9.24.2012

Chacina e champanhe no Rio de Janeiro

Por Claudio Bernabucci

A cidade está bem melhor do que no passado, mas tal melhora reverte, sobretudo, em benefício das classes privilegiadas
Aquela terra de ninguém que é a Baixada Fluminense voltou às crônicas nos dias passados por causa de uma horrenda chacina que resultou na morte de nove jovens. Sobraram os corpos estraçalhados. Depois de certo constrangimento público e alguma ênfase nos noticiários, é forte a possibilidade de que a questão seja destinada a um rápido esquecimento. Em terras brasileiras o valor da vida é relativo: depende da classe social.
Não que esta maldição seja uma exclusividade nacional, mas o que choca mais em relação a outros cantos da terra é que aqui a distância entre civilização e barbárie, luxo e miséria, é insignificante: basta cruzar a avenida.
Chatuba, Mesquita, os lugares da matança, são acidentes topográficos para os cariocas. Encontram-se a poucos quilômetros do centro, entre a Via Dutra e a Avenida Brasil, mas nossos carros só correm furtivos por ali em direção a São Paulo ou Angra dos Reis. O carioca comum da classe média ou alta pode passar a vida inteira sem entrar uma vez sequer em grande parte da própria cidade.

Nos mesmos dias da chacina, uma peculiar concomitância chamou minha atenção. Um evento de significado muito diverso se realizava paralelamente no Rio de Janeiro: a Feira de Arte Contemporânea, de altíssimo nível internacional, que tem atraído as melhores galerias do mundo. Esse fato representa claro sinal do renascimento depois de décadas de decadência. O Rio se configura sempre mais como relevante polo cultural e confirma sua capacidade de referência internacional em benefício do País. As galerias internacionais admitiram sem complexos que estavam aqui presentes porque consideram o Brasil um dos poucos países onde se vende muito bem. No final da Feira, calaram sobre o valor da própria ganância. Em suma, na ArtRio rolaram rios de dinheiro, e até aqui nada contra.
As minhas vísceras contorceram-se, porém, ao ler O Globo do dia 13 de setembro, onde, em editorial não assinado sobre o “genocídio em curso contra jovens”, lamentam-se os recursos limitados para combater a criminalidade e a desorganização dos governos. Lembrei-me então de um velho ditado italiano. No país do sole mio, para imprecar contra um imprevisto temporal, o povão xingava: Piove, governo ladro! (em português: “Chove, governo ladrão!”). Muito repetido até os anos 1970, tal ditado virou por sorte sinônimo de casuísmo e, hoje, quase esquecido. Ora, é verdade que brasileiros e italianos têm muitos vícios em comum, mas nunca podia imaginar que o principal jornal do Rio de Janeiro virasse paladino daquele mesquinho ditado da península.

Ante a chacina, minha reação foi outra: além da compaixão, chocou-me que dois fatos tão extremos, a barbárie de um lado e a vida glamourosa de outro, eram na realidade muito próximos, a poucos quilômetros de distância, todavia não se tocavam. Por consequência, a constatação de que, se a cidade no seu conjunto está bem melhor do que no passado, tal melhora reverte, sobretudo, em benefício das classes privilegiadas. O ritmo de desenvolvimento dos imensos setores periféricos e marginais, sem receber investimentos públicos adequados e sem atrativos para os privados, progride bem mais lentamente. Assim, as distâncias são destinadas a tornar-se insuperáveis e as duas cidades a se cristalizarem perigosamente.

Uma forma de aproximar tais extremos e de limitar as diferenças entre os dois Brasis seria responder construtivamente à queixa do Globo de que faltam recursos para combater a criminalidade. Nós acrescentamos: faltam também para uma saúde pública mais digna, e qual seja, saneamento básico em áreas insalubres e malcheirosas. Como as estatísticas demonstram (e os galeristas internacionais confirmam), a riqueza no Brasil continua imensa e concentrada em poucas mãos. Transferir parte desses enormes recursos para a realização das melhorias acima descritas significaria cumprir tarefas básicas de um país democrático decente. Após enormes enriquecimentos das décadas passadas e outros “antecedentes”, a elite brasileira deveria sentir-se chamada a uma mínima reparação ante a sua dívida histórica com o País.

Nas democracias, é o Estado que cuida da segurança, saúde e higiene pública. Consegue realizar tais serviços baseando-se em sistemas de impostos que provêm das riquezas em forma progressiva. O contrário do Brasil. Mudar o Fisco brasileiro para aproximá-lo dos sistemas das democracias mais avançadas é condição necessária para permitir ao Estado superar atrasos históricos. Na espera de uma reforma abrangente ou de medidas específicas extraordinárias, uma honesta luta contra a evasão seria auspiciosa. Infelizmente, após dez anos de governos “progressistas”, donos de helicópteros e iates continuam isentos de impostos.

O perigo de que “tudo mude para ficar sempre igual”, de siciliana memória, pode virar o fantasma da atual governança brasileira.

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