão, plástico, muita pobreza e
lixo.
Lá, praticamente, não há ‘solteiros’.
Os relacionamentos são efêmeros, mas fiéis enquanto duram. E isso pode
ser dois dias ou dois anos. “O tempo da rua é outro. Eles se conhecem
hoje e se ‘casam’. Para esse homem, a questão da genética é muito
inferior. Ele assume (naquele universo) a mulher e o filho, mas elas
geralmente recusam essa paternidade.
A bagunça deles é, sim, organizada”,
explica a psicóloga Diana Ribeiro, uma das coordenadoras do Projeto
Proximidade, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Com seu
grupo, ela vai até quatro vezes por dia à cracolândia oferecer
assistência. “Tentamos convencê-los a tirar a identidade, ir a um dos
nossos centros, tomar um banho, fazer um lanche. Não é tratamento de
cura. É oferecer serviços, cidadania, para motivá-los a ter uma outra
vida”.
Vídeo: Cracolândia: Sem casa e sem família
Mergulhar no universo do usuário de crack que
vive nas ruas é derrubar alguns mitos. Se de longe são apenas um
formigueiro de maltrapilhos, sem rumo, inaladores sem justificativa do
vapor da cocaína, na grande angular nota-se uma lógica de convivência de
comunidade. Há regras, hierarquia e código de conduta. A
droga é partilhada, assim como a comida e o sentimento de segurança. Em
comum, têm, além do vício, histórico de problemas familiares, baixa
escolaridade e a recusa em aceitar tratamentos de saúde. “A gente aqui
tem meta 5 (reais), entendeu? Meta 5. Se não conseguir, pega R$ 2,50 de
um e junta com o de outro. Nóis (sic) divide tudo”, conta Z., 24 anos. O valor da “meta” compra a menor pedra de crack
e é conseguido, na maioria das vezes, na ‘correria’ — garimpo no lixo
de objetos para venda e pequenos bicos — e nos furtos. A compra não pode
ser em moeda, porque o tráfico só aceita notas. As maiores pedras
custam R$ 10 e R$ 20. E, no Jacarezinho, onde a cracolândia na linha do
trem chega a ter 185 pessoas numa única manhã, há comerciantes que fazem
a troca do dinheiro, com ágio de até 20%. No copo de água, o saciar de um prazer O copo de água é o cachimbo da vez. E, na
cracolândia da Nova Holanda, ele é oferecido por R$ 1 em mesinhas de
compensado de madeira ou plástico que são colocadas na frente das
cabanas usadas como moradia, alimentando o comércio de um produto só e
que mostra que a cadeia do vício vai além da boca de fumo do tráfico.
São os próprios usuários que vendem
para eles mesmos o utensílio para fumar. O processo para o uso é
sistemático e tem uma certa morbidez. Fazem-se dois furos na tampa do
copo e tira-se a água. Num dos buracos, a pessoa joga a pedra e, no
outro, aspira o vapor. A combustão é feita com a brasa de cigarro de
tabaco.
Os
copos plásticos de água têm um valor especial para moradores da
cracolândia. São usados como cachimbos, nos quais pedras são queimadas
Foto: Maíra Coelho / Agência O Dia
Os estalos da queima explicam o nome
da droga, crack, e contrastam com o silêncio do viciado, hipnotizado
enquanto prepara a pedra para saciar o desejo. Os efeitos chegam como
uma pancada e, em segundos, ao sistema nervoso.
A ‘onda’ é igualmente instantânea.
Quase nunca ultrapassa um minuto. É essa curta duração uma das
explicações para a aglomeração de grupos que consomem a pedra. Eles
precisam aplacar a fissura a todo momento. Por isso, estabelecem-se
próximo ao local onde a droga é vendida. É a territorialidade desenhada
pelo consumo.
“É diferente da cocaína e da maconha,
que têm efeitos duradouros. A forma de consumo do crack faz com eles
fiquem na rua. Essa pessoa que consome a pedra não sai de casa pela
manhã, trabalha, faz o uso e volta a se recolher. Ela fica, ali, na
rua”, explica o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore
André Zílio Maximiano.
Mundo de valores próprios Talvez seja apenas a sensação de estar limpo
diante de tanta sujeira. Em vez do banho, quase raro, enfeites. Muitos.
Anéis, cordões, pulseiras, relógios até quase toda a extremidade do
antebraço. Adornos que, para alguns, são inegociáveis até mesmo na
fissura.
“Arruma 20 (reais), amor!”, grita D.,
31 anos, no burburinho das tendas, para o ‘marido’. “É para o crack”,
confessa ela, que ostenta um bracelete. Não importa se os cabelos estão
desgrenhados, se a pele está comprometida por dermatoses, se as unhas
parecem seladas por barro. A cracolândia é uma imensidão onde o belo tem
codificação própria. E, nos padrões de lá, o pacote para atração
resvala principalmente no companheirismo. Nessa lógica, ter a arcada
dentária completa ou não é tão invisível como ter uma casa em Paris. Se é
ali que se vive, o real tem que ser palpável.
No Jacarezinho, o crack cria padrões
entre os usuários. Até um trecho da linha do trem é o subúrbio, onde os
mais miseráveis se encostam na parede enquanto consomem. Do outro ponto
em diante, é a ‘Zona Sul’, onde barraquinhas vendem as pedras. Lá, há
preciosidades que se perderam por causa da droga. C., 36 anos, é um
caso. Toca violino, violoncelo, violão e cavaquinho. Já se apresentou na
Europa. Hoje, trafica e consome, mas diz que vai mudar de vida.
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