Mesmo em crise, o hospital paulista vendeu imóvel abaixo do preço de referência
por Fabio Serapião
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Uma propriedade menor, na mesma região, foi negociada por 2 milhões a mais. Negligência da administração?
Com
uma dívida estimada em 320 milhões de reais, a Santa Casa de São Paulo
expôs um dos vários problemas do sistema de saúde pública brasileiro ao
paralisar o funcionamento de seu pronto-socorro em meados de julho. Além
de deixar de atender perto de 1,2 mil pacientes por dia, a decisão
tomada pelo provedor Kalil Rocha Abdalla abriu uma crise entre a
Secretaria Estadual e o Ministério da Saúde. Enquanto Abdalla cobrava
mais recursos para garantir a reabertura da urgência, o Estado e a União
travavam uma disputa de versões sobre as responsabilidades no caso. O
secretário Davip Uip afirmava realizar corretamente todos os repasses.
Por sua vez, o ministro Arthur Chioro apresentou números segundo os
quais o governo paulista teria deixado de transferir cerca de 70 milhões
de reais ao hospital filantrópico.
Disputas políticas à parte, o fato é que
todas as Santas Casas do País atravessam uma crise financeira
irreversível, causada pelo fato de prestarem um serviço público sem, ao
menos, ser um órgão público. As Santas Casas são instituições
filantrópicas, sem fins lucrativos e administradas, em geral, por
irmandades ou fundações. Somam-se a isso os problemas causados pela
defasagem da tabela SUS e pela falta de investimento dos governos
estaduais em novos hospitais e unidades de saúde. É preciso salientar,
entretanto, o papel dos administradores nessa situação.
No caso da instituição paulistana,
administrada pela Irmandade Santa Casa, a devassa a ser realizada pelo
governo estadual em suas contas poderá apontar possíveis
irregularidades. Além de descobrir como se ergueu a dívida milionária,
os auditores poderão averiguar se empresas de parentes de diretores ou
médicos foram beneficiadas com contratos e como uma única empresa
credora tem a receber cerca de 25 milhões de reais. Além disso, seria
interessante uma investigação específica para entender como se dão as
negociações para venda e aluguel de imóveis que integram a lista de bens
da Irmandade ao longo das gestões de Kalil Rocha Abdalla. A venda de um
deles, em especial, chama atenção.
A transação em si não contém nenhuma irregularidade formal, tampouco CartaCapital
pretende acusar os envolvidos na negociação de desrespeitar as regras
do setor imobiliário da cidade de São Paulo. Trata-se apenas de expor os
detalhes da compra para, entre outras coisas, entender por qual motivo a
Santa Casa vendeu um de seus imóveis por um valor muito abaixo do valor
venal. Eis os fatos, todos registrados em cartórios de imóveis e
tabelionatos da capital paulista.
Segundo consta no Livro nº 2 de Registro
Geral do 1º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, o imóvel em
questão está situado no bairro da Liberdade, na esquina das ruas Santa
Madalena e Martiniano de Carvalho. Registrado em nome da Irmandade Santa
Casa, em 2009, integrava, antes dessa data, a lista de bens do
inventário de Baselice Schmidt, falecida em 1966. Com área total de 985
metros quadrados, o terreno, segundo seu registro, tem valor venal de
9,4 milhões de reais. Mas foi vendido por apenas 6,5 milhões.
Sobre a negociação, temos o seguinte. Em primeiro de julho
de 2013, a incorporadora You.Inc, representada pelos seus proprietários
Abrão e Eduardo Muszkat, registraram na Junta Comercial a Onix
Empreendimentos Imobiliários. Entre as ações da Onix, focamos na compra
dos seis imóveis localizados no mesmo quarteirão da propriedade da Santa
Casa, situado entre as ruas Santa Madalena, Maestro Cardim, Pedroso e
Martiniano de Carvalho.
Com interesse em deslanchar o
empreendimento na região, a Onix iniciou as negociações com os
proprietários dos imóveis e contratou um escritório de advocacia para
produzir o relatório jurídico complementar acerca das características de
cada um dos seis terrenos. Encaminhado a Fernanda Chahin Bali de
Aguiar, funcionária da You.Inc, o relatório da Anmar & Anmar
Advogados Associados analisou as medidas dos terrenos e suas respectivas
situações documentais. Constam no documento as especificações dos seis
lotes: o imóvel da Santa Casa, cuja matrícula municipal é 78.043, outros
três imóveis situados na Rua Santa Madalena e mais dois lotes que
somados possuem quase a mesma metragem da propriedade da Irmandade.
É o valor da compra desses dois
últimos lotes que deixa a venda do terreno da Santa Casa mais estranha.
Enquanto a área do hospital, com seus 985 metros quadrados, foi vendida
por 6,5 milhões de reais, os dois lotes, que, somados, possuem pouco
mais de 900 metros quadrados, foram adquiridos do espólio de Lia Uchoa
Canto Bierrenbach por 8,6 milhões de reais. Ou seja, no mesmo quarteirão
a Onix pagou 2 milhões a mais por dois lotes com metragem inferior.
A Santa Casa
informou que a venda foi aprovada pelo conselho formado por 50 membros
da Irmandade e que não houve pagamento de comissão. A You.Inc informou:
“A transação de venda ocorreu em situação concorrencial com outras
incorporadoras do mercado, tendo a empresa oferecido as melhores
condições econômicas, sendo a venda aprovada pela Irmandade”. O que
nenhuma das duas envolvidas na transação respondeu foi: quem foi o
corretor responsável pela negociação. Talvez, quando essa questão for
esclarecida, fique mais fácil entender os motivos de a Santa Casa deixar
de ganhar 3 milhões ao vender seu imóvel abaixo do valor venal,
quantia que poderia ter evitado o fechamento do pronto-socorro.
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