Por Maria das Graças Rua
Na primeira metade da década de 70 iniciou-se uma grande crise
econômica de escala mundial, cujo marco inicial mais visível foram as
duas grandes crises do petróleo (1973 e 1979). Até então, o mundo
capitalista vivia num período de altas taxas de desenvolvimento econômico
e de um amplo consenso quanto ao papel do Estado de promover
o crescimento econômico e o bem-estar social. No início dos anos 80,
encerra-se esta fase de prosperidade vivida desde o fim da Segunda
Guerra e inicia-se uma prolongada recessão, cujos efeitos são uma acentuada
crise fiscal, acompanhada de uma crise do modo de intervenção
do Estado e de uma crise de governabilidade.
Além disso, um processo que vinha se desenvolvendo de maneira
acentuada desde a Segunda Guerra — a globalização e as grandes transformações
tecnológicas, especialmente nas áreas de microeletrônica e
telecomunicações — assume uma dinâmica mais acelerada a partir do
fim da década de 80. Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e com a
dissolução da União Soviética em 1991-1992 acabam-se as principais
distinções políticas e econômicas entre o mundo ocidental, democrático e
capitalista e o mundo oriental, autoritário e socialista.
Nesse novo ambiente, aumenta a interdependência das nações, os
Estados nacionais passam a dispor de menor capacidade regulatória, tornam-
se mais vulneráveis às forças transnacionais (desde as corporações
até os investidores individuais, desde os empreendimentos legítimos até o
crime organizado), perdem boa parte do seu controle sobre os fluxos financeiros
e comerciais e sobre a tarefa de decidir autonomamente as suas
políticas macroeconômicas.
Embora a crise econômica e a crise fiscal pudessem ser contornadas
com a redefinição do papel do Estado na economia e com o corte de
políticas sociais, o mesmo não se aplicava à crise de governabilidade e
aos desafios da globalização. Na verdade, não apenas o Estado passou a
contar com menos recursos, mas também passou a dispor de menos poder
efetivo. Logo, a solução não poderia se limitar à esfera econômica, mas
deveria se estender ao modelo político-administrativo.
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De fato, soluções econômicas não seriam suficientes para superar RSP
a inflexibilidade da burocracia: seu conservadorismo, sua relutância em
se afastar dos precedentes, sua adesão à letra estrita da lei, seu comportamento
refratário à inovação e sua generalizada conformidade aos padrões
grupais. As mudanças em andamento impunham a presença de quadros
criativos, flexíveis e capazes de inovar, competitivos e comprometidos em
melhorar o seu desempenho, orientados para a sociedade em lugar de
auto-referidos, dotados da motivação resultante da capacidade de acreditar
no que estivessem realizando.
É nesse contexto que se iniciam as medidas de modernização do
setor público que, por longos e diversos processos de ensaio e erro, acabaram
resultando no modelo que se convencionou chamar de administração
pública gerencial.
No final da década de 70 e início de 80 constatava-se a existência,
nos países anglo-saxônicos, de uma opinião pública desfavorável à burocracia
pública e ao mesmo tempo uma inclinação em valorizar o modelo de
gestão adotado pelo setor privado. Com a eleição do governo conservador
na Grã-Bretanha e republicano nos EUA, iniciou-se a implantação, no
setor público, de formas de gestão importadas diretamente do setor privado,
nas quais a ênfase recaía sobre o objetivo de cortar custos e aumentar a
produtividade, e onde era possível observar a ausência da percepção das
diferenças entre a atividade privada e a atividade pública (ABRUCIO, 1996).
Basicamente, apesar dos diversos arranjos adotados em diferentes
momentos e em experiências diversas, o modelo gerencial puro, importado
diretamente do setor privado, exibia as seguintes características:
a) uma lógica de completa separação entre a esfera da política e a
esfera da administração;
b) uma concepção estritamente econômica, baseada na avaliação
técnica de custo/benefício;
c) um princípio central: a eficiência, compreendida como eficiência
operacional, que implica o aumento da consciência dos custos e requer
uma rígida especificação de objetivos e controles;
d) objetivo de produtividade e dinâmica da competição à maneira
da concorrência no mercado; e
e) público-alvo concebido como o conjunto dos consumidores, na
sua condição de contribuintes.
Pode-se discutir vários ângulos de cada uma dessas características.
Entretanto, a fim de não alongar excessivamente o debate, basta apontar
que alguns dos seus problemas decorrem, basicamente, do fato de que o
modelo gerencial puro é totalmente apolítico — e por isso mostra-se inadequado
à administração pública.
Vale observar que a sua lógica de absoluta separação entre política e
administração, curiosamente, é a mesma que orienta o modelo de
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administração burocrática, mas também é a mesma que orienta todas RSP
as concepções que, por assim dizer, se baseiam na mística do mercado.
Para estas, política e mercado devem ser não apenas esferas separadas,
mas completamente estanques — e o mercado funcionaria tão melhor
quanto menor fosse a ingerência da política. Esta visão totalmente ingênua
e equivocada já foi suficientemente discutida e criticada por diversas
vertentes do pensamento político. Aqui basta lembrar de que a política
surge sempre que há conflito de interesses materiais ou ideais e tal
conflito potencialmente se manifesta sempre que há mais de um indivíduo
desenvolvendo uma atividade qualquer ou simplesmente existindo
(SCHMITTER, 1974).3
Assim, na segunda metade da década de 80, importantes mudanças
começaram a ser introduzidas, a partir da percepção das diferenças entre
a gestão do setor privado e do setor público. As duas principais transformações
foram:
a) a priorização dos conceitos de flexibilidade, planejamento
estratégico e qualidade, alternando a dinâmica interna das organizações
públicas; e
b) a orientação dos serviços públicos para as demandas e anseios
dos cidadãos, sem abandonar o conceito empresarial da busca da eficiência
(ABRUCIO, 1996).
Na tentativa de encontrar uma solução que compatibilizasse as
vantagens da administração gerencial com as características próprias do
setor público, diversas propostas surgiram, dando origem a diferentes
modelos. Não cabe aqui discuti-los. Vale apenas mencionar características
centrais de alguns deles que, reunidas, compõem o que hoje se entende
como modelo de administração pública gerencial e que têm orientado os
esforços em direção à reforma administrativa no Brasil:
a) O foco é o cidadão, e as atividades se orientam para a busca de
resultados.
b) O princípio da eficiência econômica cede espaço ao princípio da
flexibilidade.
c) Ênfase na criatividade e busca da qualidade;
d) Descentralização, horizontalização das estruturas e organização
em redes.
e) Valorização do servidor, multiespecialidade e competição administrada.
f) Participação dos agentes sociais e controle dos resultados.
Diversos destes aspectos contemplam (ou podem contemplar) a
dimensão política da administração pública. É o caso princípio da
flexibilidade, que implica a tentativa de superar a rigidez burocrática e a
orientação primária de maximização custo/benefício e de admitir a
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interação com o ambiente social. O mesmo pode ser dito da descentra- RSP
lização e da horizontalização das estruturas, que implicam autonomia de
gestão e tendem a romper com o princípio da hierarquia e com a ética
da obediência situados na base da neutralidade e despolitização da
burocracia. Por fim, é o caso, especialmente, da participação dos agentes
sociais, que implicam as noções de gestão participativa e se baseiam
nos conceitos de transparência, accountability, participação política,
eqüidade e justiça.
5. Considerações finais: os dilemas da
autonomia burocrática
Nesse sentido, um conceito fundamental e freqüentemente pouco
explicitado é o de autonomia. Em acepção ampla, pode ser entendido
como a capacidade de um ator ou agência de formular preferências e
executar decisões, sem sofrer constrangimentos decorrentes de relações
de subordinação. Vale assinalar que, conforme coloca Bresser Pereira
(1997:43), “o conceito de autonomia da burocracia pública não deve
ser confundido com o de insulamento burocrático, ou seja, o isolamento
das agências estatais em relação às influências políticas”,
proposto como recurso de separação entre a política e a administração e
de despolitização da burocracia, de maneira a protegê-la do populismo
econômico e do clientelismo.
Mais precisamente, o conceito de autonomia da burocracia pública
pode ser operacionalizado como a capacidade de ocupar posições centrais
no governo; de formular preferências políticas; de ajustar os objetivos
aos procedimentos já estabelecidos; a disponibilidade de qualificações
para comando ou gerenciamento das atividades; e a capacidade de controlar
a implementação das decisões públicas (ROSE:1974; PETERS: 1987).
Estas capacidades podem se consolidar mediante o arranjo denominado
“autonomia imersa” ou “autonomia inserida” proposto por Peter
Evans (1995:248), segundo o qual, para que as agências governamentais
ganhem eficácia e sejam capazes de realizar transformações, devem estar
imersas em uma densa rede de relações sociais que as vinculam aos seus
aliados na sociedade a partir de objetivos de mudança. Para o autor esta
seria a forma de assegurar a democracia, evitando que a burocracia venha
a se tornar governo, em substituição aos políticos.
Esta concepção apresenta diversos problemas. Em primeiro lugar,
conquanto a idéia de autonomia governamental não ofereça dificuldades
do ponto de vista conceitual, o mesmo não acontece com “autonomia
imersa” ou “autonomia inserida”. Conforme colocam Tavares de Almeida
e Moya (1997:121):
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“Não fica claro o que seja ‘autonomia inserida’ e no que ela se RSP
distinguiria das condições normais de operação dos governos nas
democracias antigas e estáveis. A menos que se imagine que o
governo não é senão o comitê executivo dos interesses predominantes
na sociedade, alguma capacidade de iniciativa autônoma e
alguma sustentação político-parlamentar são traços típicos de todo
governo democrático que não esteja à beira do colapso.”
Eu acrescentaria que não apenas a sustentação político-parlamentar
é típica desse tipo e condição de governo, como também o são os vínculos
com as diversas coalizões de interesses que se constituem como atores
políticos em sociedades minimamente inclusivas.
Entretanto, quanto ao conceito de autonomia de Peters, acrescenta-
se o arranjo de Peter Evans, tem-se o que o primeiro destes autores
indica serem os pré-requisitos para um governo burocrático. Este é o
dilema da autonomia burocrática: para atender aos imperativos da
governança numa ordem em transformação, é necessário autonomia. Mas
a autonomia — do mesmo modo que a neutralidade, embora por vias
transversas — não assegura democracia, nem mesmo a autonomia imersa
ou inserida, ao contrário do que pretende Peter Evans.
Além disso, o conceito de autonomia imersa ou inserida tem
subjacente o suposto de um conjunto de atores sociais forte e
generalizadamente atuantes em busca de resultados da ação pública que
satisfaçam seus interesses e demandas. Ou seja, não basta constituir burocracias
autônomas: é necessário ter atores sociais envolvidos e mobilizados
em torno da consecução de metas públicas.
Pelo menos desde Schumpeter (1978) e, mais tarde, de Olson (1971;
1982), são conhecidas as dificuldades para que isso ocorra. Enquanto o
primeiro enfatiza o problema da racionalidade política do cidadão médio,
o segundo não deixa dúvidas quanto às dificuldades da ação coletiva —
os elevados custos de organização e coordenação vis-à-vis, o caráter
indivisível e não excludente dos bens públicos — nem quanto às nefastas
conseqüências da hipertrofia dos pequenos grupos (OLSON, 1982 ).
Na verdade, é possível sugerir que a resposta (mas não a solução)
ao problema de Olson encontra-se em Michels: a provisão de bens públicos
para os grandes grupos — inclusive o controle social — só ocorre efetivamente
mediante a ação do empresário político — figura não necessariamente
restrita aos políticos dotados de mandato eletivo. Em que medida
isto seria diferente dos modelos tradicionais de atuação dos agentes
públicos, não somente os políticos, mas também os burocratas?
Ademais, supondo que sejam resolvidos os desafios da ação coletiva
e haja organização dos atores sociais, coloca-se ainda, conforme mostra
Michels (1982), o problema da oligarquização das organizações
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democráticas (não apenas partidos políticos, mas também associações, RSP
sindicatos, conselhos comunitários e setoriais, etc): em que medida as
entidades organizadas da sociedade civil são, de fato, representantes dos
cidadãos enquanto usuários dos bens públicos?
Se a proposta da autonomia imersa se destina a resolver o problema
da vinculação entre a administração pública e a sociedade de maneira a
obter agilidade e eficácia, sem perda do controle democrático, uma questão
central a ser enfrentada é a de como tornar generalizada e efetiva a
participação dos atores sociais.
Desta forma, a autonomia imersa pode levar a uma situação de
fortalecimento dos laços dos agentes/agências burocráticas com clientelas
específicas, impondo dificuldades à construção de consensos e estabelecendo
novos padrões de favorecimento político, em lugar da universalização
das relações de cidadania. Por outro lado, pode representar um novo
patamar no fortalecimento dos atores burocráticos, em prejuízo dos políticos,
quando é possível pensar que é a competição entre os dois tipos de
atores — e não a assimetria e subordinação entre eles — que favorece a
democracia (REIS, 1989).
Assim, conforme procuro chamar a atenção em um outro artigo
(RUA, 1997), Max Weber ensina que o grande drama da dominação moderna
situa-se no campo das relações entre os dominadores: os políticos e a
burocracia. Particular destaque teria, na dinâmica dessas relações, a distinção
entre as éticas e os tipos de racionalidade característicos de cada
um desses atores. Enquanto a burocracia seria orientada pela ética da
obediência e pela racionalidade formal, sendo a competência técnica e o
mérito as fontes da legitimidade burocrática, os políticos teriam como
traços predominantes a ética da responsabilidade e a racionalidade substantiva,
fundamentos da legitimidade política.
O efetivo dilema a ser enfrentado pelas democracias seria considerado
o inexorável processo de complexificação e burocratização da
sociedade moderna e dadas as características de cada um dos agentes do
jogo político e os seus recursos de poder, como impedir que a burocracia
venha a usurpar o poder e como assegurar que permaneça, sendo apenas
um elo de ligação entre dominadores e dominados? Para Weber, a incapacidade
de solucionar este problema estaria na base do declínio dos grandes
impérios da história (WEBER: 1993). Isto, certamente, não pode ser
esquecido quando do debate da autonomia burocrática, especialmente da
autonomia imersa.
Finalmente, se este debate sugere que o exercício da autonomia burocrática
implica a rejeição do princípio da neutralidade, deve ficar claro que
isto significa descartar ambas as suas facetas: não somente a indiferença
descompromissada, mas também o universalismo. Quais as conseqüências
disso sobre a governabilidade e a governança democráticas?
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Quanto mais presentes se tornarem esses dilemas, maior será a RSP
relevância da discussão acerca das relações entre governança, neutralidade
burocrática e autonomia para a reforma do Estado e da administração
pública, onde o que está em jogo, em última instância, é a democracia
enquanto valor maior.
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